domingo, 31 de dezembro de 2017

"Tudo o que ganhei e tudo o que perdi"

Perdi o meu Blackberry com tudo o que tinha lá guardado. Tantas coisas insubstituíveis. Só me resta a memória. Perdi uma caneta de prata com a qual escrevia diariamente. Perdi quase uma dezena de livros que tanto lutei por eles mas alguém julgou tratar-se de lixo.Uma camisa que adorava.  As chaves do carro, duas vezes. Reencontrei-as.Como perder pode ser difícil. Resta aceitar. Há alguma coisa que não se perca ou que não se possa perder?

Felizmente, não perdi ninguém. É o melhor de tudo.

Um ano bom. Grande. Intenso. Longo. Mudanças. Um ciclo que termina. Ensinamentos, tantos. Aprendizagem. Novos caminhos. Novos primas. Buscas.

Passado. Presente. Futuro. Medo. Esperança. Conseguir perceber, finalmente. Aceitar. Não sem dor. Mas espera-se, sem mágoa. Crescer é isto. Ultrapassar.

Do que temos medo, afinal?  O que receamos que aconteça?
Será que o melhor (ainda) vem?
O que será, será.
“Existirmos, a que será que se destina?”





quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Até que as pedras se tornem mais leves do que a água

Mais uma vez, António Lobo Antunes (ALA), não escolheu o livro que escreveu. O livro é que o escolheu. Não esperava voltar a África, mas não conseguiu. Estava mais interessado na relação pai-filho. No entanto, (mais) um regresso a Angola, à guerra colonial, que nunca poderá ser esquecido. Tudo o que está no livro é verdade, nada foi inventado.Limitou-se a contar o que tinha vivido na guerra. Como o próprio assume, foi um livro muito difícil e complicado de escrever. Passou noites horríveis, ele que normalmente dorme bem, não tem pecados. Com sonhos maus e uma angústia enorme. Tudo isso voltou. O sofrimento continua presente.O sofrimento nunca mais acaba. “Ninguém desce vivo de uma cruz”. A guerra “deu cabo da juventude, da nossa idade madura e da nossa velhice”. Uma crueldade imensa. Ninguém ganhou esta guerra.

 “Ajuda-me a esquecer”.
Neste livro, tudo parece repetir-se. Mas tudo parece novo, ao mesmo tempo. Como se estivessemos a ler estas histórias do mal que a guerra fez a tantos, pela primeira vez. Parece um louvor à memória dos que morreram e dos que sobreviveram mas que parecem continuar lá. O que a guerra lhes roubou, senhores. Não saíram da guerra. Quem voltou de lá não voltou igual. Diferentes dos que cá ficaram. “Fugidios, bruscos, quase todos estranhos...”. As marcas permanentes que a guerra lhes deixou. A miséria da guerra. Sonhos permanentes com África que se repetem. Os medos e os pavores. Os insultos velados e explícitos. As imagens horríveis. A loucura. Os suicidas que se mataram sem explicação. A vergonha de expressar sentimentos. Violência atroz. Pessoas sem cabeça e sem orelhas. A ocultação da verdade inconveniente. Nunca contam o que se passou na guerra. A mentira piedosa. Sonhos de guerra onde acordam suados e exaustos.O medo, a vergonha e a ignorância de mostrar afecto, consolo e carinho. Sempre a viverem no passado e da memória que lhes ficou. Culpa e mágoa. A pena. A cabeça que não pára. Racismo. Machismo. Homofobia. Homossexualidade. Sexo. Violações. Infidelidade. A consciência ou a falta dela. Desânimo. Destruição.

Conta a história de um alferes que trouxe uma criança da guerra de Angola. Tudo gira à volta da matança do porco. Como em todos os livros de ALA, não é o argumento que importa, este sempre simples, mas a narrativa e a forma. Este é o segredo. Vários narradores, Prolepses e analepses. Espirais. Polifonias. Narradores vários. Descrições cinematográficas.

Os personagens raramente são bonitos. Os personagens quase todos sem nome: a filha, o filho preto, o alferes, Sua Excelência, a viúva, a prima, Fernandinho. Na sua maioria tristes, infelizes, melancólicos, mas todos com uma sensibilidade acima da média.

