sexta-feira, 24 de março de 2017

Mísia e as palavras – Poetas e cantautores

Mísia elegantemente vestida com um vestido preto. Sobe ao palco e senta-se numa mesa. Cabelo impecavelmente penteado. Os anos parecem não passar por ela. Começa por agradecer à directora do Museu do Fado pelo convite para esta residência artística. Apelida-a de conversas com o público, com pessoas que não a conheciam ou para pessoas que acompanham o trabalho mas que querem conhecê-la melhor. Enaltece a plateia, o público, como lhe chama. Esse público, e essa interacção é que fazem que cada concerto seja diferente. Realça que nesta conversa não falará sobre a história nem sobre a evolução do fado. Considera que há gente muito mais preparada, muitos musicólogos e muitas fadistas, como por exemplo, a Aldina Duarte que dominam o assunto. Neste fim de tarde foi convidada  “para falar de mim” o que é “estranho e constrangedor” nas palavras da própria.

Nestes 25 anos de carreira profissional considera que o corpo principal do seu trabalho foi a colaboração e interacção directa com os escritores, poetas e compositores. Considera um privilégio ter poemas que foram e são escritos especialmente para a sua voz. Contou a experiência de, antes de cantar profissionalmente, ter tido 4 anos de aprendizagem numa casa de fado onde cantava a Beatriz da Conceição – “a melhor professora que podia ter, cantava com uma verticalidade, aquelas costas eram um fio de azeite... foi um grande exemplo para mim, como ela tratava as letras, uma pessoa que não teve grande instrução académica, tinha uma dicção inteligente, não fazia voltinhas, não se tratava de fazer circo, nem performance, tratava-se de pôr cá fora o que estava a sentir”.

Quando começou em 1991 o fado não estava na moda, não tinha grande prestígio cultural nem comercial e não vendia. A excepção, segundo Mísia, era a grande Amália – “a maior fadista de todos os tempos, para mim”. Concordo absolutamente que Amália foi e é a maior de todas. Não só fadista mas também intérprete e poetisa. Mas não nos podemos esquecer como Amália após a revolução de Abril foi (quase) esquecida e ostracizada. Honra seja feita a Mário Soares que a homenageou nos finais dos anos 80 nos apoteóticos concertos do Coliseu. Isso devia ter sido um grande bálsamo para ela que como dizia “nasceu para ser triste” e que no fado Grito de despedida escreveu: “...que ao fim do além da vida/ do que já fui tenho sede/ sou sombra triste/ encostada a uma parede...”.  O fado, em geral, estava ainda com a marca do estigma do Estado Novo. No início dos anos 90, quando Mísia dizia que queria cantar fado com aquela imagem cosmopolita – de mini-saia, argolas enorme e cabelo à Beatriz Costa – as pessoas diziam-lhe para cantar outra coisa. Mas ela foi perseverante e teimosa e achou que o segredo era ter grandes nomes da literatura portuguesa a escreverem para o fado. Sem falsas modésticas (porque a modéstia fica para quem dela precisa) referiu que foi a primeira pessoa que convidou Jorge Palma, Sérgio Godinho, Vitorino , entre outros, a escreverem para fado. Aos grandes poetas, escritores e compositores deve o repertório que tem. Tem como privilégio e uma das maiores satisfações pessoais ter um poema, o único poema que se conhece, de Agustina Bessa Luís – “essa grande escritora do norte” [e que tão mal tem sido tratada pela sua editora que resolveu tirar os seus livros de catálogo e rescindir o contrato por falta de vendas. É no que dá quando a arte deixa de ser um gosto e um prazer e passa a ser números. O capitalismo no seu melhor. Agustina, pelo que foi, pelo que é, não merecia um tratamento assim. Mas este país tem uma memória tão curta]. Mísia, antes de cantar o poema de Agustina, desculpa-se pela “bruta laringite”. Disse que não seria perfeito mas que seria muito sentido. Que beleza tamanha. Mísia a cantar é de uma verticalidade impressionante, como a “mestre” Beatriz da Conceição. Recta, hirta, com a cabeça a apontar para o alto, olhos fechados, parece (até) mais alta. Tem uma voz segura, imponente mesmo estando doente. Se não dissesse que estava com uma laringite eu não adivinharia.

Voltou, uma vez mais, a enaltecer a importância e a generosidade dos “seus” poetas, escritores e compositores em usar as palavras deles. Falou de um episódio, numa tournée nos EUA, quando estava a dar uma série de entrevistas e era difícil explicar-lhes a importância dos grandes escreverem para o fado: “Era como se o Hemingway escrevesse para country music”. Nomeou, individualmente, cada autor que para ela escreveu: Agustina, Lídia Jorge, Hélia Correia, José Luís Peixoto, Vasco Graça Moura, Paulo José Miranda, Mário Cláudio e Saramago (acho que se esqueceu do Tiago Torres da Silva). Explicou que cantou António Lobo Antunes mas que este não escreveu especificamente para ela, mas para Vitorino. Os poemas que não entraram no trabalho de Vitorino foram cantados por Mísia. É esta a verdade da história. “Saramago é uma pessoa à parte. Gostava muito dele como pessoa e como escritor. Ia começar a trabalhar com ele num projecto muito muito importante, que quero ainda algum dia fazer. Na altura em que nos deixou e o projecto ficou orfão”. Todas essas pessoas não tiveram medo de emprestar as suas palavras para uma fadista, como a própria de autointitula, outsider, alternativa, na margem. Vasco Graça Moura fez 90% das letras de um disco que era inspirado nas músicas de Carlos Paredes. Nos anos em que esteve a viver em Barcelona, ouvia Amália e Carlos Paredes. “Não deixava qualquer dúvida que eu era mesmo daqui. Mesmo sendo filha de mãe espanhola. Tinha mesmo que voltar”. Vasco Graça Moura tinha uma grande intuição, erudição, ele sabia música, sabia muito bem onde deviam estar as tónicas das palavras.

Outra das poetisas a quem recorreu foi Amália Rodrigues, um caso raro de muitos talentos reunidos na mesma pessoa. Uma inteligência a cantar. Não apenas a voz miraculada. “A voz é uma coisa que se nasce com ela. O que se faz com ela é que é importante. Imaginem a Celine Dion” – disse entre risos.  Referiu também a Amélia Muge, tendo sido a primeira pessoa a pedir-lhe uma música. E a partir daí tornou-se uma figura incontornável do fado. Não se esqueceu do episódio de o Vitorino aceitar escrever “para uma louca” após ter saído da EMI-Valentim de Carvalho. O facto de ter tido sempre grandes autores associados à sua música fez muitas vezes pessoas quererem aprender português e conhecer os poetas que ela canta. “Metade Almodovar e metade Manuel de Oliveira”. A participação de todos estes autores no repertório de Mísia elevou o nível do seu trabalho.

