terça-feira, 21 de novembro de 2017

Sopro de Tiago Rodrigues

A vida é feita de improvisos, sem guião.

Parte de quem está na sombra, o ponto, de quem (quase) tudo depende. Cristina Vidal, ponto no Teatro D. Maria II há 39 anos, sai da sombra e do anonimato e junta-se a cinco actores em palco para narrar (também) 28 minutos de “brancas”, histórias reais e inventadas. Pela primeira vez, sobe ao palco e sai da penumbra que é ajudar os actores, soprando-lhes o texto. A diferença entre uma pausa dramática, um silêncio, uma falha de texto. Ela que vive nas sombras, na invisibilidade, escondida nos bastidores: “A discrição do ponto deve ser proporcional à indiscrição do actor”. A Cristina Vidal juntam-se Beatriz Brás, Isabel Abreu, João Pedro Vaz, Sofia Dias e Vitor Roriz.

A peça tem ritmos diferentes. Dá para rir e para chorar. Sabe-se que partes são tragédias antigas, histórias friccionadas, outras, provavelmente, verdadeiras. Nunca saberemos. O tempo passa como um temporal e como o vento.

Há uma cena de uma despedida que é tão física e tão bem feita que é talvez, para mim, o melhor momento da peça. Um abraço desesperado. Quem nunca o vivenciou e sentiu?

A voz alta de Cristina Vidal só se ouve no final para dizer os versos finais de Berenice, os mesmos que foram a primeira branca, o primeiro esquecimento, a primeira falha de texto de uma infalível grande actriz. Termina a ler, com a voz suave e soletrada de quem fuma, a branca e o silêncio que também teve quando não conseguiu ajudar uma actriz. Porque o silêncio lhe pareceu tudo.

Qual o propósito do teatro se não questionarmo-nos e provocar-nos emoções?

É preciso preservar os momentos em que nos dedicamos aos mistérios, em que nos encontramos e dizemos: aqui estamos, talvez poucos, mas certos de que, perante a perspectiva da morte, escolhemos ficar na vida. E sussurrar em vez de gritar, recusar o ruído do mundo, escutar a respiração que emerge do silêncio e que sempre esteve lá, mesmo quando não a queríamos ouvir. Preservar os lugares onde podemos ouvir o vento, o sopro do pensamento, o espírito do lugar, o momento breve e irrepetível em que nos vemos pela primeira vez. E, sobretudo, não morrer".

Desta vez, o ponto, para além de ouvir, sai para receber as merecidas palmas.

Para mim, maravilhoso. Que comoção. Há muito tempo que não me sentia tocada assim.



quarta-feira, 15 de novembro de 2017

A(s) verdade(s) inconveniente(s)

Este é o tema que qualquer que seja a opinião (quase) toda a gente tem razão.

Devemos ser dos poucos países civilizados em que um investigador doutorado não tem (obrigatoriedade) de ter um contrato de trabalho. Para quem não sabe, vou repetir ad nauseum, um aluno que acabe o doutoramento, até há (bem) pouco tempo, o máximo que poderia ambicionar era uma bolsa de postdoc (1495 €/mês x 12 meses, sem subsídios de férias e de Natal e os descontos para a Segurança Social resumem-se ao Seguro social voluntário (opcional) no valor de aproximadamente 125€/mês. Bolsa esta que não é actualizada há mais de 10 anos.

Há uns anos, começaram os contratos para doutorados da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), a que foram dados diferentes nomes pelos diferentes governos. Estes eram poucos mas garantiam estabilidade e valores variáveis consoante idade e experiência durante 3 a 5 anos. Entre avanços e recuos, estes concursos que este governo sugeriu que iam acabar, pelos vistos, irão continuar.

Depois existe a possibilidade, através de projectos (Europeus ou não) de as Universidades contratarem investigadores doutorados por determinado número de anos. Neste caso, não são sujeitos ao regulamento rígido da FCT que só permite que doutorados com 3 ou mais anos sejam elegíveis. Nestes casos, apesar do concurso ser público, e da meritocracia ser alegada, os critérios de selecção são mais discutíveis.

Este governo teve a pertinente ideia de considerar que todos os bolseiros doutorados que eram financiados directa ou indirectamente pela FCT, há mais de três anos, que desempenhem funções em instituições públicas têm direito a um contrato. Quem pode não achar? Para isso propôs que todas as universidades abram concursos para os candidatos elegíveis. O Ministro da Ciência anunciou hoje o princípio de 2018 para iniciar o processo de contratação, a termo, de três mil investigadores doutorados. O diploma, que aguarda publicação em Diário da República, define que a FCT suportará os custos da contratação de doutorados. E aqui começa o eterno problema. Não parece um cenário utópico? Eu acho óptimo. Aplaudo de pé. Mas é (mesmo) verdade? As universidades, nomeadamente de Lisboa e Coimbra, têm alegado constrangimentos orçamentais para a contratação de investigadores doutorados. Eu, só acredito, vendo.

