quarta-feira, 31 de julho de 2019

Rodes


Rodes, que não conheci muito bem porque estive 5 dias fechada numa conferência, é a ilha grega mais oriental. A primeira impressão é de uma ilha que parou no tempo. Parece o Algarve nos anos 80. Os táxis não têm taxímetro. Todos os locais falam várias línguas. As infraestruturas não são muitas. O turismo é a principal fonte de rendimento. A parte da ilha onde fiquei era extremamente ventosa. A praia não tem areia mas pedras grandes, redondas e lisas. A temperatura do mar Egeu ronda os 20 graus no fim de Maio. E o sol é potentíssimo. Os turistas variam entre holandeses, franceses e uma mescla de nacionalidades de leste que não se chega a perceber exactamente o país. A cor do mar é a do Mediterrâneo e das águas quentes. Uma mistura entre um verde esmeralda e um azul transparente.

Fui à Acrópole de Rodes. Eu que nunca vi ruínas gregas, pessoalmente, o único desejo que tinha era esse: visitar as ruínas gregas. E talvez, como em Roma, nunca em lugar nenhum do mundo senti o peso da civilização. Deixaram-nos no que parecia ser um descampado abandonado. Era fim de Maio mas a cor da vegetação parecia do pico do verão. Parecia um deserto. Um descampado deixado à sua sorte. As ruínas gregas eram as únicas coisas que queria ver em Rodes. Não a cidade velha. Nem a cidade Medieval. Nem o lugar onde supostamente um dia existira o Colosso de Rodes, a gigantesca estátua de Apolo, nas portas da cidade, junto ao mar. Mas o que restou da Grécia Antiga. Chega-se perto das ruínas, ao que parece ser semelhante ao que se vê na internet: duas enormes colunas. No entanto, aquilo que avisto são duas colunas tapadas por andaimes. Isto é o que resta do suposto Templo de Apolo. O resto é pó, pedras, abandono, plantas forasteiras e tempo, muito tempo. Descobre-se o caminho seguindo os turistas acompanhados por um guia. Descemos caminhos selvagens apenas marcados pela passagem de poucos turistas. Algumas coisas estão bem conservadas. Sento-me no cimo e olho o mar. A imagem que se tem do mar numa ilha é sempre diferente. O mar Egeu, visto daqui, azul cobalto. Como os olhos, este mar muda de cor. Entre o verde esmeralda, o azul céu e o mais escuro do azuis a parecer o Atlântico. Debaixo de um sol da tarde que parece queimar tudo. Nenhuma sombra. Tudo agreste. Selvagem. Nú. Subo e desço escadas. Sinto as pedras. Sento-me no meio delas, no que resta das ruínas. No desleixo que permite que eu, turista, esteja ali sem pagar pelo tempo que me apetecer. 

Depois, chega-se a um muito bem cuidado teatro ao ar livre. Odeon. Um teatro de mármore para uns 800 espectadores. Os turistas contam-se pelos dedos mas de cima lembro-me da passagem de Sophia pela Grécia, que no seu diário escreveu sobre a visita ao Teatro de Epidauro e quis ouvir o eco da própria voz. E onde ela recitou os primeiros versos da Ilíada de Homero: “Forma perfeita e funcional: a acústica é inacreditável. Dos degraus de cima oiço nitidamente as vozes de baixo. É uma acústica que não só “transporta” as palavras mas que as recorta, as distingue, sílaba por sílaba, som por som. Despois desço (...) Fico por um instante quasi sozinha no centro da orquestra e digo: “Menin aeide, Thea, Peleiadeo Aquileos”. Então oiço duas vezes a minha voz, uma voz ao pé de mim e outra no ar subindo todos os degraus de ar, nítida, livre, clara, recortada.” Eu abraçada ao livro de Sophia “O nu na antiguidade clássica/ Antologia de poemas sobre a Grécia e Roma”.  Quando o meu pensamento é interrompido por uma voz que pede em inglês a alguém que está no centro do teatro que diga qualquer coisa. E eu ali na Grécia, em Rodes, numa tarde do último dia de Maio, ouço em unísseno a voz de quem está no centro do teatro e a voz de quem está no cimo a dizerem uma passagem do coro de Henrique V de Shakespeare:

“O for a Muse of fire, that would ascend
The brightest heaven of invention,
A kingdom for a stage, princes to act
And monarchs to behold the swelling scene!