Cantou Ciúmes de um coração operário um poema que Vitorino escreveu em 1992 que era o verdadeiro “novo fado”. E depois o poema de Fernando Pessoa Autopsicografia com o fado Meia-noite. Apresentou os músicos “que tornam possível que este momento esteja a acontecer”: André Dias na guitarra portuguesa (um músico da nova geração que “tem as pestanas mais bonitas que já vi”), Didi na viola e Luís Cunha no violino. Na primeira fila estava Mário Pacheco e Sandra Correia. Alguns amigos que vêm de fora ainda os leva ao Clube do Fado

Perguntou à plateia as horas e às 7:45, au point, senta-se sempre. Arrancou mais gargalhadas. “Estava preocupada por não ter aqui um relógio e ia passar a hora de eu me sentar”. No início quando actuava, cantava e ia embora e perguntava aos amigos “Notou-se muito que sou filha de mãe espanhola?”. Somente pelo pânico de acharem que não era uma verdadeira fadista. Hoje, não se preocupa mais, porque quem não a acha uma verdadeira fadista não importa o que ela faça.

O melhor deixa-se para o fim. Apresentou a convidada como sendo do seu coração. Convidada especial, também, do Artur (um dos gatos de Mísia). Já colaboraram muito. Já escreveu um poema para um dos discos da Mísia. Será a convidada no espectáculo de Mísia no CCB no dia 19 de Maio. “É com imenso carinho, ternura e admiração que eu peço à Adriana Calcanhotto para se juntar a nós”. Adriana que assistia na primeira fila, subiu ao palco casual chic de óculos, com um casacão de lã cinzento, calças de ganga, sapatos oxford camel e camisa aos quadrados de flanela cor de vinho e branco. Sentou-se. A viola não parecia ser a dela. Ou pelo menos, não é a que tem usado nos últimos concertos ou em Coimbra. Usou a piada do costume “passamos metade do tempo a afinar o instrumento e a outra metade a tocar com ele desafinado”. Usou o iphone para o afinar. Enquanto afinava foi explicando que não tem tocado e que adorou o convite para tocar. Disse que aprendeu “horrores com esta mulher” sobre fado e sobre a possibilidade de pegar num fado tradicional e colocar outro poema. Falou de ter ficado escandalizada quando há uns tempos atrás lhe disseram que quando Amália cantou Camões foi um escândalo. Mas considera que isso faz sentido, quando ainda há quem fique escandalizado pelo Bob Dylan ter ganho o Nobel da Literatura. “Apesar de a poesia existir antes da escrita”, citando o exemplo da Ilíada de Homero que seria para ser transmitida oralmente. Depois, falou do poeta com o qual "tem mais intimidade, não o que gosta mais" - Mário de Sá-Carneiro. E cantou a lindíssima Senhora dos olhos lindos (que para mim é um fado). 

Quando Adriana se juntou a Mísia na mesa foi recebida com um “Agora é um momento muito importante”: um prato de bolinhos de bacalhau. E Adriana às gargalhadas juntamente com o público. A Adriana em todos os concertos que sabe que a Mísia está ou quando lhe perguntam como conheceu a Mísia ela conta esta história. “Conta você. Eu gosto quando ela conta me imitando”. A Mísia tinha um namorado que era “um erro de casting” e por causa dele conheceu a Adriana. Quando chegou a Portugal fez o que todos os brasileiros fazem quando chegam ao hotel: ligar a tv ("fazia", corrigiu imediatamente Adriana, pretérito imperfeito, não mais). E viu um grande close up da Mísia a dizer "coisas insensatas". Ficou impressionadíssima com aquilo. E aí perguntou ao “erro de casting” quem era aquela cantora. E uma das características do erro de casting é que ele nunca assumia nada e disse apenas “Ah, eu conheço” (não disse que era namorado da Mísia). E aí combinaram ir ao Clube de Fado e a Mísia cantou para a Adriana. Como não se lembra nunca de almoçar ou jantar e como não tinha jantado pediu dois bolinhos de bacalhau porque era uma coisa fácil de comer. Aí comeu um bolinho de bacalhau e foi cantar. Quando regressou à mesa comeu o outro e a Adriana disse: “O segundo ela mereceu”. Esta conversa mostrou o humor e a cumplicidade destas duas amigas que são também grandes artistas mas que aqui estavam como em casa. “Quando ela canta me faz chorar e quando não está cantando faz-me chorar de rir”.

Mísia, ao contrário do que aparenta não é distante nem altiva. Tem um humor fenomenal. Tem em comum com  Adriana o humor, a paixão pelos animais e o gosto pela polenta frita de Porto Alegre. Adriana referiu que grandes poetas partilham deste gosto pelos animais, por ex, Alexandre O’Neill, “poeta fetiche de Amalia”- como lhe chamou, que escreveu sobre a pobreza da condição humana a partir dos animais. MÍísia pediu a Adriana para cantar outro tema, do mesmo Mário de Sá-Carneiro. Falou do restaurante Petit Riche que frequentava em Paris, do qual era assíduo. Adriana aproveitou para falar que Mário de Sá-Carneiro estudou Direito em Coimbra, obrigado pelo pai. Nesses 3 meses ele viveu num quarto (que deveria ser uma pensão e não um hotel). Adriana conta que quando foi convidada para passar o semestre em Coimbra pediu: E se eu ficasse no quarto do Mário de Sá-Carneiro?”. E que toda a gente a desaconselhou vivamente e a demoveram daquela ideia. “Podemos levá-la lá para ver o quarto mas ficar lá não pode”. E ela continuava “Mas porque não pode?”. “Porque aquele hotel paga-se por hora!”. Terminou com chave de ouro com O outro.

Soube a tão pouco. Não se percebeu a passagem do tempo. A plateia estava cheia. E atrás de mim estava o temido Nuno Pacheco, crítico de música do Público. Para quem for de Lisboa estas conversas são imperdíveis. Vale por tudo. Vale pela inteligência, pelo humor, pela conversa, pelas histórias por contar da persona Mísia. A diva, essa, voltaremos em breve a protagonizar Geosefine no TAGV e a interpretar os seus poetas no palco do CCB.

