segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O sistema nacional de saúde (SNS)

Juro que a próxima vez que ouvir falar mal do SNS português: vou insultar ou segurar-me para não bater na pessoa que o estiver a fazer. Há umas semanas, a Clara Ferreira Alves falou na sua crónica no Expresso, a propósito de um artigo do "The New York Times”  que falava da exorbitância do que se paga no sistema americano por um simples corte na cabeça que nem de sutura de linhas precisou.

Em 2006, quando estive a primeira vez em Houston, a fazer parte do meu doutoramento, fui parar ao hospital com um enxaqueca dilacerante. Depois de ter acordado às 5 da manhã, num domingo, para começar uma experiência às 6 porque tinha almoço marcado com amigos em “Indian Town”. Almocei comida indiana quase nativa, que para o comum dos mortais, deve ser prejudicial, imaginem para mim que (dizem que)sofro da vesícula. E à noite, como se não bastasse, comi pasta italiana caseira. Cheguei a casa com uma dor de cabeça latejante... Não sei se foi de ter madrugado e ter dormido pouco, se foi da comida indiana, se foi do vinho italiano. Até hoje não sei a razão do “se”. O que sei dizer é que como a dor só aumentou, não tive como n telefonar a umas amigas, sendo uma delas na altura estudante de medicina. Levou-me para o E.R. de um hospital que me lembro que se chamava de St Luke’s. Tenho que realçar que Houston é mundialmente conhecida pelo MD Anderson Center, um dos mais prestigiados hospitais de tratamento de cancro e também pelo seu Medical Center. Eu estava com uma enxaqueca tão grande que antes dessa, só uma fora tão má, que me obrigou a estar uma noite inteira no hospital porque suspeitavam de um problema neurológico. Quando cheguei ao hospital, não o achei nada como aqueles que se via nos filmes, nem em número de médicos, nem na assistência, nem na azáfama e nem no tamanho.  A sala de espera parecia de um pequeno centro de saúde. A única coisa que estranhei foi não ver doentes nem médicos. E por isso,  estranhei a demora a atenderem-me. Fui chamada para a triagem, que foi feita por um enfermeiro, na qual me fez um interrogatório sem fim e me mandou preencher papéis, que eu naquele estado, não sabia preencher. Pedi uma cama. Colocaram-me às escuras num quarto, como pedi. Num hospital, que parecia vazio, a médica demorou uma eternidade a assistir-me. Não tenho noção de quanto tempo esperei, mas não foi pouco. A médica, que até era simpática, antes do exame neurológico, fez-me um interrogatório. Começou pelas óbvias questões das drogas ilegais e foi por aí adiante. Eu repeti-lhe várias vezes que estava a morrer de dores de cabeça. E ela, quando finalmente terminou, disse que me iria prescrever codeína + tramadol. E aí eu comecei a ver outra luz! E prescreveu-me vicodin (sim, essa droga na qual o Dr. House é viciado) para SOS. Quase que me abracei a ela de tanta alegria! Deram-me a injecção intramuscular e obederam ao protocolo da vigilância. Quando saí do hospital já não articulava bem as palavras. Dormi quase 48 hrs seguidas, e quando finalmente acordei, tinha os lábios rebentados. Nunca cheguei a perceber se por causa das drogas legais ou por causa da vesícula/ fígado... Os meus amigos médicos que me perdoem, mas não sou expert... A parte pior chegou umas semanas depois, quando me apareceu a conta do hospital... Pelo que percebi, o seguro pagou uma parte, e a parte que eu teria de liquidar ultrapassava os 400 dólares (isto em 2006)... Podem imaginar o meu desespero, de um “tombo” destes no meu parco orçamento de aluna de doutoramento!!

Anos depois, já em NY, tinha uma amiga em minha casa. Fomos jantar a um restaurante grego, e entre sangrias, peixe e pão, terminamos a noite a beber vinho do Porto num bar em Hell’s Kitchen. Posso garantir, que apesar de parecer que enfrascamos muito, isso não aconteceu. No dia seguinte a minha amiga teve uma dor de barriga. Uma dor localizada que depois se começou a espalhar. De tarde, por conselho de outro amigo, estudante de medicina fomos ao Presbyterian Hospital/ Columbia Medical Center. Podia ser uma apendicite. As urgências deste hospital, por onde eu passava quase sempre, quando saía a horas tardias do lab pareciam verdadeiramente os E.R.s que vemos na tv. Desde baleados, drogados, grávidas, quedas de crianças... de tudo vi ali. E sim, este serviço parecia sempre activo. A minha amiga foi colucada numa maca a soro. Começaram por lhe dar qualquer coisa para beber para fazer um CT.  Não tinham certeza de nada. Podia ser apendicite, mas também podia ser uma pancreatite, ou nenhuma das duas. E as horas foram passando. Eu e o meu amigo quase médico, enquanto ela esperava deitada pelo diagnóstico, fomos as nossos labs, e ainda tivemos tempo de jantar. Quando voltamos tinha mudado de sítio. Estava agora próximo das secretárias dos médicos. A médica que a estava a assistir ia acabar o turno. Era interna de anestesiologia e morava no prédio do meu amigo quase médico. Desde esse dia passou a perguntar-me como estava a minha amiga e a dizer-me “olá” nos corredores. Até hoje, não me esqueço que se chama Emily. Durante a madrugada, entre TACs, injecções para as dores... fomos passando o tempo. Ainda nos ofereceram de comer, sandes e sumos, e ainda umas cadeiras. Eu e o meu amigo ainda tivemos tempo de ir a um café em frente ao hospital, Jou Jou. E ainda tivemos tempo de ver a chefe de turno a “flirtar” um dos especialistas de serviço no café.  Tive ainda tempo de adormecer com a cabeça pousada em cima da cama da minha amiga. E de ser acordada pela médica para me dizer que como a minha amiga tinha um excelente seguro de saúde, iria ficar internada. Disse-me que iria dar-lhe morfina e que seria transferida de serviço. Quando lhe estravam a administrar a morfina, o médico disse-lhe para avisar quando ela começasse a sentir o efeito. A seguir a isto, mandaram-me para casa passava pouco das 6 da manhã.  Umas horas depois regressei ao hospital e a C. estava internada mas estava quase a ter alta. Os quartos eram individuais, pareciam quartos de hotel, a cama era toda automática, inclusive dava para pesar. Tinha casa de banho privativa. E mais uma vez, sumos e sanduíches não faltavam. A conta, vim a saber depois, foi astronómica. A C. tinha um excelente seguro de saúde pago pela Harvard University. Mas sabem por quanto ficou estas pouco mais de 24 hrs? Mais de 5000 dólares.

