sábado, 1 de outubro de 2016

A antítese

Percorro a Rua Direita de manhã e o ambiente de hoje não é o mesmo. Turistas e mais turistas. Daqueles que querem ver o maior número de coisas em menor tempo. Brasileiros, muitos brasileiros. Mulheres plastificadas de caras iguais. Daquelas que falam muito alto. Lula teve essa responsabilidade, democratizou o acesso das viagens para o exterior. Estas brasileiras não são daquelas que habitam muitos dos prédios em Portugal. Não são daquelas que descem à rua a mostrar mais do que devem, mesmo quando os seus corpos não sejam (para ninguém) um objecto de desejo, mas que ganham dinheiro para mandar para a terra natal com os anúncios que colocam no jornal a publicitar os seus serviços (cada vez a preços mais baixos. Dizem que é a crise, senhores). Não, não são dessas. Mas são aquelas que entram numa livraria e dirigem-se (apenas) para a secção infantil para comprar os presentes de Natal. São daquelas que apregoam aos sete ventos, no Brasil, perante as suas faxineiras e diaristas que são descendentes directas de alemães, espanhóis ou italianos. [Portugueses não. O português é europeu mas é  brega. O português é (apenas) o dono de padaria, supermercado ou restaurante. E isso, não é suficientemente bom para elas]. Estas são aquelas que dizem que são caucasianas puras e não morenas, pardas, pretas, mestiças. Apregoam isso, como se fosse uma virtude. E são aquelas que vêm a Portugal e continuam com o síndrome do colonizado. A culpar Portugal pelo mal do Brasil, que foi descoberto em 1500 e é independente desde 1882 mas não sabem que José Bonifácio foi quem descobriu o lítio. Eu gosto é de grandes mulheres brasileiras que assumem o que são. Que não têm vergonha do que são. Que não precisam da sua ascendência nem da sua genética para provarem o que valem.
O cenário muda quando chego à tenda do Folio Lounge. Tudo atrasado, felizmente. Agradeço ao universo pelos americanos que tentaram entrar no meu quarto porque confundiram o número. E mesmo com o aviso de "Não incomodar" insistiram em tentar abrir. O barulho foi tanto que acordei de uma sesta que devia ser de minutos e foi de mais de uma hora. Acordei na hora do evento. 

Passam por mim Pedro Sá, o grande amigo de Moreno Veloso. O estupendo músico, guitarrista da banda Cê que acompanhou Caetano Veloso. Deixou crescer o cabelo. Vejo o Pedro Luís, grande músico, também. Passa por mim, também, a (aparentemente) tímida Alice Santa'anna, uma enorme poeta que para pena nossa ainda não está publicada cá. Vejo também a omnipresente Anabela Mota Ribeiro que se desculpa pelo atraso. Este será o evento da Casa Cais idealizado pela Luana Carvalho (que eu não conhecia, como é possível?). É esta a composição: Luana Carvalho, Alice Sant'anna, Pedro Sá e Rafa. Um palco sóbrio com uma laranjeira que até se verão folhas a cair. A vida em movimento. Pedro Luís subirá ao palco para os acompanhar numa música. Anabela Mota Ribeiro abre com a leitura de um excerto do grande livro do não menos grande Machado de Assis, "Memórias Póstumas de Brás Cubas" personagem que fez Direito na Universidade de Coimbra e viajou de Lisboa, onde chegou de barco e depois seguiu para a cidade dos estudantes. Eu não tenho palavras para descrever o que este evento foi. Tanta música desnecessária no mundo e eu não conhecia a Luana Carvalho? Que descobri hoje ser filha da Beth Carvalho. A Alice Sant'anna é a delicadeza em pessoa. Lê bem, apresenta-se bem e (ainda) canta bem. Leu partes de um dos seus livros e as palavras que mais retive foram: baleia e Japão. Que lindo que foi. Que maravilha. A vida feita de pequenos nadas. É aquela laranjeira, carregada de laranjas, cujas folhas caiam... A iluminação perfeita. Uma obra de arte. Inesquecível. E estes são também brasileiros. A antítese perfeita. Como não amar?

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