Copyright: Mariola Landowska

Copyright: Mariola Landowska

 P.S. Eu sei que as fotos não são o melhor mas foram as únicas que encontrei. Não tirei fotografias. Acho que a memória deve guardar tudo para sempre. A Adriana costuma dizer que "as pessoas fotografam mais quando gostam mais da música". Eu não, lamento, não consigo fazer (bem) duas coisas ao mesmo tempo. Perderia o momento único da interpretação e a fotografia ficaria, com certeza, péssima. 

quinta-feira, 23 de março de 2017

O discurso sublime de António Lobo Antunes

Há umas semanas deu uma grande entrevista ao Expresso muito diferente daquilo que o apelidam. Sincero, demorado, descritivo.

Não vi a gala da SPA na RTP. Cheguei ao vídeo do discurso pela Fernanda Mira Barros. No agradecimento do prémio da SPA Vida e Obra não parece o grande escritor. Parece pequenino. e (ainda) mais velho. O tempo não o tem poupado. Apesar disso, parece um menino grande. Tímido. Tom de voz muito baixo. Agradeceu emocionado ao Presidente da República que lhe lhe enviou um bilhete sobre um livro que tinha saído. Congratulou-se por termos um Ministro da Cultura que é um grande poeta. Disse que escrever foi o que sempre lhe deu sentido à vida. E falou do Senhor Barata que tem um cancro e ao qual prometeu dizer “adeus”. “Livre-se de não vencer essa puta!”.

Este é a pessoa que tive a honra de conhecer. O maior escritor vivo. A maior parte das vezes quando conhecemos os génios ou os nossos ídolos temos  a tendência para nos sentirmos defraudados. O António é o contrário: perde tempo com os seus leitores, é um grande ouvinte (apesar de ser “surdo como uma porta”, como ele diz), terno, meigo, tem uma voz linda, pausada, sorri muito, agradece na mesma proporção e adora NY.


Gosta de Jorge Amado, mais do homem do que do escritor, e pergunta quem é que o lê hoje. Eu! Eu adoro Jorge Amado. Parece sempre um menino grande que teve falta de amor e afecto. O menino prodígio que tem uma memória de elefante, que aprendeu a ler com 4 anos mas que se recusou durante três anos a decorar 5400 g de Anatomia, embora tendo uma memória prodigiosa. Nunca deixou de ser um menino tímido “que se virava para a parede” para não enfrentar as pessoas. Costuma dizer que era muito bonito e que agora é um monstro. Detesta levantar-se cedo. Tem uma vida monástica. Preparou-se a vida inteira para o talento que sempre teve: escrever. Ainda hoje escreve com um livro grande aberto (dos tempos em que fingia que estava a estudar enquanto escrevia).

Copyright: Sociedade Portuguesa de Autores (SPA)

terça-feira, 21 de março de 2017

When breath becomes air by Paul Kalanithi

Nos últimos tempos, várias pessoas têm-me questionado sobre o meu (suposto) conhecimento literário. Essas pessoas, muito mais das letras, ficam sempre muito surpreendidas com a minha cultura literária e com a quantidade de coisas que já li e leio. Cada vez (mais) acho que os estudos e os graus das pessoas dizem cada vez (menos) sobre elas. As pessoas mais interessantes que conheci e conheço não se distinguem pelos graus académicos. E muito menos lhes dão a importância que os outros (acham que) têm. O que me desperta nelas é o interesse por qualquer coisa específica e, às vezes na generalidade, a vida. Afinal o que é ser interessante? O que é ser inteligente? E a importância que isso tem para a vida de cada um de nós? Mas essas são questões que não vou falar neste texto. 

Hoje vou escrever sobre duas pessoas da minha área de conhecimento. Pessoas  que dedicaram a sua vida à medicina e ciência. E com os quais eu aprendi tanto. Um deles é Siddhartha Mukerjee cientista, médico oncologista, professor, escritor sem ordem alfabética e/ou importância. Ganhou um prémio Pulitzer com o livro que é uma biografia magnífica sobre cancro The emperor of all maladies. E o último livro é, o não menos interessante, Gene. É casado com a grande artista plástica Sarah Sze e considerados o casal (mais) brilhante de NY pela Vogue. Para além disso, é giro e inteligente. Como quase todas as grandes figuras, é tímido. Quando eu estava em NY fui a todos os eventos, conferências, conversas só para o ouvir falar. E vi-o (algumas vezes) à espera do metro na 168 e a sair do metro na W4. Só olhar, discretamente para ele, sem que ele se apercebesse era uma maravilha. Um dia num cocktail, com a coragem dada pelo álcool pedi-lhe entre um copo de vinho, que me assinasse a versão inglesa do livro. Um meses mais tarde, numa conferência sobre cancro, na qual só chegou em cima da hora e saiu mal acabou a sua apresentação, corri para que me assinasse a versão portuguesa. Estas coisas são como os novelos, pega-se na ponta e vamos desenrolando até conhecer (mais, muito mais) mundo. Através dele conheci Primo Levi, do qual comprei e li toda a sua obra. E por causa dele conheci a Emily Dickinson, essa grande poeta que nasceu numa vila recôndita de Nova Inglaterra, da qual nunca saiu, não tinha mundo e daquele cérebro saíram aqueles poemas dos quais os olhos tinham visto tão pouco. Se é verdade que muitos dizem que escrever é autobiográfico, a obra de Dickinson mostra exactamente o contrário. Mukerjee deu-me a conhecer outro grande médico, escritor: Abraham Verghese, autor do livro My own country. Nascido na Etiópia, filho de pais indianos, formou-se em Medicina na India e fez a especialidade numa das cidades da America profunda no estado do Tennessee. Trabalhou dois anos em Boston onde o vírus HIV começava a ser conhecido e a vitimar muita gente, no início dos anos 80. E depois, quando foi regressou a Johnson City viu uma outra realidade de pessoas pouco instruídas e rurais infectadas com HIV. É desta experiência que ele fala no livro que lhe deu popularidade.