Quando ouço alguém a queixar-se do nosso sistema de saúde apetece-me dizer-lhe a sorte é que não têm acesso à factura detalhada... e alguém paga essa conta sem os próprios nunca saberem o valor real das coisas...

domingo, 15 de dezembro de 2013

O fim de semana ideal

Fui buscar os meus sobrinhos a casa da mãe na sexta. Estava com a S. Os meus sobrinhos adoram o meu carro. E toda a conversa a caminho de Braga foi à volta disso. A S. conheceu-os nesse dia. Fartou-se de rir com eles principalmente quando o meu afilhado lhe disse:
-Gosto de tudo de carros, de chaves de carros e de lavar carros!

Quando chegamos a casa dos meus pais, o meu irmão já tinha ido buscar a Bu. Os meus sobrinhos deliram com a Bu. E o mundo para a Bu pára quando vê os meus sobrinhos. Pediram para ficar com ela. E eu não tive como não deixar porque ela é uma vendida e troca-me, sem nenhuma dificuldade, por eles.

Ontem, os meus sobrinhos foram passear com o meu irmão pelo centro e encontraram muitos amigos. Quando chegou a vez de andarem no comboio de Natal, o motorista não queria deixar a Bu entrar. Ao que o meu irmão lhe disse:
-Ou entramos todos ou não entra ninguém.
Perante este cenário, o motorista não teve outro remédio a não ser autorizar a Bu entrar...
Quando chegou a hora do conto na Centésima Página, o meu irmão teve que levar-me a Bu a casa porque, aí sim, não tinha hipótese de entrar. O meu afilhado, perante este cenário, já não queria ir à hora do conto. Queria ficar em casa comigo e com a Bu. Lá tive que entrar no carro e ir com eles. O meu irmão ficou com a Bu a passear nos jardins da Avenida Central e eu fui com os meus sobrinhos à livraria. Chegamos atrasados, como quase sempre, e o conto tinha terminado. Mas ainda chegamos a tempo de uma actividade. As crianças todas sentadas num tapete a construir uma colagem de um anjo de Natal.

O K. é uma simpatia. Mal chegou, entrou no meio da roda de meninos, sem qualquer receio. Sem ninguém lhe perguntar nada disse, em voz alta, o nome dele, que tinha uma cadela que se chamava Bu, e ainda apontou para trás para mostrar a titi e o irmão. O meu afilhado é o oposto. Não se quis sentar junto aos meninos se eu não estivesse com ele. É um anti-social como a madrinha. Para ele uma dezena de meninos é uma multidão. Passamos o resto do tempo a colar o anjo de Natal e o meu afilhado ainda desenhou a cara. Quando os meninos todos sairam fiquei eu, o K., o afilhado e ainda um pai com um filho com uns 9 meses. Os meus sobrinhos adoram bebés. E o introvertido do meu afilhado perdeu a vergonha com o pai do menino que se chamava Vasco.
- o meu avô chama-se Vasco - disse o afilhado
- E tenho uma cadela que se chama Bu e que faz muitas asneiras. Fez cocó no sofá da avó e roeu o tlm da titi, até comeu a tampa!
O pai do Vasco só se ria e o Vasco saltava enquanto o pai o segurava debaixo dos braços. O meu afilhado ainda teve coragem para mais uma coisa:
- Posso pegar no Vasquinho?
E o Vasquinho lá andou, com a ajuda do pai, entre os colos o K. e afilhado.

Depois de jantarmos na casa dos avós fomos para casa. Queriam ver o aviões mas por problemas técnicos acabaram a ver montagem de legos no tablet. Eu no meio, e os dois homens da minha vida, um de cada lado. Eu, que costumo ser uma friorenta, parecia estar nos trópicos, tal era o calor! Quando o afilhado adormeceu, o pai veio buscá-lo para a cama dele. A Bu, ignorando quem é a dona e quem a salvou de um futuro que não parecia muito risonho, trocou-me facilmente para ir dormir no quarto do afilhado. Ainda fui chamar por ela mas ignorou-me completamente. Acabei a dormir com o K. que é um verdadeiro aquecedor mas que, felizmente, não ressona. Adormeci tarde, como sempre, depois de muito ler.

Sei que o toque de alvorada foi pouco depois das 7 porque tenho uma vaga memória de ter ouvido, ao longe, o meu afilhado e o meu irmão a tomarem o pequeno-almoço. Eu continuei a dormir acompanhada pelo mais velho que dormia ocupando quase a cama toda.... e eu sem reclamar. Por volta das 11 acordamos com a Bu a saltar para cima de nós.

Fomos almoçar com os avós e à tarde os meus sobrinhos foram ao cinema com o pai ver "Frozen". Nem preciso descrever a cena da Bu de cada vez que os meninos se vão embora. Dá dó! Chora, soluça, uiva, raspa as patas na porta... nunca vi devoção maior.

copyright: Centésima Página

copyright: Centésima Página

copyright: Centésima Página

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

A destruição

A Bu, que está quase a tornar-se adulta, faz cada vez mais asneiras. Quem a vê pessoalmente, à primeira vista, é inofensiva e tem um ar muito meigo e doce. O problema da Bu são os vícios. Meias, ténis, chinelos, peluches, pão, rolos de papel, fotografias, bolas de ténis só, para escrever alguns. Todas as meias que encontra leva-as para a cama. Não lhes encontro encontro estragos, ainda não percebi o que faz com elas...Nos ténis interessa-lhe particularmente os atacadores. Os peluches é um misto de os trincar com cheirar, mas a verdade é que não os destrói, só lhes arranja uns defeitos. Fotografias e bolas de ténis é para roer até não sobrar nada. A porta da casa de banho nunca pode ficar aberta porque a Bu adora desenrolar o papel higiénico e fantasiar-se! A Bu não é grande apreciadora da comida seca que lhe sirvo diariamente. Acho que só a come quando não aguenta mais a fome. O que ela delira é com pão.


Mas o inimaginável aconteceu no domingo! Por vezes, deixo o telemóvel a carregar em cima do balcão, na cozinha. Foi o que fiz no domingo de manhã. Só que o problema é que, em vez, de o desligar quando acabei de tomar o pequeno almoço, deixei-o todo o dia. O fio do carregador devia estar a cair ligeiramente. Imagino que a Bu olhasse para o fio e desafiou o seu físico para tentar alcançá-lo. Devia ter sido isso que fez. Quando cheguei a casa à noite não reparei que o telemóvel não estava no sítio que o tinha deixado... Quando me baixei para ver o que estava no chão, no meio de várias coisas destruídas, encontrei o meu BB!! Estava irreconhecível... Respirei fundo e não me descontrolei. Percebi que funcionava... contentei-me com pouco... E a Bu olhava-me com aquele ar tão terno dela...













quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O espírito natalício

Chego a casa de madrugada e tenho na minha cama 3 homens e a Bu. Os dois pequenos, um de cada lado, com o pai no meio. A Bu acordou comigo a abrir a porta e espreguiça-se. A tv está acesa no Disney Channel. O pai muda-se com o mais velho para o quarto deles e deixa-me com o mais novo. A Bu, essa ingrata, segue-os e instala-se confortavelmente no fundo da cama do meu sobrinho mais velho. E eu, qual dona rejeitada, ainda me ponho feita parva a chamar por ela... A Bu, muito bem instalada, o único gesto que faz é levantar a cabeça e ignorar-me... Volto cabisbaixa para a cama e contento-me em dormir com o homem que nunca me abandona. Para este “piqueno” tudo o que eu faço é que está bem feito e tudo o que eu tenho é que é bom! Depois é capaz das questões mais espantosas. Como ele vê uma pilha de dezenas livros na mesa ao lado da minha cama, que mais parece a torre de Pisa, tal o equilíbrio que parece lutar contra a gravidade e não desabarem como um baralho de cartas: “Para que servem estes livros todos quase a cair?”.
- Para eu ler.
-Mas não os lês todos ao mesmo tempo... podiam estar onde estão os outros (quer ele dizer nas estantes.