O filho preto que trouxe de Angola depois de lhe matar a mãe e o pai. Todos o avisam que quando crescer se vingará. Foi trazido por solidão ou remorso? Por amor ou como um troféu? Casou-se, num casamento infeliz, com Sua Excelência, uma branca que o despreza e o troça. Humilde. Subsidiário. Obediente.Desde o início há um presságio que o filho matará o pai no dia da matança do porco: “Lembro-me da minha mãe sem orelhas...Lembro-me do meu pai de bruços no chão... Lembro-me que você os matou... matou a minha mãe, matou o meu pai, destruiu tudo o que pôde e no entanto passou-lhe uma coisa qualquer por dentro que o obrigou a impedir que me matassem... juro que não me apetecia matá-lo, gostava dele...”.

A filha “sempre zangada, amarga, fala-se-lhe e não responde, sorrimos-lhe e permanece séria”. Sempre sozinha. Indiferente. Mais esquiva do que os gatos. Largou os estudos. Ninguém nunca a questionou, obrigou, aborreceu. Quis largar os estudos, largou. Aceitaram sempre. Nunca lhe ralharam. “acho que não gosto seja de quem for, de que criaturas podia gostar e de que serve gostar, o que se faz com gostar, o que se ganha em gostar...”. Drogada. Ressacada. Descuidada.

A mulher sempre discreta em tudo desde o primeiro dia. Tímida. Educada. Sem aborrecer ou incomodar ninguém. Começou a sofrer de guinadas no rim. Descreve tão bem a dor com imagens. Descrições cinematográficas. “pedras no rim a comerem-na sem descanso com aqueles dentinhos horríveis, a alcançarem-lhe o fígado...é o sangue a apodrecer, é o corpo que desiste... As pedras no rim que se tornavam a pouco e pouco mais leves do que a água.  Um cancro no rim que lhe invadiu o corpo inteiro..A degradação com a doença. O sofrimento. O declínio. A agonia. A morte a chegar.

Todos os personagens partilham desta falta de amor, uns porque têm medo de o mostrar, outros porque não o sabem fazer, outros porque não foram ensinados, outros porque acham que não foram (de todo) amados. Quem sabe um livro sobre este medo?





quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Orfãos

Numa mesa estão sentados Helen e Danny (Isabel Abreu e Tónan Quito). Parecem estar a celebrar alguma coisa. Entra Liam (Romeu Costa), irmão de Helen, coberto de sangue. Liam começa por contar uma história incongruente e depois percebemos que é muito pior. A descida ao inferno. A violência gratuita. O racismo. O preconceito. O acaso. A escolha entre o bem e o mal. A violência a troco de nada. As marcas profundas da infância. Família. Valores. O que faremos nós perante situações limite? Até onde estaremos dispostos a ir? Há limites para defender os nossos? O limite do amor. Desilusão.

Este jantar, dividido em quatro actos, que se separam com luzes psicadélicas e um som ensurdecedor a lembrar o filme “Irreversible” . Descobrimos nesta hora e quarenta segredos, omissões, mentiras, encobrimentos de quem se ama. Qual a fronteira ética e moral? O que são os valores? O que uns fazem pelos outros, o que têm que mostrar para serem aceites e não se desiludirem. Até onde se pode ir? Onde está o limite?

Poderíamos reduzir Liam como psicopata, Helen como má que faz de tudo para proteger o irmão e Danny como o bom, cheio de valores. Mas perceberemos que nada é estático e que o mundo não se divide entre bons e maus. Tudo muda, de repente.

Saímos a pensar no que, por amor, seremos capazes de fazer por alguém.Até que ponto estamos dispostos a ir para proteger ou salvar outra pessoa? Mesmo que não haja salvação possível nem do que fugir.  

