sexta-feira, 30 de março de 2018

Seremos todos (algum dia) Marielle


O EUA é esse país capaz do melhor e do pior. A mais antiga e mais usada linha celular foi criada sem consentimento da sua dadora, Henrietta Lacks, uma mulher negra, pobre, nos anos 50 que sofria de cancro. O país da Rosa Parks que se recusou dar o lugar a um branco mas que ainda existe o Klu Klux Klan. O país que viu nascer e morrer assassinados John F. Kennedy, Martin Luther King e Malcolm X. O país que foi capaz de eleger o primeiro Presidente negro mas foi também o país que preferiu um louco para Presidente em vez de escolher uma mulher. O país onde na semana passada o The New York Times reconstruiu, baseado em imagens de comeras de hotel, os dias do atirador que matou dezenas de pessoas em Las Vegas. Carregou várias dezenas de malas, durante vários dias, com tudo planeado, alugou dois quartos e foi o responsável pelo maior número de mortes resultante de um tiroteio. Um país onde entre 2006 e 2009 me era pedida identificação para comprar cigarros mas onde comprar uma arma ou várias era (mais) fácil. O país onde várias pessoas mataram outras pessoas em tiroteios só porque sim, por razões políticas, por ódio, por racismo ou sem se saber a razão e porque qualquer pessoa pode ter acesso a uma arma. Um país cuja capital parou para dizer não às armas. Um país que tem adolescentes capazes de se mobilizarem e de discursos como os que se fizeram na semana passada em Washington é um país com futuro e onde a esperança não está (de todo) perdida.

Depois, na América do Sul, temos o Brasil. Há anos que se morre por nada. A vida (lá) vale muito pouco. Tenho um amigo que é um acérrimo defensor de Lula. Por causa dele, diz ter conseguido estudar e chegar a um dos mais altos graus académicos. Ele que é, como se apresenta, por desordem alfabética: brasileiro, pobre e preto. Pior, no Brasil, só se fosse mulher, favelado e homossexual. Há umas semanas foi executada uma vereadora Câmara do Rio de Janeiro, do partido político PSOL. Ainda não se sabe quem foi nem a razão. Sabe-se (apenas) que foi uma execução política. Nunca tinha ouvido falar dela. Mas conhecia Marcelo Freixo o candidato a Perfeito do Rio de Janeiro e o deputado federal Jean Wyllys. Marielle que reunia tudo o que uma pessoa no Brasil de agora não pode ser: nasceu pobre, na favela da Maré, era preta, mulher e lésbica mas estudou e chegou a vereadora. Era uma activista, uma voz incomoda, (quase) sem medo. Ousou denunciar a extrema violência da polícia militar nas zonas pobres e era a personificação de que estudar vale a pena.  Mas quando pessoas que apesar de estereotipadas têm voz são silenciadas, já não basta só ter medo nem vir para as ruas. Nunca gostei de Lula mas tenho que aceitar que de tudo o que aconteceu nos últimos anos foi o melhor. Quando no Brasil existem políticos com o baixíssimo nível que vemos na televisão todos os dias, quando o Perfeito do Rio é um Bispo da IURD cheio de cirurgias plásticas e cabelo pintado que quer tornar a cidade mais bonita pintando as fachadas das casas das favelas, quando se ausenta da cidade no Carnaval, a época mais crítica da cidade, e quando insiste num estado sem ser laico; quando um dos possíveis candidatos à Presidência do Brasil é um reaccionário, apoiante da ditadura militar, que numa discussão pública afirmou que uma deputada merecia ser violada, que acha que a solução da violência no Rio está em bombardear as favelas; Quando os maiores intelectuais brasileiros dizem que os alunos saem das escolas analfabetos funcionais. Quando quem não está a favor, está contra. Quando não existe meio termo. Quando as pessoas destilam ódio e ameaças nas redes sociais. Quando se é julgado e seleccionado pela cor de pele... resta perguntar: o Brasil (ainda) tem solução? É  por isso que eu sendo branca, não sendo de esquerda, muito menos caviar, de não ser burguesa, digo: devemos ser todos Marielle!

quarta-feira, 28 de março de 2018

Uma volta de 180 graus


Tenho 38 anos. Um emprego pela primeira vez na vida. Um contrato por 2 anos, com tudo a que um trabalhador tem direito. Mas, para isso, tive que mudar a minha vida toda. Deixei a minha casa com tudo o que de confortável e conhecido tem. Os hábitos. Uma cadela que encontrei quando ela tinha 4 meses e da qual achei que nunca me iria separar. A família, Os amigos.