No Domingo, o grande cientista António Coutinho (ex-director do Instituto Gulbenkian de Ciência e actual Presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa) escreveu um texto no Observador que dá que pensar. Começa por escrever que "Os dados oficiais da FCT mostram que o orçamento realizado em 2016 (367M€) foi inferior ao do ano anterior (372M€). O investimento na ciência é propaganda política". Quem diz isto é o insuspeito Prof António Coutinho. Faltou ainda dizer que os resultados do concurso dos projectos FCT não estão previstos para antes do início do próximo ano. Este governo vai acabar a legislatura com 2 concursos de projectos atribuído em 4 anos...

Também, no início da semana, a excelsa cientista Maria de Sousa foi galardoada com o prémio da Universidade de Lisboa. Na nota biográfica disponibilizada estava escrito: "Profundamente estimada e muito respeitada na comunidade científica, Maria de Sousa é também uma humanista que cultiva o gosto pelas artes, pela história e pela poesia”. É que tal como dizia Abel Salazar: “Um médico que só sabe de Medicina nem de Medicina sabe”. E esta mulher, intelectual, médica, cientista com a idade que tem é um orgulho. Também, mas principalmente, por ser mulher. Elogiou publicamente os alunos de doutoramento: “Permitam-me um parêntesis de reconhecimento dos nossos estudantes GABBA”. A cientista a não esquecer quem ajudou e quem a ajudou. Diz muito da pessoa que é. E destacou dois momentos: explosão do número de bolsas de doutoramento da responsabilidade do Ministro Mariano Gago e de investigadores da FCT.  Destes últimos, já mais seniores, e que se tornaram directores de grupo (entre os 40 e 50 anos), e que são “ os recipientes de grandes bolsas internacionais” mas “a universidade parece não querer ou não poder integrá-los e o Governo vai implementar um decreto-lei que vai empregar milhares de postdocs com 6 anos de doutoramento”.

Quando dois dos maiores cientistas (jubilados) do nosso país, que podiam estar no conforto do silêncio sobre um problema que não os afecta directamente, falam na mesma semana dos mesmos (e mais) problemas na ciência em Portugal, algo vai muito mal.


quinta-feira, 9 de novembro de 2017

A minha lista de música, hoje

 “Canção do engate”, António Variações. A minha mãe deve ser uma das maiores fãs do António Variações.  Lembro-me do dia da morte dele, no dia 13 de Junho, dia de Santo António. Tinha 5 anos. Acho que foi a primeira vez que soube o significado de morte: nunca mais voltar, para sempre. E a minha pergunta foi: “Como morreu se está a a cantar?”. Admito muito a história de vida deste homem. Um rural de uma aldeia recôndita perto de Braga, chamada Fiscal. Um incompreendido, um excêntrico, um ET que nasceu antes do tempo e numa terra onde não o entendiam. Um menino da província que não aceitou a sua sorte de ser marceneiro “e andar todo sujo, de ter uma vida normal, casar com uma mulher e ter filhos”. Era, também, homossexual e uma uma das primeiras figuras públicas a morrer de SIDA e que a família,  até hoje 33 anos depois da sua morte, insiste em ocultar e/ou desmentir.

“The man who sold the world”, David Bowie. Podia ser qualquer uma do Bowie mas esta é também uma das versões dos Nirvana que foi outra das bandas da minha adolescência.

“It´s no good”, Depeche Mode e “Sub-16”, GNR .Não sei como é que os CDs ainda existem. Foram os que mais ouvi na minha pré/adolescência.

“Miracle of love”, Eurythmics e “Whiter shade of pale”, Annie Lenox.  É a imagem do fecho das matinees no Club 84 em Braga com aquelas bolas gigantes das discotecas nos anos 80/90.

 “Vapor barato”, Gal Costa com Zeca Baleiro. A letra é de Wally Salomão. Consta-se que Wally Salomão disse a Gal (que acrescentou “Graças a Deus”que não estava no poema): “Gal, dinheiro não rima com Deus”.


"Neighborhood #2 (Laika), Arcade Fire. A primeira vez que os vi em palco, com as cabeças cobertas com capacetes a servirem de bateria, nunca esquecerei.