E eu dou comigo a pensar que ele tem razão mas não sei como lhe explicar que o meu interesse momentâneo por aqueles livros não é directamente proporcional à velocidade que os consigo ler... E daí, aquela pilha que se amontua com o passar dos dias...
De manhã fui dar com ele, mais a sua inseparável chupeta e fralda, a olhar para o pinheiro que o pai e o irmão tinham feito no dia anterior.
-Afilhado, a árvore está bonita.
- Está mas não fui eu que a fiz. Foi o K. e o pai. (Lá sinceridade não lhe falta). Eu gosto é de olhar.

O artista da casa levanta-se e vai contemplar a árvore. Ao contrário do irmão não se limita a olhar. Arranja as bolas, os pais Natal, as fitas, como se alguém lhes tivesse mexido. E depois, com um grande sorriso, continua a contemplação.

São 7:45 da manhã e dois dos homens da casa estão acordados. E eu que não adormeci antes das 4...


segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

valter hugo mãe no 14º aniversário da Centésima Página

A apresentação do livro “Desumanização”, o mais recente de valter hugo mãe, começou pela classificação de estranho. Para quem conhece os livros de valter, este é muito diferente e é isso que causa a tal estranheza. A principal diferença centra-se na deslocalização no espaço. O hino  à portugalidade e Portugal que são sempre tão caros a valter, desaparecem neste livro. A escrita fluída dos seus livros também não existe neste. Os personagens são islandeses. Daí a impossibilidade de qualquer comparação. Nada pode separar tanto um povo. Depois, a imagem visual é quase um inédito. As palavras neste livro parecem mais escolhidas. Este livro parece um grande poema . Quase uma oração ou evocação.

Quando o valter começou a falar referiu a intensa relação que tem com a Centésima Página. Uma relação pessoal, segundo ele, muito antiga que “antes de ser conhecido já as pessoas desta livraria acreditavam em mim”. E disse também  que acha que esta livraria é uma das mais bonitas do mundo.

Valter começou por dizer sobre este novo livro que procura escrever livros que não sejam redundantes, que não sejam um livro “parte 2”. Procura escrever livros onde “não haja receitas”. Segundo o próprio, andava há muito tempo a ganhar coragem para escrever um livro que não parecesse um português a escrever sobre a Islândia, mas um islandês. Acrescentou que os livros não vivem do relato puro e simples. A trama deste livro não é a grande questão. O que lhe interessa é a intensidade e que os personagens sejam reais.

Cresceu a pensar que a Islândia era um país de fantasias, crendices estranhas, mitologia e do universo fantástico. Realçou que os islandeses foram capazes de derrubar um governo e fazer os banqueiros pagar a crise. A Islândia tem um inverno agreste e um verão que é uma tristeza. É um país interior, enclausurado. Tem 300000 habitantes, menos que a população do Porto, mas é o país que tem o maior número de orquestras do mundo.Toda a gente fala inglês fluente “com o sotaque da Bjork”. São uma comunidade absolutamente letrada. Foi o único país do mundo que fez um referendo no Facebook. É um país totalmente desburocratizado, com uma “anarquia prática” a “piscar o olho aos EUA”. Os islandeses viajam para a Dinamarca, para o sul de Espanha e para NY. Os islandeses não são nada simpáticos mas são extremamente eficientes no seu local de trabalho. No horário de trabalho, um pedido é sempre atendido. Os códigos de intimidade dos islandeses não são iguais aos nossos. São muito pouco receptivos.

A morte está muito presente neste livro. Muito mais do que em qualquer outro livro anteriormente escrito pelo valter. Quando lhe perguntam sobre a morte: “Tudo na vida tem que ver com a morte”. Literariamente tenta que a morte seja boa. A morte pode ser a nossa grande oportunidade”.


Sobre o amor, diz que ficou de tal maneira sufocado por este que o próximo livro que escrever não terá amor nenhum.Será muito pragmático e seco. (Apesar de eu achar que era a brincar). Disse que se sentia “um triste”. Que inventa todos estes “amores assolapados” e depois vai para casa “chuchar no dedo”.