Não é a primeira vez que mudo na vida. Já vivi em 3 cidades diferentes. Esta é a quarta. Braga, Houston, NY, Genova. Durante anos, com tantas mudanças de casa e 3 cidades, não me sentia em casa em parte nenhuma. Mas depois de alguns anos seguidos em Braga comecei a sentir que pelo menos aquele apartamento fora sido preenchido à minha imagem. Começar de novo com uma mala de 32 kgs, uma mala de mão e uma mochila. Tudo o resto ficou para trás. Desenhei um cenário catastrófico. Pensei que não ia gostar de nada e criticar tudo. Está a ser mais fácil do que pensava. Diria que são duas coisas muito importantes: o tempo e as pessoas. As pessoas são o melhor. Acolhedoras. Simpáticas. Mesmo sem partilharmos a mesma língua conseguimos perceber-nos. Falam muito com as mãos. Falam alto. Riem muito. São parecidas, nas qualidades com os portugueses. Felizmente, como diria o Eça não têm o aspecto desconsolado dos doentes dos intestinos. Vivo pela primeira vez na vida em frente ao mar. Mas não há a angústia do mar. Apesar de haver dias com ou sem chuva, cinzentos, o mar nao adquire aquela cor depressiva cinza chumbo. Não tenho elevador. Vivo num quarto andar. O local de trabalho é bom. Deram-me um computador, 3 batas brancas e duas azuis. Tenho 2 cacifos e uma secretária. A cantina e o bar são óptimos. Bom, bonito e barato. Comida boa a preço de cantina. Estou viciada em cappuccinos. E na simpatia das senhoras do bar. Sinto-me acolhida. Aqui não tenho carro. Felizmente, dizem os meus amigos. Com as ultrapassagens  que fazem pela direita e esquerda, não demoraria muito a causar uma tragédia com as milhares de scooters. Um destes dias deixaram-me em frente a casa, e apesar do aviso  para ter cuidado com a porta e com as scooters, causei estragos. Ando a pé, de metro e de autocarro. Acho os transportes eficientes, embora o metro feche às 9 da noite, ridiculamente. Os táxis são caros mas muitas vezes, por preguiça, não lhes resisto. Ainda tenho uma casa praticamente vazia, só com o indispensável. Mas dizem-me que agradável, parece uma casa de praia. Ainda não tenho internet ilimitada nem telemóvel italiano. Foi este o grande problema encontrado e que mais demorei a resolver. Todos os outros foram rapidamente solucionáveis. Não tenho televisão nem vou ter, eu que não adormecia sem ela. Não tenho fotografias. Trouxe 10 livros. Ainda me custa olhar para os cães e para crianças e não ter saudades. Falo todos os dias com as mesmas pessoas que falava em Portugal, até mais. Saudade é a palavra que mais me ocorre desde que me mudei. Quem, quando está sozinho, não se intimida com o silencio? Planos, ao contrário do que esperava, não faço a longo prazo. Só (ainda) não consigo conjugar os verbos no futuro. No presente, sempre no presente. Sobre o texto da mudança, uma das minhas amigas achou-o triste. Falhei o objectivo porque nada nele é triste.
Tenho dinheiro, mais do que algum dia. Mas quero coisas que ele não compra.




domingo, 25 de março de 2018

O Feliciano


Se eu quisesse ser má diria que alguém com este nome não augura nada de bom. O Feliciano, tal como o Relvas, o Vara, o Sócrates, mais outros tantos políticos menos conhecidos, e assessores  dos aparelhos partidários são o resultado do “chico-espertismo” português. Um país onde o tratamento por “doutor” e “engenheiro” chegou (quase) ao nível do Brasil. As universidades privadas proliferaram como fungos nos anos 90. Venderam licenciaturas aos betos jotas dos partidos que não tinham notas para entrar nas universidades públicas, aos betos que não conseguiam terminar os cursos nas universidades públicas, aos trintões que queriam uma licenciatura que lhes concedesse o tratamento pelo grau e/ou lhes legitimasse a desempenho profissional. Para melhorar tudo, esta semana, ficamos a saber que os licenciados pré-Bolonha vão ter equivalência a Mestrado. Estamos conversados quanto a facilitismos.