“The greatest”, Cat Power. Esta música foi-me enviada de madrugada por uma das minhas grandes amigas numa altura que eu estava a panicar para uma apresentação oral que faria em Memphis. (Ainda) achava que havia coisas (profissionais)  pelas quais valia a pena chorar. Hoje não acho. Mas esta música ficou-me para sempre. E ainda hoje a ouço quando preciso de força.

“Fix you”, Coldplay. Num hotel em Shanghai com duas das minhas grandes amigas, no escuro do quarto, iluminado apenas pelas luzes da cidade a panicar antes de uma apresentação oral.


“True faith”, New Order. Ouvi-a muito quando era criança e depois levei-a comigo para Houston. A imagem desta música é o campus de Rice University a alta velocidade de bicicleta.

“Grito”, Amália. Uma pessoa com a 3ª classe foi capaz de escrever: “Sou sombra triste encostada a uma parede”. Eu sou daquelas pessoas que dizia que não gosta de Fado, gosta da Amália. Quando fui fazer o meu doutoramento para Houston uma das minhas playlists no ipod era Amália, que incluía a Amália da voz madura, que muitos acham a pior fase dela mas que para mim é que eu mais gosto.


“Unfinished sympathy”, Massive attack A primeira vez que ouvi esta música ao vivo, num dos maiores festivais de música dos Estados Unidos (Austin City Limits Festival), chorei copiosamente. Fui com um colega e mais quatro desconhecidos a esse festival. Foi dos fins de semana mais felizes da minha vida.  “How can I have a day without a night/ You’re the book the book that I have opened/ And now I´ve got to know I’ve got to know much more (…) The curiousness of your potential kiss/ Has got my mind and body aching (…) Like a soul without a mind/ In a body without a heart/ I’m missing every part”.


“Girl, you’ll be a woman soon”, Urge Overkill. Faz parte da banda sonora de um dos filmes que mais gosto do Tarantino. Nesta música é a voz.

“Tribulations”, LCD Soundsystem. Já fui muito feliz ao som desta música.

“Roads”, Portishead, “Into my arms”, Nick Cave e “Hope there’s someone”, Antony and Jonhsons. Quando quero “curtir uma fossa” e sangrar tudo é o que oiço. Depois, tudo passa.

 “Hung up”, Madonna. Foi-me oferecido num Natal. Perdi as vezes que ouvi o disco e as vezes que dancei esta música. “Time goes by so slowly for those who wait”

“Beijo sem” Adriana Calcanhotto. Hoje escolho esta, outro dia seria outra. Mas a música que mais gosto dela, apesar de a letra ser do Antonio Cicero, é “Inverno”. Qualquer lista que fizesse tinha que ter Adriana Calcanhotto. Não pela qualidade vocal. De facto, a voz dela não é o melhor. Interessa-me muito mais o que se aprende com as letras dela e onde nos leva. As descobertas que se fazem, tal como com o Caetano.

“Nessum Dorma”. Quando escrevo faço-o maioriatariamente em silêncio total. Nas raras excepções só consigo ouvir música clássica e ópera. Todas as óperas que assisti fi-lo porque conhecia as árias. E Nessum dorma que é o final de Turandot de Puccini, de todas as árias, é a minha favorita. 

“Oceano” na versão do Caetano. “Longe de ti  tudo parou/ Ninguém sabe o qu sofri/ Amar é seus deserto e seus temores”(...)”Vem me fazer feliz porque eu te amo” (...)“Esqueço que amar é quase uma dor só”.

“Cajuína”, Caetano Veloso. Caetano sempre. Tem uma música para qualquer estado de espírito. Para mim Caetano é o brasileiro. Pensa bem, escreve bem, fala bem, canta bem. Tanta qualidade num homem só. Podia ser qualquer outra mas hoje escolhi esta “Existirmos: a que será que se destina?” , uma versão da pergunta existencial de Heidegger. Convenhamos que um autor que é capaz de fazer uma canção com a pergunta das perguntas não é pouca coisa. A cena da canção remete para o encontro de Caetano Veloso com o pai de Toquato Neto (amigo e parceiro de Caetano na época da Tropicália que se suicidou no dia seguinte ao seu aniversário) em Teresina, capital do Piauí.

"La chanson d´Hélène", Mísia e Iggy Pop. Sou muito susceptível a vozes, para o bem e para o mal. Esta combinação de duas vozes, tão diferentes, o cantar e o dizer, a melodia e a língua francesa.