Encenação de Tiago Guedes
Texto de Dennis Kelly.
Tradução de Francisco Frazão.





sábado, 23 de dezembro de 2017

Sete anos sem ele

Estou sentada à espera de ser chamada. Falta de ar. Dia de crise. Bronquite. Bronquite asmática. Asma brônquica. Asma alérgica. Mas, de facto, não sou alérgica a muita coisa. Tenho (apenas) as imunoglobulinas aumentadas 1000 vezes. Corticoides. Cortisona. Optam pelos anti-inflamatórios que não sejam não-esteróides. Brometo de ipratrópio. Salbutamol. Budesonida. Flixotaide. Cansaço. Pieira. Gatinhos. Panela de pressão. Borbulhar. Esponja. Hiperventilação. Peixe fora de água. Insónia. Mal-estar. Cetirizina. Bilaxten. Descanso.

Hoje ela disse-me que a imagem mais remota que tem de mim é de num dia de verão muito quente, dia de tudo a arder em volta, eu a caminhar calmamente, parar e dizer: “não entres em pânico, está a começar uma crise de asma. Eu não tenho a bomba e preciso de oxigénio. Liga por favor para o INEM”. Nesse dia, o INEM chegou rapidamente mas não tinham oxigénio. Lembro-me da médica me dar a mão e pedir-me calma, apesar de eu estar deitada mais do que calma. Nesse dia uma amiga que eu não sabia grávida foi comigo na ambulância a alta velocidade para o hospital. Ela não teve medo. Eu não sabia. 

O meu avô morreu há 7 anos. Passava pouco das 8 e recebemos um telefonema. Nesse dia, eu dormi em casa dos meus pais. A minha mãe foi acordar-me porque uma das minhas tias queria falar comigo. Disse-me ao telefone a chorar: “O avô morreu”. O mundo parou. Não consegui dizer nada. Petrifiquei. Como é que podia ter morrido se estava, apesar de internado, tão bem na noite anterior? Ele que sobrevivera a dois enfartes num mês. Ele que nunca estivera gravemente doente na vida. Ele que nunca estivera internado. Um enfarte atirou-o para a cama de um hospital e nunca mais de lá saiu. Perdeu o apetite. Perdeu peso. Perdeu a função renal. Perdeu quase tudo. Mas nunca perdeu a consciência. Que saudades que tenho do humor dele. Do riso dele. E conversava tanto. Que saudades do “minha neta”.

Há um ano, exactamente neste dia, entrei com a maior das confianças numa sala. E saí de lá cega de desânimo. Acho que nunca me recuperei. Ainda hoje não consigo lembrar-me do que foi dito. Vou aprendendo devagarinho a não acreditar.

Ontem mandaram dizer-me que a minha pressa não era urgente. A minha esperança morre, a cada dia, um pouco mais. Tudo é espera e incógnita. A resposta chegará algum dia. É uma questão de tempo e paciência.

E depois penso naquele senhor de 91 anos, a idade que o meu avô tinha quando morreu, que está desesperado, nota-se no tom de voz. Quer uma receita e não pode esperar porque tem muito que fazer. Tem a filha no hospital. A filha tem 59 anos e tem um cancro no rim. Já foi operada quatro vezes. E naquela casa onde eram dois, agora resta um. Está sozinho, nesta época do ano. Há sempre pior.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

A B.

Adio este texto desde Agosto. Desde o dia que soube. Visivelmente impassível. Mas as forças pareceram faltar-me nas pernas. Um leve desiquilíbrio. Uma momentânea tontura. Um dia quentíssimo. Lindo. Longo. Imenso. O meu sinal externo de desespero é sempre a nausea. Um dia sentiu uma dor no peito.  Era um cancro na mama. Uma história tantas vezes ouvida e lida. A não ser que a morte nos chegue fulminante, e sem aviso, acontecer-nos-á a todos, um dia.

A B., como se diz tecnicamente, tem um bom prognóstico. Foi operada em tempo record e tem a sorte de ter um pai e um irmão médicos. E uma prima oncologista no hospital onde é tratada. Tem, felizmente, o que falta a muitos: uma roda de gente a ajudá-la neste momento difícil. Nada lhe falta. Tem amigos de fazer inveja.Nas horas piores, o irmão tratou-lhe dos efeitos secundários dos tratamentos.  Primeiro cortou o cabelo, pelos ombros, depois curto e depois rapou-o.