E depois ainda se vê o estádio, onde os locais correm ao fim da tarde. E eu caminho por entre as bancadas, e sento-me de novo, apenas a olhar. Estas pedras onde estou sentada, estas pedras da antiguidade, misturadas com os turistas e com os locais que correm. Aquelas ruínas ficam impregnadas com aquilo que aconteceu, acontece e acontecerá ali. E, contrariamente ao que devia, ainda trouxe umas pedrinhas. Ou não tão “inhas" assim. Desta vez, o excesso de peso não foram os livros mas pedras. Passaram despercebidas na segurança em Rodes. Mas, por falta de cuidado meu, em vez de colocar as pedras na mala de porão, coloquei-as na mala de mão, tal o valor simbólico delas. Afinal foram apanhadas nas ruínas em Rodes. Em Roma, ao passar novamente na segurança, a minha mala foi inspeccionada. Abrem o saco com as pedras e perguntam-me para que servem. E eu respondo que não servem para nada que são apenas uma recordação de Rodes. Não houve argumento possível. As pedras do tamanho da palma de uma mão, talvez com milhares de anos antes de Cristo, que a tudo sobreviveram, acabaram entre risos de troça e um barulho ensurdecedor, num caixote do lixo (de plástico) no aeroporto Leonardo Da Vinci em Roma. A ironia. As pedras da Grécia Antiga, acabaram na Roma Antiga. Mas talvez com pena da minha cara que era só desânimo deixaram-me trazer o resto das pedrinhas inofensivas para se juntarem a tantas outras numa das mesas lá de casa.

Templo de Apolo (copyright:Wikipedia)

Teatro Odeon (copyright:Wikipedia)

Estádio (copyright:Wikipedia)

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Democracia em vertigem


Vi, finalmente, o documentário “Democracia em vertigem” da Petra Costa. Sem saber, vi muitas vezes, repetidamente, aquela menina tímida, tão nova, a perguntar a Caetano Veloso o significado da canção “Cajuína” que conta o episódio do encontro de Caetano Veloso com o pai de Torquato Neto, em Teresina. A letra que começa com aquela questão existencial “Existirmos, a que será que se destina?”.


E agora, descubro que aquela menina da pergunta é a cinesasta Petra Costa. O documentário que estreou no Festival de Sundance e foi tão elogiado pelo The New York Times é de uma sensibilidade e está tão bem feito que é uma roleta russa de emoções. A revolta, a surpresa, vergonha e incompreensão quando se vê as manisfestações violentas contra Dilma e Lula, quando se assiste aquela palhaçada que foi a votação no Senado do impeachment de Dilma Rousseff e que eu vivi para ver em directo na televisão. E a preocupação de quem vê uma país à beira do precipício: “O que vão pensar de nós”? E a profunda emoção despoltada quando Dilma Rousseff chora no discurso no dia do impeachment. E a serenidade de quem nada teme: “Hoje só temo pela morte da democracia”. Esta mulher guerreira, que não chorou quando foi torturada e que assiste, como todos nós, sem nada que a democacia possa fazer, à derrocada de um Brasil que não existe mais. O Brasil de Lula da Silva que eu aprendi a respeitar porque foi um  Brasil pensado, um Brasil sonhado. Um sonho que se cumpriu. Um país da América Latina onde foi possível ver pessoas que foram ajudadas pelo “Bolsa Família e “Minha Casa minha Gente”. Poder ver os seus filhos estudar, entrar nas universidades, estabelecer uma classe média, onde os ricos ficaram incomodados por ver tanta gente andar de avião, viajar, adquirir poder de compra, conseguir direitos trabalhistas. Uma sociedade com mais igualdade que ameaçou a hegemonia dos ricos. Este país menos desigual não interessava aos privilegiados. Mas como Lula disse antes de ser detido: “Ninguém pode prender um ideal”. Esse viverá com toda a gente que acreditou e acredita porque ninguém poderá prender toda a gente. Como disse Obama: “This is the man”. O político trabalhador metalúrgico, que nunca desistiu, que perdeu muito para poder ganhar, filho de uma mãe analfabeta do nordeste que chegou ao cargo mais alto do Brasil. Ficará para a história por bons motivos e será sempre lembrado. Eu que não gostava de Lula da Silva, com toda esta perseguição política de anos, aprendi a respeitá-lo. E convenhamos, alguém como o Lula que ganhava milhares de euros por palestra, que é uma vedeta na política mundial, ser subornado por uma casa no meio do fim do mundo ou um apartamento numa praia suburbana? Sabemos, agora, que tudo não passou de um plano muito bem feito. E sim, mais vale tarde do que nunca, eu digo #lulalivre. No dia da votação do impeachment de Dilma Rouseff, o então deputado Jean Willys, hoje exilado político disse tudo em pouco menos de um minuto: “Eu me sinto constrangido por participar nesta farsa, conduzidapor um ladrão, urdida por um traidor conspirador e apoiada por torturadores, covardes, analfabetos políticos e vendidos. Em nome da população LGBT, do povo negro exterminado nas periferias, dos trabalhadores da cultura, dos sem tectos, dos sem terra, eu digo não ao golpe. Durmam com essa, canalhas”.




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