Voltando ao Feliciano, é outro dos casos que envolve a dupla maravilha de combinar um curso tirado numa universidade privada com a demora da obtenção do curso. Dir-me-ão que a conclusão desta combinação é uma generalização e um preconceito. Pode ser, mas convido quem tiver tempo e paciência a analisar os políticos e os seus boys que tiraram os cursos em universidades privadas. Infelizmente, a política portuguesa está cheia destas ervas daninhas que ajudam a sustentar os partidos e os governos.

Não é preciso ter tirado um doutoramento numa universidade americana ou em colaboração com uma universidade americana para saber que quando se é aluno de doutoramento ou aluno de doutoramento visitante, o processo começa com uma carta/convite da universidade americana em inglês, nunca em português. Juntamente com isso vem a obtenção do DS e do visto J1. O esperto do Feliciano não só demorou o dobro dos anos da duração da licenciatura numa universidade privada como se aproveitou de uma carta de uma Professora de Berkeley em português a dizer que orientaria o seu doutoramento. Como todos os espertos, aproveita-se de tudo o que pode. Dizem à boca pequena que mal fala inglês e que, quando contrariado, diz mal de toda a gente e que queria chegar a Ministro, coisa que nunca aconteceu. Mas, pasme-se, chegou a Secretário de Estado em dois governos e foi chefe de gabinete de Passos Coelho (que não gostava dele... imaginem se gostasse). Li das coisas mais anedóticas sobre este senhor desde ter publicado mais de 20 livros a fazer-se anunciar no Bombarral à sua chegada com buzinadelas do motorista oficial.

Mas onde eu quero chegar é que Felicianos há muitos. E o exemplo do Feliciano é um dos exemplos de como se ascende na vida. Depois, também há os que sem mácula e sem nada que se lhes aponte têm uma biografia irrepreensível e repleta de graus mas subiram na vida porque se encostaram às pessoas certas. Porque se é verdade que há muita gente que não consegue tirar uma licenciatura sem ter sido paga, há muita gente que não se pode gabar de grande inteligência mas ter conseguido tirar um doutoramento. É célebre a frase: “um burro com livros é sempre um burro”. Há muitos anos uma pessoa que era respeitadíssima, e que caiu anos depois em desgraça, dizia uma coisa que nunca esqueci: “ não interessa o que diz a tua tese mas quem é o teu orientador”. De facto, a vida depois de 38 anos ensinou-me que é (quase) uma verdade absoluta.  Com raras excepções, nunca chegaremos a lado nenhum  sem um telefonema ou sem uma (boa) carta de recomendação.

Pedro Passos Coelho chegar ao topo da hierarquia académica pelo simples facto de ter sido Primeiro-Ministro causou grande indignação.  Um licenciado por uma universidade privada, depois dos 30, leccionar numa Universidade pública com a equiparação a Professor Catedrático Convidado? Que sacrilégio! Concordemos ou não, não é ilegal. Podemos lembrar-nos de outros como Vitor Constâncio e Guilherme de Oliveira Martins.  O que a mim me causa perplexidade e azia não é ele ser professor catedrático convidado numa universidade pública, que é legal,  mas eu não poder fazer o mesmo. E nunca me esqueço do comentário infeliz que fez sobre aconselhar os melhores qualificados a emigrar. Foi o que fiz. Na inevitabilidade de não conseguir no meu país um emprego, conseguiu-o no estrangeiro, aos 38 anos pela primeira vez. O que me faltava?

