quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

A vida como ela é

Levanto-me com bastante antecedência, apesar de ter feito as malas ontem. Depois de alguns sustos resolvo não arriscar e cumpro, religiosamente, as duas horas de antecedência necessárias nos voos. Uma constipação forte deixou-me em baixo de forma nos últimos dias. Como o frio é muito e a preguiça muita, em vez de andar 500 m até ao ponto de táxis mais próximo, resolvo chamar um táxi usando uma app. A aplicação diz-me que demorará 3 minutos. Resolvo descer,  com a maior velocidade que consigo 4 andares, carregada com duas malas. Mal chego à rua recebo uma mensagem a informar-me que o táxi está atrasado. Está um dia lindo, cheio de sol, mas gelado de congelar passarinhos nas árvores. Espero, espero e nada. O táxi continua atrasado. Passado algum tempo, mais do que justo para um atraso aceitável, desisto e resolvo ir a pé até ao ponto de táxis. Antes disso, ainda tenho tempo de dar todas as moedas que tenho no bolso a um velhote que me cativou desde o primeiro dia que cheguei a Génova. As duas razões foram: ter um cão ceguinho que passou a reconhecer-me e a ladrar sempre que me chegava perto deles é o dono, sempre que me via, dizer "Ciao Bella". Hoje, lá estava ele, sentado no mesmo lugar de sempre mas sem o cão. Há muito tempo que não o via porque agora vou de boleia para o trabalho e não de metro. Como após 8 meses de Itália, pouco ou nada aprendi de italiano, não consegui perguntar-lhe pelo cão. 

No táxi, a caminho do aeroporto, abro o meu email  para confirmar a hora de chegada a Roma e percebo que o vôo é às 10 e não às 11:25, como havia pensado. São 09:35. Podia ter desmaiado, ou ficar com taquicardia, ou com uma crise de asma, ou ter vontade de vomitar, ou... Não, como adulta quase nos 40, inspiro e penso que entrar em pânico não resolverá nada. Que atitude tão sensata! Não me reconheço! Está uma fila imensa de trânsito. Ao lado vejo o que resta da ponte Morandi e ao fundo os Alpes marítimos cobertos de neve. Convenço-me que há sempre coisas piores.

Chegada ao aeroporto, faço o habitual, vou em direcção aos balcões da Alitalia para despachar uma mala. Neste caso, para dizer que perdi o vôo das 10 porque achei que era às 11:25. Ninguém se interessará com a explicação, que neste caso nem faz sentido algum, que uma adulta quase nos 40 ainda confunde a esquerda com a direita, que nunca diz as horas em número maior que 12 porque se confunde com os significados, confunde os dias da semana em italiano e francês... E poderia dar muitos outros exemplos que me encheriam de vergonha, esse sentimento que não me abandonará nunca. A verdade é que toda a gente fará um sorriso forçado de pena e não se empenhará de forma alguma em ajudar.

As funcionárias da Alitalia fazem aquele sorriso piedoso de quem não tem nada a ver com isso e que a resolução não faz parte das funções delas e mandam-me para o balcão da emissão de bilhetes. Aí, como se fosse um favor que me estavam a fazer, dizem-me que não existe nenhuma reserva, que tenho de telefonar para as reservas da TAP e resolver o meu problema. Aqui começa a saga italiana. Mais de hora e meia num telefonema com operadores da TAP que parecem autómatos em vez de humanos. Este telefonema não resolverá nada que não seja a troco de muito dinheiro. Durante estas quase duas horas andei entre o balcão da Alitalia, balcão de emissão de bilhetes, sentada numa cadeira ou de pé às voltas não sei de quê. Hoje, como pratico todos os dias da minha vida, confirmo que apesar de não sermos pagos para ser boas pessoas, seremos sempre melhores se para além de sermos bons naquilo que fazemos, ou pelo menos tentarmos o melhor que sabemos, ajudarmos os outros como pudermos. 