A segunda pessoa que quero falar é de Paul Kalanithi. Este, não conheci pessoalmente. Li uma das suas crónicas How long have I got left?, no The New York Times, na qual assumia a sua condição de doente terminal. Tal como Siddhartha, era médico (a terminar a sua especialidade em Neurocirurgia em Stanford). Tinha um Mestrado em  Literatura Inglesa, era culto, competente, genial, tinha um profundo amor à escrita e era um ávido leitor, tinha um futuro promissor, e falou sobre tudo isso e muito mais, na sua autobiografia de fim de vida que não chegou a terminar. O prefácio foi escrito por Abraham Verghese.

O primeiro capítulo começa com versos de T.S. Eliot e com a descrição da sua confrontação com a imagem da tomografia que mostrava “inúmeros tumores, a coluna vertebral deformada, o fígado completamente obliterado. Cancro amplamente disseminado”. Neste livro descreve a sensação de se ter  tornado doente e a sua vulnerabilidade. Das diferenças abissais entre ser um médico cheio de confiança e um paciente resignado.Os sinais premonitórios do cancro. O cansaço que o derrotava . As dores intoleráveis. O futuro brilhante com que sempre sonhou, que teria como neurocirurgião, evaporou-se num sopro. O marido e o pai presente em que prometeu tornar-se, e cumpriu, mesmo que por tão pouco tempo e em condições tão adversas. Do sonho que sempre teve de ser escritor. Da infância no Arizona. Das ausências do pai médico. De ter lido 1984 de George Orwell. O seu amor pela linguagem. Antes de entrar na universidade já tinha lido Edgar Allan Poe, Gogol, Dickens, Twain, Austen, Sartre, Shakespeare, entre outros. Para um americano criado no interior da América e médico, convenhamos que é invulgar. Durante a adolescência considerou os livros como confidentes, que lhe deram a mais vasta visão do mundo e que lhe abriram horizontes. Anos mais tarde tirou Literatura Inglesa e  Biologia Humana. Queria encontrar a resposta para a pergunta:  O que dá significado à vida? Por esta altura refere T.S. Eliot, Nobokov e Conrad como grandes referências. Quando fez o Mestrado em Literatura Inglesa em Standford, referiu a sorte que teve em estudar com Richard Rorty, o mais importante filósofo à época. A tese de Mestrado foi sobre Walt Whitman. Passou uma temporada em Cambridge, UK estudar História da Medicina, antes de entrar em Medicina em Yale. Foi aluno de Shep Nuland, um reconhecido e reputadíssimo cirurgião-filósofo, autor do livro sobre mortalidade How we die.  

Descreveu em pormenor o primeiro nascimento que foi também primeira morte a que presenciou. Ensinou-me o que é uma cirurgia Whipple (duodenopancreatectomia) uma operação complexa que consiste na remoção da cabeça do pâncreas, uma vez que o pâncreas se encontra na parte anterior e “coberto” por varias estruturas, envolvendo rearranjo da maioria dos orgãos presentes na cavidade abdominal.

Aprendemos tanto com este livro. Sobretudo sobre vulnerabilidade e humanidade, como andam de mãos juntas. Os médicos vêem as pessoas na sua forma mais vulnerável, assustados e o que há de mais privado neles. Depois, o seu talento para a escrita e as suas referências literárias fazem lembrar-me da grande obra de Tolstoi, Ivan Ilitch, com as devidas diferenças. Tal como em Portugal, nos Estados Unidos, os médicos tendem a escolher as especialidades menos exigentes (Ex. radiologia e dermatologia). No fim do curso de Medicina tendem a focar-se em especialidades que proporcionem uma melhor qualidade de vida, aquelas com menos horas de dedicação, melhores salários e menor pressão. Como 99% das pessoas escolhem o seu trabalho: quanto ganham, ambiente de trabalho e horas de trabalho. Neurocirurgia, como há uns anos o Prof. João Lobo Antunes discutiu em alguns dos seus ensaios sobre a mão, a perfeição do toque, a leveza da mão cirúrgica. Aqui Paul compara-a quase à perfeição. A exigência desta especialidade da Medicina que exige tanta técnica. A necessidade imperativa do treino da mente, das mãos e dos olhos. Da necessidade não só de serem os melhores cirurgiões mas os melhores médicos do hospital. As capacidades cirúrgicas são avaliadas pela técnica e pela velocidade: “Aprende a ser rápido agora. Mais tarde aprenderás a ser bom”. No bloco operatório todos os olhos estão sempre no relógio. Se o tédio é, como argumentou Heidegger, a consciência do tempo a passar, então a cirurgia é o oposto. Do conselho de comerem com a mão esquerda e de terem que aprender a ser ambidestros. Aprendemos pequenas coisas como as funções básicas que o hipotálamo regula: dormir, fome, sede, sexo. A loucura de trabalhar 100 horas por semana durante a especialidade. Viu muito sofrimento. O almoço típico dele, como vi muitas vezes do Presbyterian em NY ou no Methodist em Houston: Diet coke e um gelado. Escreveu sobre o receio que teve de se tornar o estereótipo médico de Tolstoi: apenas preocupado com a forma de tratamento da doença e desleixando a importância da parte humana. A excelência técnica não é tudo. Como neurocirurgião, o seu ideal não era apenas salvar vidas – porque todos acabamos por morrer – mas guiar os doentes e famílias a perceberem a doença e a morte. Todas as grandes doenças transformam os doentes. Deve tentar-se ser preciso, directo e certeiro mas deixar alguma margem para a esperança. Cita Heidegger “a consciência do tempo a passar”. Ensina-nos que a arte de falhar em neurocirurgia define-se por um ou dois milímetros: a ténue diferença entre triunfo e tragédia. A existência de áreas no cérebro que são quase sagradas ou invioláveis. Cita Montaigne: Se eu fosse um escritor iria compilar descrições de várias mortes de homens: deveria ensinar como morrer ao mesmo tempo que ensinaria a viver”. Descreveu ao pormenor as conversas com a médica oncologista, de como não voltaria ao hospital como médico. De como planeou tanto e esteve tão perto de conseguir. De como a oncologista se recusou a discutir com ele as curvas de sobrevivência de Kaplan-Meier. [A curva de Kaplan-Meier é um método estatístico standard que mede a sobrevivência dos pacientes em função do tempo. É a métrica que permite saber o progresso e que podemos perceber a gravidade da doença. Por exemplo,  no caso do glioblastoma a curva desce vertiginosamente até que apenas aproximadamente 5% dos pacientes estão vivos em dois anos].  De como no início da confirmação de diagnóstico quis saber onde se encontravam os melhores oncologistas de cancro do pulmão, das possibilidades do MD Anderson Cancer Center – Houston e o Memorial Sloan Katering Cancer Center – NYC. Seis dias antes do diagnóstico tinha passado 36 horas no bloco. Como tudo muda num instante. Tornou-se um inválido. Os passos seguintes foram prepará-lo, e tudo à sua volta, para a mudança abrupta de condição: de médico para doente. Com o passar dos dias, com a repetição de exames, com a teraputica, até mesmo os médicos, tão profundamente cientes da gravidade da sua condição, permitem-se ter (alguma) esperança. Discute que a palavra hope  combina ao mesmo tempo confiança e desejo. Somente 0.0012 % de pessoas com 36 anos têm cancro de pulmão. Paul tinha planeado uma vida de 40 anos entre ser médico e escritor. Os primeiros 20 como neurocirurgião e os últimos 20 como escritor. Como tudo se precipitou por causa do cancro terminal ele queria saber quanto tempo mais lhe restava para tomar decisões relativamente à sua carreira: “Se tivesse 2 anos de vida, escreveria. Se tivesse 10, voltaria à cirurgia”. Mas vida e morte não são uma ciência exacta. Cita Darwin e Nietzsche. Houve uma melhora após 6 semanas de tratamento com Tarceva. O cancro estabilizou. Voltou a ler literatura: Tolstoi, Kafka, Montaigne, memórias de doentes com cancro, tudo o que tivesse relacionado com mortalidade: “Foi a literatura que me trouxe de volta à vida durante esse tempo”. Cita Hemingway, Beckett. Ainda voltou ao trabalho. Faria uma cirurgia por dia, não acompanharia os doentes fora do bloco e não estaria on call. Ouvia bossa nova Getz/ Gilberto. O primeiro caso foi uma lobectomia temporal, uma das suas cirurgias predilectas. Passou a noite anterior a rever livros de texto de cirurgia e anatomia e todos os passos dessa cirurgia. Descreve com uma beleza única como decorreu o procedimento. Como Lobo Antunes referia repete a “forma mais elegante” de proceder. Para se aguentar tomava antieméticos, Tylenol e anti-inflamatórios não esteróides. “A morte pode ser um evento mas viver com uma doença terminal é um processo... Se soubesse que me restavam 3 meses passava-os com a família. Se fosse 1 ano escreveria um livro. Se me dessem 10 anos, voltaria e trataria doenças. Mas a verdade é que viver um dia de cada vez não ajuda”. Tinham passado 9 meses e operava até tarde ou até de amanhã. Chegava a casa tão cansado que nem conseguia comer. Decidiram ter um filho. Engravidaram por fertilização in vitro.