quinta-feira, 22 de março de 2018

Mudança

Munida de uma mala grande, uma mala de mão e uma mochila tenho a sensação de que faltará sempre alguma coisa. Desta vez, como sempre, não será excepção. Combinara com o meu irmão duas horas e quarenta minutos antes, como pessoa prevenida que sou. Uma amiga iria ter comigo ao aeroporto. Na última confirmação do voo percebo que confundi 16 com 5 da tarde. As horas em 24 números em vez de doze (diferenciadas apenas pela terminologia de manhã ou de tarde) sempre foram uma dor de cabeça, como distinguir a esquerda e a direita. Percebo que estou atrasada e nenhum dos elevadores funcionava de manhã. Entro em pânico. Ligo ao meu irmão se há alguma possibilidade de me ir buscar imediatamente. Ligo à minha amiga para desistir de ir ter comigo ao aeroporto. Como detesto despedidas até o universo ajudou. A viagem até ao aeroporto parece um voo. Sem tempo nem para olhar para trás, o meu foco é entregar a bagagem. Descubro que a mala tem 12 kgs a mais. Finjo não reparar e a pessoa da companhia aérea decide ajudar e finge comigo. Não tenho tempo de pensar em nada. Tudo em mim é calor. Voo para Munique, sem sobressaltos, respirando fundo. Descubro, mais rápido do que esperava, que me esqueci do caderno onde tomo notas. Nada de muito dramático. Mas como gosto sempre de encontrar qualquer coisa, agarro-me ao que há. A espera em Munique é rápida. Sigo para Génova num avião assustadoramente pequeno. Finjo ignorar. Passados uns minutos, sentada no lugar que me foi atribuído (junto à janela e sem ninguém ao lado), começo a transpirar (coisa nada comum). Estou gelada, tremo, os dentes batem, as gotas de água escorrem-me pela testa e pescoço, a minha palidez denuncia-me porque tenho olhares a seguir-me. Tenho falta de ar. Estou em pânico mas tento não perder a pose. Demorada e disfarçadamente tiro as bombas de asma e finjo que tudo está controlado. Minutos depois estou bem, só o cabelo molhado mostra o que se passara. Tenho o R. à minha espera no aeroporto de sorriso aberto. Sinto-me em casa com ele. Saímos do aeroporto e o que mais me choca são as ruas cheias de prostitutas. Contrariamente ao que seria de esperar, são caucasianas, não têm aspecto de cadente, são jovens e são muitas. O R. deixou-me no hotel que eu escolhi pela proximidade do meu apartamento. Nunca mais voltarei a este hotel e desaconselho-o a toda a gente. Supostamente era um hotel quatro estrelas. Mas disso nem a decadência lhe restava. O recepcionista era antipático, ainda existia chave, as alcatifas estavam sem cor e em mau estado, o quarto era pequeno e desconfortável, a tv era do tamanho de um ecrã 15’’ e a limpeza deixava a desejar. Lembro-me de ter comentado com uma amiga o quão mau era o hotel e respondeu-me que era um bom sinal porque sentir-me-ia muito mais confortável no novo apartamento. Não vou alongar-me nos comentários sobre o pequeno-almoço porque nem nos motéis dos Estados Unidos é tão fraco. A segunda pessoa antipática que me apareceu foi o taxista que mostrou o seu desagrado quando lhe disse que o meu apartamento era a menos de 1 Km. Cheguei à hora marcada para assinar contrato e o apartamento pareceu-me bem melhor do que nas fotos. Na opinião dos locais, a localização não é das melhores mas eu acho conveniente. Fica a 2 minutos da entrada do metro, em frente ao porto de Génova, tem mercearia e quiosque e outras lojas de conveniência. As ofertas de cafés e restaurantes são poucas. E o bairro é multicultural e multi-étnico. Tal como no primeiro apartamento que vivi em NY, o prédio não tem elevador e vivo num quarto andar.

Passada a fase de tudo parecer fácil, como receber o ordenado numa conta portuguesa e o pagamento do depósito e renda através de transferência bancária de uma conta portuguesa para uma conta italiana, começou a aventura: ter internet e telemóvel. Fui a um centro comercial para encontrar várias  empresas possíveis. Logo na primeira, praticamente desisti. Não poderiam ter sido mais simpáticos comigo e falavam inglês.  Depois mais de uma hora, de várias explicações, tentativas de pagamento com cartão de crédito português chegaram a um veredicto: só poderia fazer contrato de internet com um cartão de crédito italiano ou um cartão especial que se adquire nos correios chamado POSTPAID EVOLUTION. Os simpáticos disseram-me para ir aos correios italianos (Poste Italiane). Depois de andar 15 minutos a pé, disseram-me que para ter este cartão só com o código fiscal original (eu só tinha uma cópia) e o “attestato di soggiorno”. Regresso à loja e informo os simpáticos que não é possível. Como estou num centro comercial, aproveito e compro um microondas e improvisei o transporte com um carrinho de ir às compras. Chegada a casa subo quatro andares com o microondas. Volto ao hotel, onde deixei a mala com 35 kgs e regresso a casa de táxi. Demorou exactamente 25 minutos entre paragens entre degraus, vãos de escada e vontade de deixar (simplesmente) cair a mala no sentido da gravidade... O resultado foi bolhas nas mãos idênticas a quem levanta ferro nos ginásios, obras e afins.





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