 “Hallelujah”, Rufus Wainwright. Apesar de o original ser do Leonard Cohen, prefiro a versão do  Rufus Wainwright. No ano passado fiquei chateada pelo prémio Nobel da Literatura ter sido atribuído ao Bob Dylan. Não por não lhe reconhecer valor literário, isso acho que tem muito. Mas acho que teria sido muito mais justo para o Leonard Cohen. (Mas eu tenho um problema de fundo com o Bob Dylan que é a voz. Não consigo, até hoje, ter aprendido a gostar da voz fanhosa, anasalada, com o sotaque arrastado do Minnesota).

“Lisboa que amanhece” Sérgio Godinho com Caetano Veloso. Um portuense escrever tão bem sobre Lisboa só pode ser amor: “..E já tudo pode ser/Tudo aquilo que parece/ Na Lisboa que amanhece/ O Tejo que reflecte o dia à solta...”. Prefiro a versão com o Caetano. Torna ainda a canção mais bonita. Existe cidade mais bonita no mundo?
“Deusa do amor”, Moreno +2. Depois dos livros de Jorge Amado, esta é a imagem que tenho da Bahia.
 “Perfect day”, Lou Reed Embora a história da canção não seja (tão só) um dia em NY é é esta a visão romântica de um dia de outono em NY.

“Dreamer”, Uh Huh Her. Descobri esta banda em NY que vi ao vivo e ouvi as músicas todas em contínuo durante meses.


“Consegui”, Arthur Nogueira com Fafá de Belém. Uma letra do António Cicero dedicada a Wally Salomão. Ouço em loop há semanas. 

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Web Summit

A coisa que mais sinto falta, no momento em que vivo numa cidade pequena e cuja característica não é ser propriamente ser académica/universitária, é ouvir pessoas com algo (realmente importante) para dizer. Discutir o mundo, a metafísica, os grandes problemas da humanidade, pensar. De preferência  que não seja na minha área. Lazer, dizem. (Definição de lazer: tempo de folga, de passatempo, de ócio, de descanso, distracção ou entretenimento, de uma pessoa). Em qualquer conversa com pessoas que pensam e falam bem aprendo qualquer coisa. E tenho gostado, particularmente, de ouvir falar sobre coisas que não domino.

Web Summit (re)lembra-me isto. De facto, o pior a apontar é o folclore e  a nova profissão de gente que não encaixa em lado nenhum mas que luta pela sua sobrevivência. Empreendedores, chamam-lhes. Pequenas empresa que abrem e fecham à velocidade do som ou da luz. Que não geram nada a não ser uma ideia cheia de ar. Eu sei que o conceito é bom a querer imitar o suposto sucesso das start up de Sillicon Valley em que um geek atrás de um computador é capaz de muita coisa. Ou a ideia revolucionária de alguém sem horário, nem lugar,  sentado num café em São Francisco ou em NY, como tantas vezes vi, gerir milhares de coisas, pessoas e ainda gerar muito dinheiro. Mas isso não é para todos e, muito menos, ao alcance de todos. Empreendedor, palavra que detesto, é uma palavra simpática para “vendedor da banha da cobra”. Eu ouço a palavra e apetece-me logo fugir. Não duvido nem quero comentar o encaixe financeiro para Lisboa de um evento como a Web Summit . A histeria dos preços proibitivos de/para Lisboa falam por si. Ou o êxtase colectivo da abertura que mais parece o festival da canção ou um mundial de futebol. O primeiro-ministro (PM) e o Presidente da Câmara de Lisboa, a abrir o evento e cada um a ler o seu discurso inglês foi de chorar. Se fosse de improviso, eu até admitiria o “bad english” (para citar o outro no discurso em Columbia University) mas a ler...  E o nosso PM até tem uma (boa) voz. O outro lado, pior, é lembrar-me as TED talks que só a palavra dá-me náuseas. Ainda se lembram daquele personagem que o Relvas foi buscar  porque o viu no YouTube? Este é o lado negro do empreendedorismo. As pessoas que se aproveitam da desgraça dos outros. Que se fazem pagar por um discurso vazio, carregado de soundbytes, de falso optimismo, de promessas de milagres mas que produz um efeito imediato que não se traduzirá em nada no futuro. A falsa sensação de felicidade momentânea.