sexta-feira, 22 de novembro de 2013

J.F.K., TRAGEDY, MYTH

«“My favorite poet was Aeschylus.” So Senator Robert F. Kennedy, speaking to a traumatized crowd in April of 1968. Kennedy had come to a poor black neighborhood in Indianapolis to make a routine campaign speech, but learned en route that Martin Luther King, Jr., had been assassinated; it fell to the New York senator to announce the dreadful news. As he struggled to find appropriate language for the day’s carnage—which, of course, would inevitably have recalled to his mind, and the minds of his audience, the assassination of his brother John five years earlier—it was to Aeschylus’ “Oresteia” that Kennedy turned, the grand trilogy about the search for justice in a world filled with metastasizing violence. In the verse he quoted, the Chorus of city elders ponders the meaning of violence and suffering:
Even in our sleep, pain which cannot forget
falls drop by drop upon the heart,
until, in our own despair,
against our will,
comes wisdom
through the awful grace of God.
Kennedy concluded his remarks with an exhortation to heed the wisdom of the ancient classics: “Let us dedicate ourselves to what the Greeks wrote so many years ago: to tame the savageness of man and make gentle the life of this world.” That the savageness could not be tamed was demonstrated, with a dreadful Greek irony, three months later, when Kennedy himself was murdered. The lines he cited on the night of King’s death were used as the epitaph on his own tombstone.
R.F.K.’s allusion to the Greeks turned out to be prophetic. However Jacqueline Kennedy may have labored to make Camelot the official myth of the Kennedy Administration, when we have tried to make sense of the Kennedys and their story—to try to find the larger, “mythic” structure beneath the details—we have turned to the Greeks; to Greek tragedy, in particular. It’s not hard to see why. Athenian drama returns obsessively—as we do, every November 22nd—to the shocking and yet seemingly inevitable spectacle of the fallen king, of power and beauty and privilege violently laid low. Many tragic plots, moreover, revolve around the ramifications of family curses, of “original sins” committed by a patriarch that come back to haunt later, innocent generations. Both of these narratives, in their different ways, haunt the story of the Kennedy family and of the assassination in particular.
The family-curse theme, especially, is one we like to invoke in thinking about the Kennedys. The motif is nowhere stronger than in the “Oresteia” itself, the text that Robert Kennedy quoted that April evening forty-five years ago. When the Chorus speaks of suffering and pain, it looks as if they’re referring to current events: the queen Clytemnestra’s plot to murder her husband, Agamemnon, in revenge for his decision to sacrifice their virgin daughter Iphigenia to win from the gods favorable winds for his fleet to sail to Troy. But this act, it turns out, is merely a grim continuation of a cycle of carnage that goes back generations, as the Chorus knows only too well: to Agamemnon’s father, Atreus, who murdered his brother’s children; to Atreus’s father, Pelops, who won his bride by violence and betrayal, and was cursed by the man he betrayed; to Pelops’ father, Tantalus, a king so favored by the gods that he used to dine with them, until he murdered his own son and fed his flesh to his divine hosts to test whether they were, in fact, all-knowing.
In many tragedies—certainly in the plays of Aeschylus and Sophocles—the gods are indeed all-knowing, are pulling the strings unbeknownst to the mortals whose lives they control: works like the “Oresteia” or the “Oedipus” (whose hero learns, to his horror, that he cannot escape the “plot” the gods have written for him) seem to confirm an invisible but palpable order in things. We, too, often seek to discern a kind of order—to find a plot—in the hodgepodge of events we call history. When people talk about the harrowing catalogue of sorrow and violent death in the Kennedy family—not only the uncannily twinned assassinations but the wartime mid-air explosion that killed J.F.K.’s older brother, Joseph P. Kennedy, Jr.; the two airplane crashes, his sister Kathleen and his son, J.F.K., Jr.; the lobotomy and institutionalization of a sister; Chappaquiddick; the murder scandal involving a nephew of Ethel Kennedy; the drug addictions and early deaths of some of R.F.K.’s children—they often mention, in the same breath, thealleged crimes of the family patriarch, Joseph P. Kennedy. (The bootlegging, the election-fixing, the Mob connections, Gloria Swanson.) In referring to a “Kennedy Curse,” they are, essentially, thinking “tragically”: thinking the way Aeschylus thought, assuming that there is a dark pattern in the way things happen, a connection between the sins of the fathers and the sufferings of the children and their children afterward.
The tragic conviction that there are long-hidden reasons for the fall of kings finds its most extreme expression, today, in the obsessive desire to find “plots” of another kind in the Kennedy story: here you can’t help thinking of the conspiracy theories. With their Rube Goldberg-esque ingenuity, their elaborateness directly proportional to their preposterousness, these can end up looking suspiciously like madness. (That other favorite tragic subject.) But the impulse to expose, to bring secret crimes to light, to present evidence of deeds done in the past to an audience in the present, is one that itself lies at the heart of Greek drama. You could say that all tragedy is about the process of discovery, of learning that the present has a surprising and often devastating relationship to the past: King Oedipus, faced with a plague on his city, is told by an oracle that he must find the killer of the previous king, only to learn, as the play unfolds, that it was he. Another way of saying this is that all tragedy is about the way that we live: slowly uncovering the deeper meanings of things, often long after we can do anything about them. However extreme its manifestations over the years, the tragic yearning to go back, to get it right this time, to use our present knowledge to understand what we couldn’t understand then, is a vital part of our response to the Kennedy drama—another reason why it remains so insistently alive.
* * *
But if the Kennedy backstory reminds us irresistibly of tragedy and its gloomy theodicies, J.F.K. himself powerfully recalls a key character from epic—from Homer’s Iliad, the grandest of epics and the source for so many tragic plots. But the character he reincarnated isn’t the one so many people think of.
The lynchpin of the poem is the semi-divine Achilles, a marvelously gifted young warrior; an insult to his honor in Book 1 sets in motion a train of events that, two-thirds of the way through, results in the death of his bosom friend, Patroclus, at the hands of the Trojan prince Hector. Achilles subsequently takes revenge, slaying Hector in combat and desecrating his unburied body—knowing all along that his own death is fated to follow Hector’s. Many readers are familiar with the poignant choice that Achilles has made—to die young and gloriously rather than live a long, uneventful life—and to a large extent that choice has, since Homer, defined our understanding of what heroism is. As a result, the temptation to identify J.F.K. as an Achilles figure is great. One reason we return obsessively to his story is, indeed, that it feels like a real-life affirmation of the primitive wisdom we recognize in Achilles’ famous choice: that human life is a zero-sum equation, that glory comes at the high price of a short life.
And, yet, if J.F.K.’s story resonates strongly for us, it’s because he reminds us of a slightly less glamorous—but equally powerful—character: Hector. Achilles is a free agent, a loner—an only child whose aged father is back home in Greece, far from the action, a warrior who thinks first and foremost of, about, and for himself. (Obsessed with his honor and reputation, he shows no great esprit de corps.) Hector, by contrast, is characterized from the start as bound up in a web of political, social, and family relationships: he is the prince of the city, on whose shoulders its defense depends (“Hector” means something like “the one who holds things together”), the dutiful son of the aged king and queen, Priam and Hecuba, the responsible older brother to numerous siblings (not least the playboy Paris) whom he must often whip into shape, and, above all, the husband of a beautiful young wife, Andromache, and the father of an enchanting child, Astyanax.
So while Achilles has the glamor of extremity, it is Hector, more than any other character, who feels real to us, bound by competing obligations, anchored to his world and its claims. Homer poignantly dramatizes this conflict between the warrior’s public and private selves in a famous scene in Book 6. Here, Hector comes off the battlefield to seek out his wife and infant son, but the baby recoils in terror from his father, who, still in armor, is unrecognizable to the child. It’s only when Hector removes his helmet that the family unit can cohere once more.
For this reason, when Hector dies, he dies not only as a warrior and a prince but also as a husband and a father. Whatever we now know about his personal life (and however reckless his foreign policy may now seem), at the time of his death J.F.K. was very much a Hector figure: the battle-tested hero of the PT-109 incident, the defender of his city—and also, as thousands of photographs and television clips seemed to demonstrate, the charming family man with the perfect wife and the enchanting children. The loss of such a person afflicts us both as citizens and as individuals: his death is a trauma both to the nation and to his family. Because it is a trauma, we constantly revisit it, as much to convince ourselves that such a thing could happen as to hope, each time we go back, that it might turn out differently.
* * *
There is another larger and culturally more vital narrative that the events surrounding J.F.K.’s death share with the Iliad. When we talk about November, 1963, we are referring not just to the assassination but to the entire weekend: the brutal red murder, the roses lying abandoned and drenched in gore, the blood-stained stockings, the shocked absorption of the news, the grim business of handling the body, conveying it and preparing it for burial; and then, gradually, amidst the horror and confusion, the reassertion of order and ritual, the lying-in-state, the military guard, the procession of heads of state, the black-clad widow, the children in their Sunday best, the tiny salute, the religious ceremony, the cemetery, the bugle, the shots, the folded flag. (John-John’s iconic salute is poignant for the same reasons that Astyanax’s recoil from his helmeted father is: in both cases, the intrusion of the military and its symbols into what ought to be the cocooned realm of the domestic sphere—of childhood itself—strikes us as unbearable.)
The arc from harrowing carnage to high ceremony structures the final third of the Iliad, too. After Achilles slays Hector, the hero, maddened by grief for his lost comrade, drags the body back and forth before the walls of Troy (where the dead man’s family and countrymen watch in anguished horror, like the audience of a tragedy) and around the tomb of Patroclus. The desecration of the dead body, the refusal to obey religious convention and give it back to the family for burial, is a mark of Achilles’ inability to let go of—to “bury”—his own grief. In the end, the gods themselves insist on what we might call “closure,” pointing out that even a man who loses a brother or a son “grieves, weeps, and then his tears are done.” In the final book of the poem, the aged king of Troy, Priam, ransoms his dead son’s body from Achilles, takes it home to the walled city, and there gives it a proper funeral.
After the trauma of Hector’s death and the ongoing degradation of his body, there is an odd courtliness about the exchange between Priam and the man who killed his son, a sudden, wrenching flowering of civilized behavior. (A truce is called so that the Trojans can leave their walled city and go into the surrounding forests to cut wood for Hector’s funeral pyre.) As if to remind us of that other world far from the mayhem of battle, the funeral itself is dominated by the women in Hector’s life, who are the only eulogists. His mother speaks, his wife speaks, and even Helen, whose actions precipitated the war in which he died, speaks. Then the body is burned, the bones are gathered and buried. The last line of the entire epic, with its mad quarrels and awful carnage and odd moments of privacy and tenderness, its battles and sex and scheming, emphasizes the importance of the ceremonial closure: “This was the funeral of Hector, breaker of horses.”
The end of the Iliad is, in other words, a narrative about grief yielding to mourning, about the way in which civilization responds to violence and horror. This dark solace is one that only culture can provide. Our endless need to replay the events of November, 1963—by which I mean all of the events, from Friday to Monday—is not only about a perverse, almost infantile need to revisit a scene of primal horror (although our own refusal to let go of Kennedy’s body—expressed most strongly in our endless looping of the Zapruder film, which, like a tragedy, turns the death of the king into a kind of entertainment—certainly shows an Achilles-like unwillingness to bury the past). It also bears witness to our desire to hear once again a very old tale that is not only the story of a fallen warrior and how he died but the story of what we did after he fell, of how the bloodied body is washed and anointed and clothed and grandly entombed and eulogized. (All of these activities presided over, in 1963 as in antiquity, by the attentive widow, alert to the symbolic power of ritual details.) It is a story, in the end, that only civilization can tell, one in which, however miraculously, calamity is alchemized into a kind of beauty.
* * *
Epic itself, a poem that we listen to (or, now, that we read), a beautiful work about often ugly things, war and madness and violence, is an example of that alchemy. So is tragedy, which often takes the stories we know from epic and turns them into something we watch—into spectacles of suffering and death that, through the mystery of art, become both ennobled and ennobling. Many commentators over the years have remarked on the special role that television played in our absorption of the news of that weekend, from the first blurry bulletins on Friday afternoon to the meticulously directed images of the funeral. But what’s telling is that, fifty years later, we watch—with a fascination apparently undimmed by the passage of five decades—the same news bulletins, the same footage, the same “news,” although, of course, it is no longer new.
This suggests that the conclusion to be drawn is not about “the role of the media”—about news and how we get it—but about drama: about our need, as ancient as the Greeks, to see certain elemental plots reënacted before our eyes, at once familiar but always fresh. As superficially shocking as their outcomes may be, these plots tell us things about the world that we know (or at least suspect) to be true: that nature can avenge herself brutally on culture (“Bacchae”), that hidden sins of generations past visit suffering on the next generation (“Oresteia”), that rulers and heroes who are remarkably brilliant and gifted are often crippled by secret flaws (“Oedipus”), that innocent young girls will be sacrificed to the ambitions of greedy men (“Iphigenia”).
And, of course—the oldest tragic plot point of all, the plot that some believe to be at the root of tragedy as a genre, the reason why drama exists in the first place—that the king, the beautiful, powerful, élite, and talented figure on whose glittering figure all eyes are happy to rest, in whom we seek a model ruler, warrior, husband, and father, is, by virtue of those very excellences, conspicuous, marked out as a sacrificial victim. Hero and victim: our ambiguous relationship to the great—our need to idolize and idealize them, inextricable from our impulse to degrade and destroy them—is, in the end, the motor of tragedy, which first elevates and then topples its heroes; not coincidentally, it has characterized our half-century-long response to the Kennedy story, oscillating dizzyingly, as it has done almost from the start, between idealization and demystification.
And so the present keeps replaying the past, repeating those old stories, the narratives that lurk behind the plays and myths, tales and characters so hard-wired into our cultural circuitry that we can forget why we knew them in the first place. But when they reappear, we recognize them. This is why, when certain real-life calamities do occur—the sinking of the Titanic, the death of Diana, Princess of Wales, the murder, in broad daylight during a civic spectacle, of John Fitzgerald Kennedy on this day half a century ago—they feel less like aberrations than like fulfillments. Millennia before, they played out in real life, we were writing the scripts, waiting for them to come true. The question isn’t why we keep going back, after so many years, but how we could do anything else».