Repetiu a tomografia 7 meses depois de voltar a operar. Seria a última antes de terminar a especialidade. Antes de ser pai e de o futuro se tornar real. Apareceu um novo tumor, grande. Foi o seu último de no hospital como médico. Começou a quimioterapia. E com ela vieram os efeitos secundários: fadiga, fastio, vómitos, diarreia. Ler era impossível. Obrigava-se a comer. Foi internado para ser hidratado por via intravenosa. As metástases ósseas causavam-lhe muitas dores. Quase morreu quando a filha tinha 38 semanas. Esteve nos cuidados intensivos uma semana. Perdera 20 kgs desde que fora diagnosticado, 7 deles nessa semana horribilis. Cita Graham Green. A filha nasceu. Tinha o desejo de viver tempo suficiente para que a filha se lembrasse dele. O seu desejo não foi cumprido.

Morreu 22 meses depois de ter sido diagnosticado com um cancro de pulmão metastizado no estadio IV, aos 37 anos. Não terminou o livro. Não teve tempo nem vida para o terminar. Chorei como uma Maria Madalena. Então no epílogo escrito pela mulher Lucy, desfiz-me. Morreu no hospital 8 meses depois do nascimento da filha rodeado da família.


sábado, 18 de março de 2017

A decadência do Hotel Astoria

Quando as expectativas são muitas corremos o risco de (muito) facilmente nos decepcionarmos. Os meus amigos dizem que é isso que vai acontecer quando eu for ao Rio de Janeiro. Essa cidade que eu quero conhecer desde que me entendi como gente e sem razão aparente insisto em adiar. Quando me perguntam o que me falta na vida digo que já podia morrer mas, por favor, não antes de conhecer o Rio de Janeiro. Temos (até) jogo de apostas. Eu sei que vou adorar. Só falta (mesmo) ir.