Mas a Web Summit tem o outro lado que invejo muito. E só não estou lá porque i) não tenho (mais) férias para tirar, ii) os preços são tão absurdos que dava para ir uma semana para o Rio de Janeiro ou NY. Concordo com a definição do João Miguel Tavares no Público A Web Summit é a Igreja Universal do Reino da Tecnologia, e Cosgrave o seu pastor”. Só invejo o número (bom) de oradores de qualidade que ele consegue reunir num evento (a quem provavelmente paga ao preço do ouro). Mas, infelizmente, para mim, a província é isto. É não ter lançamentos semanais de grandes livros, nem lectures/talks de pessoas que têm algo de importante a dizer e ensinar, não nos cruzarmos com os melhores, não ter que optar porque não se pode estar em todo o lado ao mesmo tempo, a tal impossibilidade da ubiquidade e omnipresença. É isto que me faz falta. Quando estava em NY, o meu laboratório não era no Campus principal , onde vivia. Eu trabalhava no Columbia Medical Center onde estavam os hospitais e não (necessariamente) os intelectuais. Mas depois ia muitas vezes para a Low Library, ainda mais bonita para mim do que a New York Public Library em Bryant Park e sentava-me de braços cruzados só a olhar. Aquela ideia absurda mas romântica de que aqueles livros, que também são a história literária dos EUA, nos penetravam por osmose ou telepatia. Acontece-me muito isso, ir aos sítios onde pessoas que me interessam andaram, viveram, escreveram e morreram. Estar apenas e perceber o que poderiam ter sentido. E acontece-me isso, ainda, com pessoas que admiro. Partilharmos os mesmos metros quadrados e respirarmos o mesmo ar. Não precisamos falar. Precisamos apenas de estar juntos ali, e guardar isso na memória, não um filme ou uma foto no iphone. Um dia, numa conferência, ouvi o Siddhartha Mukherjee dizer que tinha ido à casa da Emily Dickinson em New England para perceber como é que aquela pessoa, apenas através daquela janela e naquele mundo tão recôndito, foi capaz de escrever aquela poesia. É assim que a minha vida é. De um nome vou para outro, conheço outro, um lugar, uma cidade, um hotel, uma memória, um pensamento, uma ideia, como um novelo que se desenrola num mar imenso, sem fim.


São momentos, instantes, interesses novos e diferentes que fazem a vida ter sentido. Se a Web Summit é o interesse alvo para muitos qual o problema? Há quem preferira Álvaro de Campos a Alberto Caeiro. Que bom, não?

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Insone

Acordo. Ainda é noite. Sinal que adormeci. Não consigo adivinhar as horas. Abro os olhos. Não acendo a luz. Sempre às escuras. Tudo me parece um sonho. Olho para o relógio e vejo que é agora. Percebo que esta é a realidade. E tudo volta. Uma elipse. A noite que que não acaba. O dia que tarda. A contagem decrescente. A espera. A dúvida. A incerteza. A angústia que parece não ter fim. Morro todos os dias um bocadinho mais. Na ironia do dia claro, o horóscopo na mesa do café: "Excelente momento para ter conversas esclarecedoras e chegar a pontos consensuais com pessoas que lhe interessem. Fase interessante para ajustar questões de relacionamentos, ter conversas importantes com pessoas que lhe são caras. O momento é de associação, favorecendo também contratos e uniões, ainda que temporárias, em prol de um objectivo em comum".
Será tarde?

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

“Ando tão à flor da pele que qualquer beijo de novela me faz chorar”

Morrem crianças de fome em África. Refugiados de todo o Médio Oriente fogem para onde não tem saída. Vivem miseravelmente em campos ( dizem que temporários). Portugueses que ficaram sem nada nos incêndios. O mundo anda ao contrário.  A chuva teima em não cair. A luz é de outono mas o calor é de verão. Nada combina. A noite chega mais cedo. Os dias são mais tristes e menores. As castanhas são o pronúncio outonal em “magoados fins de dia”.

É imune a (quase) tudo. Empedernece, cada dia, um pouco mais. Será a distância da imagem? Tudo longe via televisão.

O que a devia incomodar, desvaloriza. O que devia desvalorizar, derrota-a. Coisas insignificantes (ainda) a surpreendem.  As noites são mais demoradas. Tem mais horas que o comum dos mortais. Mas, infelizmente, “quem não dorme não sonha”.  

À frente, no aeroporto,  vai um menino de óculos, chupeta e fralda, guiado pela mão da mãe. Estão felizes, nota-se. Mas ela,  desfaz-se.  Vai embora. Chegou o inverno.

Pensou que estava curada, depois de ter vivido o inferno. Mas o esgar da realidade (re)lembra-lhe como o castelo de cartas pode desabar num segundo. Esta é a fronteira ténue do que parece estar bem. A tão escondida fragilidade. Apesar de parecer impassível. O que é que fez com o pouco que passou a nada? Dizem que tudo passa. Um princípio e um fim.

facebook