Daniel Mendelsohn in "The New Yorker"

O Kitty

As palavras da P., dona do Kitty: "E assim passaram mais de uma dezena de anos.. O Kitty que foi gata uns anos, que mais parecia um coelho pelo seu tamanho, que se portava como um cão e que se achava um leão albino na caça ao insecto.. assim passaram os anos com os tratamentos espoliantes faciais matinais e ‘podológicos’ sempre que possíveis dada a sua obsessão compulsiva por pés que trazia a verdadeira euforia na abertura da época das havaianas, com as nossas idas ao WC sempre acompanhados, as esperas religiosas todos os finais de tarde sentado na porta de casa como se de um cão se tratasse, bem como os pedidos para ‘ir à rua’ mesmo sabendo que eram escadas ou jardim, as turras e oitos nas pernas, os momentos de glória de cada vez que alguém se sentava no sofá, a paixão pelas mantas e pela nossa cama, enfim.. a nossa sombra. Desde ontem que mais uma estrela brilha no céu.."


segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Maria Rueff sobre António Lobo Antunes

Para toda a gente que não teve oportunidade de assistir pessoalmente a este momento de pura arte. O escritor e o seu livro que salvaram a leitora. O escritor é o António Lobo Antunes, o livro é "A memória de elefante" e a leitora é a Maria Rueff. Aqui.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Os carros e eu

Não nasci para conduzir. Nunca percebi nada de carros nem nunca me interessaram. Há 10 anos, exactamente, tirei a carta de condução quando já não tinha motivos para adiar mais. Nos primeiros meses  depois de tirar a carta ia todos os dias para a universidade antes das 8 para não apanhar trânsito. Depois disso continuei a ser uma péssima condutora. Mas apesar disso nunca tive nenhum acidente.