Pois bem, sou uma pessoa de hábitos, de frequentar o que gosto, onde me tratam bem, faz-me sentir em casa. É, talvez, um conforto. Quem sabe, talvez, sentir-me em casa para quem já tantas vezes mudou e que se sentiu (algumas) vezes a sensação de não saber o lugar ao qual pertence. Ultimamente, desafiando os meus hábitos e gostos, tenho dado comigo a experimentar o novo. Novos restaurantes, hotéis, lojas, cidades. Não repetir. E sentir isso. Nos últimos tempos tenho ido com muita frequência a Coimbra. E de todas as vezes que tenho ido fico num hotel diferente. Desta vez decidi-me pelo mítico Hotel Astoria. Um hotel imponente, lindíssimo que faz parte da imagem, que sobrevive ao tempo da baixa de Coimbra, em frente ao Mondego. Dos mesmos donos do Curia e do Bussaco. Uma desilusão. Um hotel que deve ter vivido momento áureos mas que neste momento vive (apenas) do passado que não existe (mais). O aspecto exterior do edifício e a vista que dele se tem é o máximo do melhor que se vai encontrar. Tudo o resto, nem sei como classificar. Começa na recepção. O atendimento é sem graça, mediano, apenas cumpridor. Apenas o necessário, poucas palavras, desanimado. Entregam-me a chave do quarto e é mesmo uma chave. Naquele instante achei peculiar, único. Já não se encontram lugares assim, pensei eu no meu excelso optimismo. Elevador antigo, com o que sobra do luxo de outros tempos, com um sofá de veludo cor de vinho, umas fotografias desbotadas e maltratadas pelo tempo dos outros irmãos (Bussaco e Curia). Se a ideia era apelar à visita, por favor, retirem estas fotos. A vontade sincera é de, apesar da curiosidade, a julgar por este, será outra (grande) desilusão. Vamos ao quarto. Eu nem tirei fotografias para não me acusarem, algum dia, de estar ao serviço (pago) da concorrência. Parou no tempo. E parar no tempo poderia ser bom mas não é. Alcatifa a precisar de substituição urgente. O cortinado pesado deve ser uma acumulação de pó e tudo o que de pior há. A mobília é constituída por duas mesinhas de cabeceira e uma cama de casal a precisar de manutenção urgente. O resto é um armário e uma cómoda. Não existe nem uma cadeira nem uma secretaria. A casa de banho é talvez o mal menor. Antiga mas limpa. As roupas eram igualmente limpas. Mas somente. Não havia tomadas livres. Os candeeiros estavam arranjados com fita. Tudo parou no tempo e o que se faz não é uma boa manutenção mas pequenos arranjos sem qualquer classe ao nível do que já foi este hotel. A televisão é daquelas que havia nas cozinhas há 20 anos atrás e não tem (sequer) mais de quatro canais. Internet, apesar de dizerem que existe, não tem sinal. Aproveitei para ler e dar um avanço às minhas leituras. A vista é a única coisa a aplaudir. Estou no quarto andar e os telhados e a vista da alta de Coimbra lá fora. Gosto sempre da parte dos pequenos almoços embora não o varie. É sempre o mesmo: pão com manteiga e café com leite, aqui ou em Shangai. Às vezes vá, talvez um croissant. O pequeno almoço, pelo menos para mim, é o melhor para tudo o que é mau. Variado, vários pães, croissants, bolos, iogurtes, ovos, frutas, compotas... E felizmente, o leite e o café são à moda antiga. Já que o hotel congelou no tempo, o leite e o café estão em recipientes que os mantém quentes. As mesas estão postas com chávenas e talheres. Mas as toalhas, meu Deus, as toalhas! Feias como a morte. De um tecido sintético florido em tons de rosa velho. Não seria melhor umas tolhas simples, brancas de algodão? Chego facilmente à resposta. Não, porque implicaria serem mudadas porque a sujidade seria visível. Assim disfarça-se como se pode. A sala que deveria ser uma coisa fantástica nos grandes tempos tem ar de abandono e falta de classe. As cadeiras que deveriam ser de uma beleza única foram reparadas com os piores materiais. Cobriram-nas com um pano de veludo fraco preto às riscas brancas. E como eu sou perita em encontros imediatos de terceiro grau tinha que encontrar alguém. Então quem são as únicas pessoas na sala: eu e uma mesa em que está um casal é uma bebé que deve ter um ano. Ela fala alto , diz que gosta muito de pequenos almoços de hotel, está de calças de fato de treino justas e uns óculos gigantes de sol. O homem que a acompanha parece mais novo e saído de uma qualquer programa desses trogloditas da tv. A voz é-me familiar. Tento puxar pela minha memória auditiva, tento confrontá-la com a imagem real que vejo. Após alguns minutos chego lá: Joana Amaral Dias. Sim, aquela do Bloco de Esquerda que depois foi mandatária da campanha de Mário Soares à PR, e que parece ter caído no esquecimento depois do mediatismo de ter aparecido grávida e nua numa revista de uma apresentadora de tv com um tom de voz muito agudo. Conclusão, o preço final da estadia foi de 57 euros. Há outros hotéis mais simpáticos, prestáveis, adequados, melhores e mais baratos. Conselho: não deixem morrer estas preciosidades da história.  Nada (sobre)vive do que já foi um dia.
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quinta-feira, 2 de março de 2017

Eu ando pelo mundo, a primeira lição de Adriana Calcanhotto

Uma formação na área dos estudos artísticos, na área dos estudos brasileiros vindo do exterior da Universidade. Muitos dos enchiam a plateia não eram alunos de Letras e nem da Universidade de Coimbra A formação humanística e artística é essencial para a formação integral de qualquer ser humano. O reitor que mais tempo exerceu essa função, durante 31 anos, nasceu no Brasil. A honra de ser tratada por “Professora” pelo Reitor da Universidade de Coimbra.

E ela, não desiludiu. Apresentou-se, cerimoniosamente, de capa de Lente às costas. Começou por agradecer a todos e a cada um pela honra de estar na Universidade de Coimbra, como disse o Magnifíco Reitor  é a “maior Universidade brasileira fora do Brasil”. A primeira aula da “Professora” Adriana Calcanhotto foi a falar sobre ela própria. A aula sobre a sua trajectória que classificou como “a situação mais difícil de toda a minha vida”. Uma coisa que disse não estar habituada, mas para quem a conhece e as suas entrevistas, poucas novidades ou revelações foram ditas.



Nasceu em 65, em plena ditadura no Brasil. Neta, filha e sobrinha de professoras. Não olha para trás. Tem péssima memória, “uma gaffe ambulante”. Nasceu no extremo sul do Brasil, Porto Alegre. Os pais conheceram-se em Buenos Aires e ela nasceu meio ano depois disso. Pais muito curiosos. Os pais ouviam música depois de jantar: pink Floyd, Piazzola, Miles Davis. A mãe ouvia muita música instrumental e o pai o que queria descobrir. Eram muito diferentes. O pai muito calmo e a mãe o oposto, “speed”. Tem um irmão 3 anos mais novo. Ouvia rádio com as “babás”. Ouviam jovem guarda no rádio. Um dia o pai chegou a casa mais cedo e ficou muito zangando, apavorado a achar que a culpa era dele. A música que ela guardou na memória desse tempo foi Devolva-me. Esta foi a primeira das músicas que cantou nessa tarde. Pediu “paciência e compaixão” se acaso não a soubesse tocá-la bem porque ultimamente anda “só lendo”.

Aos 6 anos, a avó ofereceu-lhe um violão de nylon. Quando lhe perguntou o que faria com aquilo a avó respondeu: “aulas”. O professor era apaixonado por João Donato e Tom Jobim, ou seja, apaixonado por piano. “As teclas são outro mundo”. Para a mão de uma criança de 6 anos aquilo era uma tortura. Abandonou o instrumento para mais tarde voltar. Uns anos mais tarde retoma o violão e faz por impulso uma safra de 30 canções expressando a sua infelicidade pela separação dos pais.

Uma tia, professora de língua portuguesa, ofereceu-lhe o livro de Clarice Lispector A mulher que matou os peixes. Este livro mudou-lhe a vida para todo o sempre. Sentiu-se uma leitora e não uma criança. Este livro, por mais que se leia, e por mais vezes que se volte a ele, parecerá a cada vez, novo e diferente. Sempre quis aprender a ler porque achava que essa era a porta para o mundo adulto. Queria ser adulta para não cumprir ordens. Aprendeu a ler sozinha. Acreditava que o mundo dos adultos era diferente do das crianças, para melhor.