A B. tem mais 4 anos do que eu. Convivemos muito em crianças. Foi sempre grande. Ou eu que sempre a vi assim. Bebemos muita groselha. Jantamos tantas vezes naquela mesa redonda na sala da avó C. com um braseiro no meio. A mesa das crianças. Na semana passada fez 30 anos que a avó C. morreu. Como na morte dos meus avós foi ela que recebeu o aviso da morte pelo telefone. Lembro-me desse dia. Apesar de terem passado 30 anos.

A B. foi quem andou comigo ao colo quando entrei no curso que não queria. No tempo em que a internet era rudimentar. Foi ela que me apareceu à frente na universidade e me salvou o dia e a vida. Foi ela que me mostrou tudo. Um dia inteiro comigo. A B. não sabe o significado que teve na minha vida por causa deste dia. Foi ela que me fez ver o futuro com optimismo.  (Como a mãe dela me diz, até hoje, foi quem levou a minha mãe para o hospital naquele dia quente, 21 de maio de 1979).

Quando nos dias piores, de desânimo, sem razão, sem explicação, que não devíamos dar o significado exacerbado que não têm, é disto que nos devemos lembrar. Há sempre melhor e pior. E vivo, por opção, sempre como se o mundo fosse acabar amanhã. Quem gostamos pode faltar-nos a qualquer momento, sem aviso, de surpresa. E eu não quero deixar nada por dizer nem por fazer. Não vivo no futuro nem no passado. Vivo no presente. A aproveitá-lo e sem grandes questionamentos ou arrependimentos. Sem certezas, com muitas dúvidas. Mas sem nunca evitar nada. A aproveitar tudo. Na corda bamba. No precipício. 

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Quais as tristezas que escondemos?

Quais são as tristezas que escondemos? Quantas? Qual o tamanho? Como se mede? Alguém consegue ver? O que provocam? Como influenciam? Vale a pena? Qual o sentido? Será necessário? Depende-se dos outros? Perde-se a cabeça? Atira-se tudo pelos ares? Qual o caminho? Justifica-se? Não causa estragos? Desmorona-se? Sobrevive-se? Será bom? Será mau? Um recomeço? Uma oportunidade? Um sinal? O mundo acabará? Fim? 
Qual será a resposta (certa)?
Dias arrastados. Noites imensas.
A espera.
Não parece ter fim. 

Em que se traduz o medo?

Cidade gelada. Os primeiros flocos de neve ameaçam cair. Tudo visto da janela. Não se experimenta a temperatura real. Tudo é espera. O tempo que não passa. Pessoas apressadas. Filas. Bebés que choram. Olhos vermelhos de quem não dormiu e atravessou vários fusos horários. Roupas amassadas de quem viaja. Sítio de pouca permanência. Tudo é volátil. A escolha, para enganar o tempo, não é difícil entre escadas rolantes, elevadores ou escadas. O tempo não importa. A noite começa a aparecer. A tristeza de um fim de tarde de domingo. Tudo é impessoal. Ninguém se conhece. Sala enorme. Suposto conforto. Cadeiras de vários formatos. Sofás que parecem camas. Mesas de trabalho. Televisões várias e imensas. Música ambiente que não se percebe o objectivo. Comida à descrição. Nada apetece. Olho para tudo e nada me entusiama. Só suspiros. Inspirações e expirações longas. Leve dor de cabeça. Saberei (mais tarde) que no meio daquelas pessoas está uma que conheço (bem). Mas a coincidência hoje não funciona. Probabilidade. Acaso. Não nos cruzamos apesar de partilharmos, a mesma hora, os mesmos metros quadrados. Olhar sem ver. Tenho um nó no estômago. Não é pânico nem desespero. Tento desculpas para sentimentos piores. Tento convencer-me que é assim que deve ser. O medo de falhar, sempre ele. Há pior sentimento? A expectativa. Experimento a pior das solidões embora rodeada de pessoas. Poucas vezes na vida me senti tão apoiada. E mesmo assim, só. Conto os minutos que passam. Só quero que a hora chegue.Podia aproveitar o privilégio. A sensação de ser um momento único e talvez irrepetível.Não consigo. Sou apenas uma criança com medo.Todos tentam convencer-me que estou preparada. Só eu não consigo acreditar. Não me deixam só. Tento comer. Nada me apetece. Apetece-me coisas que não consigo comer. Horas assim.Tenho momentos. Só penso nas palavras “depois” e “sobrevivi”. Não tenho vida depois. Só antes. O meu olhar deve denunciar-me. Imagens que passam pelos meus olhos que sei de cor. Perguntas que posso não saber responder. Conversas. Telefonemas. Vozes que sossegam. Depois de cinco horas de pensamentos e hipóteses, levanto-me. Exausta. Arrasto-me. Destino seguinte. Náusea. Atraso. Neve que cai. Experimento a temperatura real. Não me protejo. Podia ter sido a primeira a subir para o avião. Troco o privilégio por sentir a neve a cair. Deixo-me estar. Sinto-me gelar. Vejo o casaco e sinto o cabelo cobrirem-se de neve.Quando não posso adiar mais, subo lentamente. Sou a última a entrar.Não podia ser mais adequada a imagem: o avião cheio e eu sozinha na executiva. Já nem medo tenho de andar de avião.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