Agora passados dez anos chegou a hora de trocar de carro. E o que deveria ser uma coisa boa está a tornar-se num pesadelo. Primeiro comprou-se o carro e só depois o experimentei! O mostrador da velocidade é digital, tem GPS, tudo é automático, não tem chave e tem um cartão. Para se ligar e desligar o carro é um botão. E para piorar é enorme... Excesso de tecnologia nunca foi uma boa coisa para mim. Eu que preferi sempre livros e o cheiro deles a livros digitais, escrever à mão em vez de escrever no computador... agora quando entro no carro tudo se liga sem eu querer... é o rádio, quando chove aquilo é automático, o A/C, as luzes... Quando tenho de conduzir é um stress. Eu acho que até emagreci! Mas agora que está feito é andar para a frente e já não posso voltar atrás. O meu sonho de consumo era ter um motorista, sempre disse isso.

Um destes dias estava a dizer ao Poeta (o toxicodependente, sem-abrigo e arrumador de carros que está em frente ao meu prédio) que tinha um carro novo para ele vigiar e ele pede-me uma moeda. A mim ele nunca me pede nada, sou eu sempre que ofereço sempre. Mas naquele dia ele devia estar a precisar da droga e perdeu a vergonha: “Eu nunca lhe peço nada mas hoje queria mesmo era uma moedinha em vez de comer”. Eu levava a Bu pela trela a passear e não tinha moedas mas disse-lhe que ia levantar dinheiro. Ele foi comigo levantar dinheiro e eu para trocar por moedas fui comprar pão. O Poeta, amavelmente, ofereceu-se para ficar com a Bu fora da pastelaria. A Bu que nunca pode estar longe da dona, era ouvi-la a uivar. Até que as senhoras da pastelaria me disseram: “Deixe entrar a bichinha. A menina há-de ter o céu... ficar com uma cadelinha que estava abandonada... deixe entrar a bichinha que ela não faz mal nenhum!”. Com esse problema solucionado, virei-me para o poeta e disse-lhe para escolher qualquer coisa para comer: “Nem pensar! Se me vai dar uma moeda não quero comer. Eu não abuso, nem pensar”. Lá o convenci a levar os bolos, na compra de um deram-me o outro. Ainda tive tempo de lhe perguntar se acreditava em Deus porque tinha um enorme terço ao pescoço: Vai-me desculpar mas eu acredito apenas no Homem e no dinheiro que é isso que faz girar o mundo. Isto tenho ao pescoço porque me deram e acho bonito”.  Dei-lhe as moedas que sobraram do troco do pão e dos bolos e só lhe perguntei: “quanto é que gasta por dia em droga?”.  Ao que ele me respondeu: “Nem queira saber, não lhe vou dizer que até tenho vergonha e você vai achar um absurdo”. Ele seguiu pela noite, a agradecer como sempre a bater com a mão no coração, de gratidão. Provavelmente dei-lhe o que ele precisava para completar o que lhe faltava para pagar mais uma dose.


Pensando bem, eu não deveria dar-lhe o dinheiro. Mas ele é tão delicado, tão educado, passa tão mal a viver na rua, é ostomizado mas eu não lhe posso mudar o mundo. Eu não sou nem posso ser o Deus de toda a gente. Mas não nego nada a quem tem fome. E apesar de acharmos que estas pessoas que se drogam, perdem todos os valores, não é verdade. Ele não rouba e está sempre a gabar-se disso e ainda acrescenta: “Aquela magrinha é malcriada, eu sei, mas tem uma coisa muito boa, não vende o corpo. E isso é uma grande coisa”.

domingo, 10 de novembro de 2013

Os Caras por Caetano Veloso

Só entrei em contato com a música do Velvet Underground em Londres. Talvez já em 1970. Embora seja possível que Artur e Maria Helena Guimarães já me tivessem mostrado o disco com Nico, de 1967, que depois Ezequiel Neves vivia pondo pra tocar em nossas vitrolas. Eu gostei imediatamente do tom sombrio e violentamente urbano das canções e dos sons, a voz e a figura de Nico, que eu já conhecia de “La dolce vita”, somando-lhes mistério e encanto. A cara dessa loura de Fellini em meio aos filmes underground de Andy Warhol compunha um ambiente estético fascinante, o que tingia a música da banda de uma qualidade diferente de tudo o que a gente já gostava no mundo do rock de língua inglesa. Lou Reed apareceu para mim ali, no centro dessa aventura criativa tão estranha ao mundo meio rural, meio onírico do rock pós-Beatles.

Lou Reed morreu. Quando penso em quão longe eu estava de poder captar a beleza de sua arte em 1970 (capacidade que se desenvolveu lentamente e exigiu que eu entrasse em contato físico com a cidade de Nova York, o que só veio a acontecer nos anos 1980), fico assombrado com o fato de eu ter vindo a conhecê-lo pessoalmente e de ter havido uma troca de percepções artísticas entre nós. É perdoável que ele viesse a conhecer tão tardiamente um cantor latino-americano, mas é muito menos perdoável que esse mesmo cantor tenha tomado contato com a arte dele com atraso, ainda que muitíssimo menor. Que os dois tenham se encontrado tem algo de maravilhoso. Laurie Anderson veio ao Brasil com um filme, “Home of the brave”, e fui apresentado a ela. Laurie foi assistir ao primeiro show que fiz em Nova York depois disso. Era o “Totalmente demais”, eu só com o violão e falando muito entre as músicas, tão stand-up comedy quanto os antigos shows de Juca Chaves ou Ary Toledo. Muitas pessoas adoravam as canções suaves às cordas de náilon — e, tanto lá quanto aqui, não falta quem diga preferir aquilo a qualquer formação cello-e-percussão ou qualquer banda indie. Laurie me disse que gostou das falas, não deu muita bola para a aparente bossa nova. Quando fui com Jaques Morelenbaum mais Márcio Vítor e cia., ela levou seu marido para assistir. Ao final, Lou e ela chegaram ao apê em que jantaríamos e ele veio me falar do show. Lou é uma figura tão importante na história das pessoas do mundo contemporâneo, tem tal estatura histórica que não ouso contar o que ele me disse. Felizmente Laurie estava ali para rir um pouco e para dizer com gestos que a maluquice era dele, que ela era minha camarada mas que nada além de ter achado graça em minhas falas do show visto anos antes. Mas quando voltamos com formação semelhante, eles estavam lá. E quando fui com a banda Cê, idem. Sendo que neste último caso, já que fazíamos, em “Não me arrependo”, uma menção à linha de baixo de “Walk on the wild side”, a reação feliz dele saiu até no “New York Times”. Uma tarde, o interfone do meu apê em Nova York tocou. Eram Laurie e Lou, que estavam passeando o cachorrinho e passaram para bater papo. Lou contou uma piada, da qual eu não ri muito porque entendo mal inglês falado (minhas falas no “Totalmente demais” davam a impressão de que entendo tudo o que se diga em inglês, mas não): Laurie riu dele e disse que ele estava sempre contando piadas sem graça. Um casal sereno, muito americano, com um cãozinho. Em todas essas ocasiões, conheci o sorriso de Lou, algo que muita gente pensa que nem existe. E num show dele em Valência — em que ele tinha uma cellista e declamava Poe — fui cumprimentá-lo no backstage, e ele estava com um riso escancarado, feliz com a recepção do público. O sorriso de Lou Reed é um tesouro que guardo comigo. Quando Laurie veio com uma grande exposição no CCBB, mandou me chamar e conversamos. Lou não estava muito bem de saúde, ela me disse. Ou foi Arto Lindsay, amigo de ambos, quem interpretou, completando alguma frase vaga dita por ela em tom levemente triste.