Falou da sesta da mãe que era preciosa e da técnica magnífica que desenvolveu para lavar louça, tarefa que adora. Ouvia rádio baixinho. E nesse tempo começou a ouvir outras coisas diferentes das que ouvia com as babás. Vinícius de Moraes, por exemplo. E achou aquilo diferente, não superior, mas diferente e pensou “Eu daria a minha vida para ver isso acontecer”. Nessa época ouviu o poema Traduzir-se de Ferreira Gullar cantado por Fagner. Foi a música que se seguiu. Ferreira Gullar, de quem veio a tornar-se amiga, nasceu em São Luís do Maranhão. Sempre quis ser um poeta do povo, um poeta acessível. Aprendeu unicamente português. Para ele, numa terra longínqua, distante dos grandes centros urbanos, tudo chegava depois, demasiado tarde. E por isso, para ele, a poesia era coisa de poetas mortos. Durante muito tempo ele achou que os poetas não eram pessoa vivas. Augusto de Campos, contemporâneo de Ferreira Gullar, era o oposto. Erudito, tradutor dos grandes clássicos em várias línguas, cosmopolita de São Paulo. Adriana ouviu um poema de John Donne traduzido por Augusto de Campos e musicado por Péricles Cavalcanti na voz de Simone, chamado Elegia (que  cantou à cappella). Esta foi uma época áurea no Brasil onde era possível ouvir alta poesia através da música popular.

A mãe ofereceu-lhe uma assinatura mensal do “O círculo do livro” e através disso conheceu Oswald de Andrade, o poeta modernista brasileiro da geração de 22. Um poeta irónico, antropofágico, irrequieto, que não usava pontuação, que queria romper com as convenções, que não gostava da ideia do Brasil ser uma colónia mas deslumbrado por Paris. Falou de uma música de Caetano, Pulsar, do disco Velô que se aproximava ao rap. Descobre Maria Bethânia dizendo Fernando Pessoa.

Na juventude, no auge do movimento punk no Brasil, havia os Secos e Molhados no palco. “Quando o movimento punk chegou ao Brasil já nem havia punk em Inglaterra”. “Todo o mundo era punk”. Pessoas loucas, maquilhadas, estranhas. Andava com as roupas estranhas na rua que os outros usavam no palco, “um bicho muito estranho”. Gostava da ideia e da possibilidade “eu não sei fazer música mas faço”. Por volta dos 18 anos, depois de repetir o mesmo ano quatro vezes, depois de não assistir às aulas, vivia de noite e dormia de dia, a mãe fez-lhe um ultimato: “Então você sai da minha casa”. Da necessidade de arranjar um trabalho, num restaurante por baixo de casa, o dono pergunta-lhe: “O que você faz?” e ela “Eu não podia dizer que era estudante... então disse... sou cantora”. Assim “nasce” a sua carreira na noite de Porto Alegre onde fazia cover de outros artistas. Mas o interesse de Adriana não estava em “copiar” exactamente a versão de determinado cantor, ela estava muito mais interessada em apropriar-se daquela música, em fazer à sua maneira. A voz não era o interesse principal mas a performance. Gal Costa cantava com uma panela na cabeça para ouvir a própria voz “Óbvio, se eu tivesse aquela voz também faria o mesmo”.  Para ela continuava a não fazer sentido a questão da alta cultura versus baixa cultura. Aí foi procurar um director de teatro. E falou da questão de que se todas as artes desaparecerem, haverá sempre teatro. Trabalhou com um director de teatro de vanguarda. Do seu gosto por provocar vaias. Experiências loucas e liberdade extrema reunidas. Todos os dias mudava. Sem querer agradar. Falou da coincidência de ser contemporânea de outras cantoras: naquela época ela estava em Porto Alegre, Marisa Monte no Rio de Janeiro e Zélia Duncan em Brasília. Sem internet e sem saberem da existência umas das outras. Cada uma fazendo à sua maneira mas com 50% do repertório igual. Começou a levar o espectáculo para o circuito de vanguarda de São Paulo. Provocou muitas vaias e tinha como objectivo não ser belo, nem ser agradável. Chegou a cantar para uma pessoa, um crítico da revista Veja: “fato de xadrês inglês, gravata borboleta, óculos de tartaruga e bengala. E fiz o show como se estivesse cantando para 10 mil pessoas”. Foi aí que contou o episódio que a Rita Lee descreve na sua autobiografia sobre ela ter ficado nua para uma plateia, entre muitas gargalhadas. A Rita Lee convidou-a para assistir à passagem de som. E a Rita Lee falou que quando apresentava a banda de meninos, as meninas da plateia gritavam de alegria e ela queria agradar também aos meninos. “Na hora que eu faço o Miss Brasil 2000 gostava de apresentar uma menina que entrasse no palco só com uma capa. Você conhece alguém que possa fazer isso?” ao que Adriana respondeu “Você se importa que seja eu?”. Quando chegou a hora, Rita Lee apresentou-a, e ela que na altura não era assim tão famosa mas conhecida o suficiente para as pessoas acharem que ia entrar com um violão. Então ela entrou de saltos altos, nua só com uma capa, vai até à marcação no centro do palco, abre a capa virada para o público, espera uns segundos, ficou com pena dos músicos e deu uma canja para eles, fecha a capa e sai.

Maria Lucia Dahl, actriz e cronista do Jornal do Brasil, vê uma das suas actuações em que ela cantava uma versão de Caminhoneiro e oferece-se para ajudá-la no Rio de Janeiro. Fez uma série de concertos no Mistura Fina (que a elite carioca frequentava). Toda a gente desde a mãe, pai, família, professora de canto, ao director de teatro tentaram dissuadi-la de ir: “Não vá, você não está pronta”. Ela foi, mesmo assim. Aquilo foi um sucesso de concertos esgotados. Caiu nas graças da elite carioca. Aí recebeu um convite de uma gravadora para ser a “Marisa Monte” daquela gravadora. Naquela altura ela continuava interessada na performance, na ironia, em provocar vaias. “Caí numa cilada. Fazer um disco sem desejo de fazer um disco não vale a pena. Não façam nunca isso em nenhuma situação”. Saiu um disco todo errado. Uma série de mal entendidos. Não transmitia a ironia do palco. “Mas eu aprendi logo. A imprensa acabou com a minha vida”.  Ninguém queria produzir o disco depois disso. A Folha de São Paulo escreveu: “Há uma lacuna na música popular brasileira que só será preenchida quando Adriana Calcanhotto voltar para o Rio Grande do Sul e desistir de cantar”. Falou das dúvidas de empresários sobre a possibilidade de músicas chamadas Esquadros e Mentiras fazerem sucesso e tocarem na rádio. Como estas três horas eram para ser uma aula, Adriana relatou factos. “Eu vim aqui mostrar como é difícil”. Citando Fernanda Montenegro quando a questionaram sobre se é verdade que o começo é muito difícil: “Os dez primeiros anos são muito difíceis, depois só piora”.