Primeiro falei com uma pessoa do sexo masculino da TAP, que foi bastante simpático, não decorei nem apontei o nome mas ao qual expliquei, muito breve e sucintamente, o meu problema.  Ele garantiu-me que me iria transferir a chamada pra outro operador e que não não iria, garantíramo-nos, perder o vôo de ligação  das 11:25 de Genova para Roma. Este senhor passou-me a ligação para outra senhora, de nome Bárbara Ferreira, que obviamente não por culpa dela, demorou mais de 30 minutos a atender-me. Em vez de fazer um testamento sobre o que me tinha acontecido fui objectivamente ao assunto é expliquei-lhe o que dela precisava. Perdi a noção do tempo que esta senhora precisou para dizer-me o que vem a seguir, mas sem esquecer de referir-lhe que caso demorasse muito eu perderia a hipótese de embarcar no vôo das 11:25. Pois bem, após um tempo que está registado no meu telemóvel e a ouvir a música cantada pela Carminho e Paulo Gonzo (será?) esta senhora diz-me que para eu conseguir os vôos de Génova-Roma e Roma-Lisboa teria que pagar qualquer coisa muito perto de 600 euros e não seria em executiva. O mundo parou. Na terra de Colombo, no país do homem que descobriu que a Terra é redonda e que a terra anda à volta do Sol, o meu mundo parou. Como?! O meu bilhete é em executiva, no último ano fiz uma média de mais de 30 vôos na TAP e o que têm a propor-me é isto? Já que tenho tempo porque o vôo das 11:25 está perdido, e perder mais do que o que já perdi não é possível, decido fazer o melhor monólogo que tenho memória, sem auxílio de qualquer nota. Esta senhora ouviu-me com a atenção dos fiéis na homilia. Relembrei-lhe o quanto a TAP é criticada por tratar mal os clientes, de toda a gente que conheço, viajante assíduo de aviões, ter preferido outras companhias, da minha defesa patriótica da TAP porque às vezes acontece, de ignorar os atrasos, de ignorar os funcionários que só actuam "by the rules" e nunca encontram a melhor solução para o cliente, das 8 H de trabalho dos funcionários que como ela estão no quentinho de uma sala confortável e que têm um trabalho garantido, quer tenham um bom ou um mau desempenho e a descrição minuciosa da história inesquecível com a Lufthansa (*). A Sra D. Bárbara Ferreira aguentou estoicamente e respondia sempre com um pedido de desculpas ou que não podia fazer mais nada.

(*) Há uns meses eu tinha um vôo Lufthansa para Lisboa para ir à Embaixada de Itália. Quando chego ao aeroporto de Génova o vôo para Frankfurt estava atrasado uma hora, o que iria comprometer a minha ligação para Lisboa. Expliquei a situação a uma funcionária, e sei que foi um exemplo excepcional e sem repetição. Esta senhora, sem me conhecer de lado algum, tentou todas as hipóteses para me fazer chegar a Lisboa sem que eu perdesse o meu compromisso. Eu tinha um bilhete em econômica, nada mais. Esta senhora, que não sei o nome mas de quem me lembrarei toda a vida, disse-me para apanhar um táxi para Bolonha onde tinha um reserva para ir para Lisboa. Foram 550 euros de táxi que a Lufthansa me pagou em 3 semanas, tendo como prova um recibo de táxi manuscrito. Querem dizer-me que as empresas de aviação não têm comportamentos diferentes? Ou que os funcionários estão habilitados a resolver os problemas dos clientes de forma a que haja algum entendimento?

A Sra D. Bárbara Ferreira, durante o meu longo monólogo, deve ter colocado uma melhor banda sonora e na sua voz de enfado, daquelas que não ficam melhores uma oitava abaixo, diz-me: "se quiser assegurar os vôos é X". É aí começo a perceber que um problema maior toma conta de mim: perdi o meu telemóvel italiano! Faço um rápido raciocínio e desloco-me aos sítios onde estive. Em nenhum dos lados o encontraram. Mas não posso ligar para esse meu tlm italiano porque estou ao tlm com a Sra D. Bárbara Ferreira. Aqui comecei a relativizar os meus problemas. Como a minha cadela quando faz asneiras, coloca aquela cara de cadela com os olhos mais tristes do mundo e arrastar-se na minha direcção, em bom português, ponho o rabinho entre as pernas e mudo de drama. Ficar sem vôo e discutir  com uma senhora que haveria sempre de me dar a mesma resposta fosse qual fosse o nível dos meus argumentos ou encontrar o telemóvel? Eis a questão. Mudo de rotação. A minha prioridade passa a ser em busca do tlm perdido.