No tempo em que eu nada sabia de Lou, Roberto Carlos tinha virado minha cabeça. Antes dos Beatles, aconselhado por Bethânia, dei atenção ao cara. Dali para a frente tudo foi diferente. Mesmo que ele nunca mais queira me ver, continuarei amando quem fez “Fera ferida” e “Esse cara sou eu”. Minhas trombadas nascem de querer quebrar algum esquema cristalizado que me impacienta. Não tenho o direito, acho. Não sou terapeuta dele nem palmatória do mundo. Zuenir estava certo quanto às diferenças de temperamento. Paulinha não gostou do que escrevi sobre o Rei. Mas acho que não tomo jeito, não vou mudar, esse caso não tem solução. Eu tinha feito muito esforço para defender a parte que acho defensável de uma causa que me estranha. Peço perdão.



Caetano Veloso in "O globo"

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Violência doméstica

Tenho uma amiga advogada que me diz que a violência doméstica é um tema que está na moda. Para o bem e para o mal. Como qualquer pessoa de bem, abomino qualquer tipo de violência, seja contra quem for.

Tenho o maior dos respeitos por quem é vítima desta violência. Que me perdoem as vítimas, mas pior do que ser sujeita a esta violência, é ser acusada da mesma sem o ter feito. Aliás, todas as difamações, boatos, injustiças e calúnias são imperdoáveis. Há anos, também dizia a outra amiga que um boato, difamação ou calúnia, só o tempo é que o desmonta. Não há atalho para nos livrarmos disso. Reparem nas manchetes dos jornais. Uma notícia que seja falsa pode ser publicada com toda a grandiosidade, o seu desmentido vem escondidinho em letras muito pequeninas. Ao possível agressor(a) toda a gente aponta o dedo. Toda a gente acredita na versão da hipotética vítima. Como se pode defender a pessoa que é falsamente acusada?

Ao longo dos anos já conheci várias descrições. Pessoas que foram vítimas de violência doméstica sem que eu sonhasse que era possível. A famosa tese de que o mais apto é quem agride é uma treta. Aqui a teoria de Darwin não funciona. Por vezes o mais apto é que é o agredido, porque caso contrário, aquilo que seria um episódio de violência doméstica, acabaria numa tragédia estampada nas primeiras páginas dos jornais. Depois há a questão da classe social. Antes de conhecer casos concretos, achei que estes casos só aconteciam em lares problemáticos, com dificuldades financeiras e com abusos alcoólicos. Nada mais errado. A violência doméstica acontece, sim, no seio de famílias estruturadas e intelectualmente preparadas. Os estereótipos, também aqui, não funcionam.

Depois há as vítimas de difamação. As pessoas que nunca fizeram nada que se apelide de violência, e na falta de melhor argumento, são acusados. E sim, todos estamos sujeitos a isto. Basta uma pessoa com um pouco de má-fé chegar à polícia e inventar uma história sem pés nem cabeça e somos imediatamente constituídos arguidos com termo de identidade e residência. Em Portugal, a partir deste ponto, o processo vai para o Ministério Público, a quem cabe averiguar se a queixa tem fundamento. E após algumas diligências, uma história inventada, mal contada, e mal fundamentada, não tem futuro e o processo é arquivado. Mais que não seja por causa daquela frase que eu gosto tanto e que se usa em Direito: in dubio pro reo. Mas imaginemos que estávamos nos Estados Unidos. É talvez um dos países piores para se ser apanhado com uma história mentirosa mas que é muito bem contada e muito bem fundamentada. A pessoa errada no local errado. Nos Estados Unidos estamos fritos!

Tudo isto para dizer que “no melhor pano cai a nódoa”.  O caso mais falado dos últimos dias do Manuel Maria Carrilho e da Bárbara Guimarães com acusações de parte a parte e cada uma mais inacreditável que a outra. Devemos reflectir. Como é possível, pessoas com este mediatismo, baixarem tanto o nível? Não me atrevo a fazer qualquer juízo de valor sobre quem tem ou não culpa. Quem é a vítima ou agressor. Nos dois casos que falei, as duas hipóteses são possíveis, porque foram duas situações que aconteceram com pessoas muito próximas de mim. Se não soubesse destes acontecimentos, provavelmente ainda acreditaria que todas as calúnias são verdade e que os mais aptos são sempre os agressores.  Nada mais falso. Nem tudo o que parece é. In dubio pro reo.


segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Lou Reed by Patti Smith

On Sunday morning, I rose early. I had decided the night before to go to the ocean, so I slipped a book and a bottle of water into a sack and caught a ride to Rockaway Beach. It felt like a significant date, but I failed to conjure anything specific. The beach was empty, and, with the anniversary of Hurricane Sandy looming, the quiet sea seemed to embody the contradictory truth of nature. I stood there for a while, tracing the path of a low-flying plane, when I received a text message from my daughter, Jesse. Lou Reed was dead. I flinched and took a deep breath. I had seen him with his wife, Laurie, in the city recently, and I’d sensed that he was ill. A weariness shadowed her customary brightness. When Lou said goodbye, his dark eyes seemed to contain an infinite and benevolent sadness.
I met Lou at Max’s Kansas City in 1970. The Velvet Underground played two sets a night for several weeks that summer. The critic and scholar Donald Lyons was shocked that I had never seen them, and he escorted me upstairs for the second set of their first night. I loved to dance, and you could dance for hours to the music of the Velvet Underground. A dissonant surf doo-wop drone allowing you to move very fast or very slow. It was my late and revelatory introduction to “Sister Ray.”
Within a few years, in that same room upstairs at Max’s, Lenny Kaye, Richard Sohl, and I presented our own land of a thousand dances. Lou would often stop by to see what we were up to. A complicated man, he encouraged our efforts, then turned and provoked me like a Machiavellian schoolboy. I would try to steer clear of him, but, catlike, he would suddenly reappear, and disarm me with some Delmore Schwartz line about love or courage. I didn’t understand his erratic behavior or the intensity of his moods, which shifted, like his speech patterns, from speedy to laconic. But I understood his devotion to poetry and the transporting quality of his performances. He had black eyes, black T-shirt, pale skin. He was curious, sometimes suspicious, a voracious reader, and a sonic explorer. An obscure guitar pedal was for him another kind of poem. He was our connection to the infamous air of the Factory. He had made Edie Sedgwick dance. Andy Warhol whispered in his ear. Lou brought the sensibilities of art and literature into his music. He was our generation’s New York poet, championing its misfits as Whitman had championed its workingman and Lorca its persecuted.
"As my band evolved and covered his songs, Lou bestowed his blessings. Toward the end of the seventies, I was preparing to leave the city for Detroit when I bumped into him by the elevator in the old Gramercy Park Hotel. I was carrying a book of poems by Rupert Brooke. He took the book out of my hand and we looked at the poet’s photograph together. So beautiful, he said, so sad. It was a moment of complete peace.
As news of Lou’s death spread, a rippling sensation mounted, then burst, filling the atmosphere with hyperkinetic energy. Scores of messages found their way to me. A call from Sam Shepard, driving a truck through Kentucky. A modest Japanese photographer sending a text from Tokyo—“I am crying.”
As I mourned by the sea, two images came to mind, watermarking the paper- colored sky. The first was the face of his wife, Laurie. She was his mirror; in her eyes you can see his kindness, sincerity, and empathy. The second was the “great big clipper ship” that he longed to board, from the lyrics of his masterpiece, “Heroin.” I envisioned it waiting for him beneath the constellation formed by the souls of the poets he so wished to join. Before I slept, I searched for the significance of the date—October 27th—and found it to be the birthday of both Dylan Thomas and Sylvia Plath. Lou had chosen the perfect day to set sail—the day of poets, on Sunday morning, the world behind him. 

In The New Yorker

domingo, 3 de novembro de 2013

O discurso polémico do escritor brasileiro Luiz Ruffato na abertura da Feira do Livro de Frankfurt

"O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora? Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século 21, de escrever em português, de viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças.
O maior dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação de nossa subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro --é a alteridade que nos confere o sentido de existir--, o outro é também aquele que pode nos aniquilar... E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença.
Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 900 mil, parte deles vivendo em condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância nacional, a chamada democracia racial brasileira, mito corrente de que não teria havido dizimação, mas assimilação dos autóctones. Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas - ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos.
Até meados do século XIX, cinco milhões de africanos negros foram aprisionados e levados à força para o Brasil. Quando, em 1888, foi abolida a escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de possibilitar condições dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada à base da pirâmide social: raramente são vistos entre médicos, dentistas, advogados, engenheiros, executivos, artistas plásticos, cineastas, jornalistas, escritores.
Invisível, acuada por baixos salários e destituída das prerrogativas primárias da cidadania --moradia, transporte, lazer, educação e saúde de qualidade--, a maior parte dos brasileiros sempre foi peça descartável na engrenagem que movimenta a economia: 75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do país. Historicamente habituados a termos apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém...
Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios --o semelhante torna-se o inimigo. 
A taxa de homicídios no Brasil chega a 20 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes, o que equivale a 37 mil pessoas mortas por ano, número três vezes maior que a média mundial. E quem mais está exposto à violência não são os ricos que se enclausuram atrás dos muros altos de condomínios fechados, protegidos por cercas elétricas, segurança privada e vigilância eletrônica, mas os pobres confinados em favelas e bairros de periferia, à mercê de narcotraficantes e policiais corruptos.
Machistas, ocupamos o vergonhoso sétimo lugar entre os países com maior número de vítimas de violência doméstica, com um saldo, na última década, de 45 mil mulheres assassinadas. Covardes, em 2012 acumulamos mais de 120 mil denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes. E é sabido que, tanto em relação às mulheres quanto às crianças e adolescentes, esses números são sempre subestimados. 
Hipócritas, os casos de intolerância em relação à orientação sexual revelam, exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de três milhões de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade. 
E aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população carcerária brasileira, cerca de 550 mil pessoas, seja formada primordialmente por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa instrução.
O sistema de ensino vem sendo ao longo da história um dos mecanismos mais eficazes de manutenção do abismo entre ricos e pobres. Ocupamos os últimos lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 9% da população permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais --ou seja, um em cada três brasileiros adultos não tem capacidade de ler e interpretar os textos mais simples. 
A perpetuação da ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada. O mercado editorial brasileiro movimenta anualmente em torno de 2,2 bilhões de dólares, sendo que 35% deste total representam compras pelo governo federal, destinadas a alimentar bibliotecas públicas e escolares. No entanto, continuamos lendo pouco, em média menos de quatro títulos por ano, e no país inteiro há somente uma livraria para cada 63 mil habitantes, ainda assim concentradas nas capitais e grandes cidades do interior.
Mas, temos avançado.
A maior vitória da minha geração foi o restabelecimento da democracia - são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do período mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história do Brasil. Com a estabilidade política e econômica, vimos acumulando conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a mais significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria: um número impressionante de 42 milhões de pessoas ascenderam socialmente na última década. Inegável, ainda, a importância da implementação de mecanismos de transferência de renda, como as bolsas-família, ou de inclusão, como as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas.
Infelizmente, no entanto, apesar de todos os esforços, é imenso o peso do nosso legado de 500 anos de desmandos. Continuamos a ser um país onde moradia, educação, saúde, cultura e lazer não são direitos de todos, e sim privilégios de alguns. Em que a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer hora, não pode ser exercida, porque faltam condições de segurança pública. Em que mesmo a necessidade de trabalhar, em troca de um salário mínimo equivalente a cerca de 300 dólares mensais, esbarra em dificuldades elementares como a falta de transporte adequado. Em que o respeito ao meio-ambiente inexiste. Em que nos acostumamos todos a burlar as leis.
Nós somos um país paradoxal.
Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas, florestas edênicas, carnaval, capoeira e futebol; ora como um lugar execrável, de violência urbana, exploração da prostituição infantil, desrespeito aos direitos humanos e desdém pela natureza. Ora festejado como um dos países mais bem preparados para ocupar o lugar de protagonista no mundo --amplos recursos naturais, agricultura, pecuária e indústria diversificadas, enorme potencial de crescimento de produção e consumo; ora destinado a um eterno papel acessório, de fornecedor de matéria-prima e produtos fabricados com mão de obra barata, por falta de competência para gerir a própria riqueza.
Agora, somos a sétima economia do planeta. E permanecemos em terceiro lugar entre os mais desiguais entre todos...
Volto, então, à pergunta inicial: o que significa habitar essa região situada na periferia do mundo, escrever em português para leitores quase inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para construir, em meio a adversidades, um sentido para a vida?
Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade. Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro --seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual-- como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora."

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