O ano em que morri em NY

Milly Lacombe começa por falar de NY. Uma descrição cinematográfica de quem viveu perto de Union Square, entre a 1st Avenue e a 14th Street, entre o East Village e o Soho. Do pequeno almoço no Jack’s Wife Freda, uma instituição. Das idas a St Mark’s Bookstore. Da sua vida de procrastinação e de proper wife “cuidava dela, da casa e escrevia, e ela completava a nossa renda”. De como era movida pela “felicidade dos ignorantes”. Da rotina de uma new yorker que era freelancer. A vida perfeita que teve um fim. Este é o mote.

O livro divide-se em duas partes: morte e renascimento. A morte chegou “em NY numa manhã ensolarada de sábado”. A pergunta das perguntas, “a mãe de todos os questionamentos: “por que existe alguma coisa em vez de nada?”,  que Caetano adaptou a: “Existirmos: a que será que se destina?”. E o livro é o desenrolar do novelo do nada em que a autora se encontra até à sua reconstrução.

Ficamos a saber que o grande problema da autora era a arrogância e que era a pessoa que deixava e que nunca a que era deixada. Nasceu para ser conquistada e amada: “eu era a mais amada, a mais desejada, a mais cortejada, a mais segura, a que não sentia ciúmes”. Que emendava relacionamentos. E percebe-se  (tão bem) como é que as relações dela duravam tanto. A pessoa que traía e que nunca a que foi traída e provou a dor que isso provoca.

“Evite ter certeza daquilo que você desconfia”. A ficção e os delírios surgem com a ida da mulher para Berlim. Sozinha em casa. Começou a questionar tudo. Perturbada. Maníaca. Chorava muito durante o dia. Angustiada. Começou a ser questionada pela inércia, pela falta de socialização. Estranha. Distante. Sentia alguma coisa diferente.Estava a ficar maluca. Não conseguia (mais) trabalhar.  A desconfiança de estar sempre a olhar para o telefone, o grande inimigo dos tempos modernos, o aparelho que mais lares estraga “deixava o aparelho com a tela sempre para baixo”. A suspeita. Sempre a dúvida. Até ao fim. Passou de uma mulher segura ao oposto. “Você me olha como se eu tivesse morrido”. De pessoa segura, madura e confiante passou a obsessiva. Carente. Sombria. Em simultâneo a ex e melhor amiga foi diagnosticada com cancro.

“Não há amor que sobreviva ao sufocamento... assim como o fogo, o amor precisa de oxigénio para arder”. Transformou-se numa pessoa “sem graça, chata e pobre”. A companheira não a reconhece, não sabe o que quer, não está feliz, está sufocada: “você mudou demais, se trancou nesse apartamento e em sua dor, em seus medos. Sinto saudade de você, da versão de antes, que era alegre, não tinha medos..”.  O que parecia ser uma suspeita, parece transformar-se num facto consumado. Aliado ao problema prático de ter 44 anos, ser incapaz de se sustentar sozinha, sem nenhum dinheiro guardado e “um salário de merda” que se podia resumir em “uma pessoa financeiramente fracassada, moralmente falida e irremediavelmente sozinha”. É assim a primeira parte do livro:“Meus dias se resumiam em esperá-la voltar para casa e imaginar a traição”. Angustiante. Doloroso. Deprimente. Fim.