Continua sem gostar de classificações e pretende continuar inclassificável. Coerente, portanto, com o que diz há muitos anos. Há uns 15  anos fiz-lhe a seguinte pergunta: “Apesar das sucessivas comparações a que tem sido sujeita, principalmente com Elis Regina, eu diria que a sua trajectória como excelente compositora assemelha-se muito mais a Vinícius de Moraes pela erudição do vocabulário, pela forma extraordinária como escreve poesia em língua portuguesa e pelo veículo das palavras ser a música. Será que daqui a alguns anos a Adriana será definida como uma grande poeta que fez canções maravilhosas? Era assim que gostaria de ser definida?” Ao que ela respondeu: “Ana, eu detesto comparações (como qualquer artista).  Mas considero um grande elogio a analogia que você faz com Vinícius, a quem amo muito. Na verdade, eu gostaria de ser indefinível, inclassificável, hoje ou daqui a alguns anos”.

Fez um intervalo “ninguém é de ferro a começar por  mim” e propôs-se a falar um pouco sobre a sua experiência de fazer discos para crianças. Começou, após o intervalo, a falar sobre o lançamento das obras completas do Mário de Sá Carneiro no Brasil, como isso se deu, e como ela se aproximou desse universo. A partir daí começa a ser conhecida a sua ligação à poesia e a ser convidada, cada vez mais, para eventos relacionados com isso. Começou a conhecer pessoas conhecedoras dessas obras. Musicou poemas de outros poetas portugueses como Fiama Hasse Pais Brandão. Falou, também, dos trabalhos Olhos de Onda a convite da Culturgest, Loucura a convite da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Das Rosas a convite da Universidade de Coimbra. Falou também de como se cria de forma milagrosa um hit. Cantou Metade e Esquadros.

Seguiu-se a parte das perguntas, que ela se sente particularmente apavorada quando feitas por crianças. Sentou-se. Começou por responder sobre a razão da produção para crianças. Foi uma ideia que foi amadurecendo aos poucos. Existia uma tradição no Brasil de grandes autores escreverem especificamente para crianças (ex. Manuel Bandeira, Cecília Meireles) com a mesma qualidade. Falou da novidade de ter usado samples na altura da Fábrica do poema. De quando convidou Hermeto Pascoal para participar numa música e de como ele fez música com uns coelhinhos e uns baldes. E aquilo deu-lhe um click. Aquilo coincidiu com o assalto ao apartamento dela em que todos os discos foram furtados. Como seria fazer música sem ter memória do som? E essa Canção por acaso com o Hermeto Pascoal fala disso: “Sem ordem/sem harmonia/ sem belo/ sem passado...”. A partir daí começou a anotar canções e a pensar num projecto para crianças. Começou a perceber que as crianças gostavam das músicas de Carlinhos Brown, por exemplo. Deixou essa ideia amadurecer e decantar. E pensou na ideia de um heterónimo. Levou essa ideia para a editora e achou que eles adorariam a ideia. Mas não: “Você não tem um programa de televisão”. Falou do fenómeno de Fico assim sem você que as crianças chamam de Avião sem asa. Achou que era apenas um fenómeno no Brasil porque coincidiu com a morte de um dos integrantes da dupla e só por esse acaso é que ouviu essa música na rádio que era ouvinte. As crianças adoravam-no porque ele tinha cara de boneco. Aí "a música alavancou o disco e as crianças começaram a pedir o concerto". Mencionou que é possível que Partimpim apareça a qualquer momento “que ela sai da caixa”.

Um estudante, que não teria mais do que 20 anos, falou de ter ouvido Metade numa novela quando era criança. E que não teria contacto com a sua música se não fosse por causa das novelas.
A outra pergunta fez lembrar-me uma cena do documentário José e Pilar de Miguel Gonçalves Mendes em que Saramago estava numa Feira do Livro no Brasil e um dos seus admiradores está tão nervoso para que Saramago lhe assine Viagem de Elefante e pede-lhe: "Saramago, me desenha um hipopótamo?". Neste caso uma estudante brasileira pergunta: "Na sua obra Partimpim você fala muito na sua relação com os gatos e eu vejo que as crianças têm muito mais relação com os cachorros e eu queria saber se você vai fazer alguma música sobre cachorros...". Adriana bem tentou disfarçar e controlar o riso, como toda a gente na plateia, e respondeu muito educada e diplomaticamente: "Ah sim, eu prefiro os gatos".

Terminou a falar que pretende aprofundar a relação do Brasil com a Universidade de Coimbra, considerando que a instituição portuguesa pode ajudar o seu país na educação, que está a viver "uma tragédia anunciada. "Nós precisamos da Universidade de Coimbra, talvez, como nunca". O mais interessante desta experiência, para ela “é contactar com os professores, assistir e dar aulas, e sobretudo, frequentar as bibliotecas”. Cantou O outro (a pedido de uma estudante brasileira) e Fico assim sem você (para fazer chorar).

No seu estilo cool, (não) punk, como um dia um crítico a classificou, talvez a definição que mais aprecia “apesar de detestar classificações” e ser “inclassificável”. Para quem diz que é tímida e que o seu maior talento não é falar, esta primeira lição foi uma maravilha, um deslumbramento. Tivessem (todos) os professores este dom da palavra, este humor e esta capacidade de cativar. Estivessem (todas) as aulas repletas como esta e tudo seria melhor. Os professores, sim, têm muito a aprender.

Adriana doce, culta, apaixonada por livros e que (ainda) compra discos. E prefere os gatos.

Promete para as outras aulas, ainda mais entusiasmo, já que abordará assuntos que gosta de falar e estudar.

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