“Morrer dói, mas renascer é lindo”
A segunda parte do livro é o renascimento. A aventura do descobrimento.  Um retiro, longe da civilização, no meio da Amazónia, na margem do Tapajós, um rio que parece um mar, com um grupo de pessoas (desconhecidas) da esquerda caviar, a comerem  grãos, acaí e tapioca. Agora uma pessoa que não era mais amada, desejada nem cortejada.”Uma pessoa vazia de sentimento”. Havia-se transformado numa pedra. A pessoa que não conseguia ficar longe do telemóvel 10 minutos.  A pessoa que nasceu “para brilhar, ser protagonista, feliz e amada” a dormir numa rede. Todas as pessoas do grupo a incomodavam, principalmente, as que se riam muito sem motivo. Inicia-se no ritual do rapé (planta medicinal dos índios), ela que nunca tinha usado nenhum tipo de droga ilegal. “somente quando experimentamos o nada é que estamos prontos para tudo". Não há nada como bater no fundo para subir às alturas. Ou a frase: “Não há mal que dure sempre nem bem que nunca acabe”. Munida dos dois volumes de Os irmãos Karamazov de Dostoiévski e de uma atitude fechada, arrogante, preconceituosa e julgadora foi baixando a guarda ao longo dos dias. E nesta semana descobre-se e renasce. A pessoa que estava num relacionamento que repetia a dinâmica dos pais. No retiro falam muito de sexo, de relações que não resultaram, de medos, de novos amores, de (in)felicidade, de fraquezas, de inseguranças. Com o passar dos dias foram despindo-se de máscaras e muros, começaram a expor-se em público e a assumir fraquezas. Começaram a permitir-se admitir que sentirem-se amedrontrados, indefesos e desprotegidos não é um defeito. Todos precisamos de afecto, carinho e um colo. Não somos autosuficientes o tempo todo. Afinal, somos algum dia, “apenas crianças que tentam sobreviver e ser felizes neste mundo tão cruel e cheio de expectativas”. E sai do retiro não com mágoa nem raiva da ex (que não abandonou e não foi culpada sozinha) mas com a visão positiva de uma história linda que construíram. Aquilo que se chama reciprocidade e simbiose: amar alguém que a amou de volta.

Só a autora poderá dizer o que é de facto verdade ou não. Aqui tudo parece verdade com um pouco de ficção que não irá além da troca de nomes, número e nome de irmãos e sobrinhos e a morte da mãe. O resto, só ela e as (os) intervenientes directas (os) poderão atestar. Sozinha, pegou em algumas garrafas de vinho, alguns livros e o computador e isolou-se na montanha para escrever. O livro é o resultado da fórmula que a autora encontrou para superar a dor. O melhor do livro é talvez o sentido de humor no meio de tanta dor. Partes do livro são crónicas já publicadas. Textos conhecidos. Não faz diferença para não os conhece.

Como leitora inclui alguns dos grandes que vão de David Foster Wallace, Virginia Woolf, Dostoiévski, Eça de Queirós, Machado de Assis, Proust, Camus, Chomsky, Guimarães Rosa e cita até alguns deles. Para além dos autores que cita e lê, fala de Hopper e do Nighthawks (que é a capa do livro Cenas da vida americana da Clara Ferreira Alves). Hopper que pinta a solidão como ninguém.

Tempos antes de publicar o livro, Milly disse tratar-se de “um romance auto-biográfico, género chamado auto-ficção”.  O começo é difícil, amargo, angustiante, sentimos pena da protagonista (eu incluo ainda a solidariedade com a pessoa que supostamente trai) mas depois tudo acaba em bem, como se de um exorcismo se tratasse. Sem dizer nada de novo, a história não ser original e o argumento ser (apenas) o quotidiano que é a vida, leva-se (sempre) alguma coisa e não causa dano algum.



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