Para quem me conhece, sabe o meu nível de conhecimentos informáticos. Mas há uns meses instalaram-me uma aplicação, caso perdesse o iPhone, para o encontrar. Foi o que fiz. Em poucos minutos sabia que o tlm estava no aeroporto de Génova. Fui a todos os sítios onde tinha estado, que não foram muitos, e não o encontraram. Tinha quase a certeza que tinha caído do bolso das minhas calças. Um clássico! Fui aos “perdidos e achados” e também não tinham entregue tlm algum na última hora. A seguir, fiz o habitual, liguei e esperei. Nas primeiras vezes o tlm tocava mas houve uma vez que foi para o voice mail. Comecei a ficar preocupada. Perdi a conta do número de vezes que subi e desci a escadas do aeroporto de Génova, que separam o segundo do primeiro andar, com duas malas. Como última tentativa tentei a abordagem da segurança. Falei com o responsável da segurança antes do embarque e expliquei-lhe o que me tinha acontecido. Em poucos minutos contactam-no e disseram-lhe que entregaram um iPhone todo partido nos “perdidos e achados”. Era esse mesmo. 

Já em Roma, caminho em direcção à Lounge da Star Alliance. Passa das 4 da tarde e ainda não almocei. Todas as comidas aparentam óptimo aspecto mas a minha constipação e o meu estado febril não me deixam aproveitar. Como apenas alguma coisa. Ainda durante o tempo que me separa do vôo que me levará a Lisboa, não resisto a um aperol Spritz. Dessas horas resultou este texto. O que começa mal pode acabar bem. E foi este o caso. Como me perguntou um amigo: “como te ris?”.  Não tenho nenhum motivo para não o fazer.




quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Dia 3 - Roma


O hotel que escolhi fica na Piazza Vittorio Emanuele. Tinha uma entrada de metro mesmo em frente e ficava a 10 minutos a pé da maior estação de Roma, Termini. O hotel era um pequeno hotel familiar, boutique, simpático, cómodo, silencioso. Mas aprendi, ou antes, confirmei que os hóteis em Itália, com a excepção das cadeias internacionais, quando se reserva um quarto individual implica (sempre) a existência de apenas uma cama individual. E como tal, também, uma só almofada. O quarto era pequeno mas não precisei de maior. Outra coisa menos boa é que a casa de banho tinha um chuveiro com cortina de banho e não com vidro. Para além disso, a tampa da sanita era de plástico. No entanto, quando cheguei tinha uma carta personalizada do director do hotel a dar as boas vindas e um convite para um aperitivo ao fim da tarde no bar.

Depois do pequeno-almoco comecei o dia em direcção à Praça de Espanha. Outro dia infernalmente quente. Domingo. Dia de sol. Outro mar de gente. Saí na paragem mais perto e soube aqui, mais do que nunca, o significado de “todos os caminhos vão dar a Roma”.  Caminhei alguns minutos até ao cimo das escadarias da Praça de Espanha. A primeira persqectiva foi vista de cima. A escadaria estava cheia de gente. Pessoalmente parece mais pequena mas, nem por isso, menos bonita. Ao redor encontram-se algumas das lojas mais exclusivas com preços que não são para toda a gente. Como as cidades também são feitas de cafés históricos, não deixo de entrar no Cafe Greco, o mais antigo café de Itália depois do Florian, em Veneza. Um cappucino e um tiramisu 24 euros. Caro, mas um paraíso, quase sem pessoas. Sem wifi. Só a temperatura certa e a decoração antiga de sofás e cadeiras em veludo cor de vinho. Uma chávena em Porcelana, um copo de água de cristal, um tiramisu que parecia caseiro. Um deleite.





Sigo a pé até à Fontana di Trevi. Muitos alfaiates que vendem fatos por medida. Ruas estreitas. Apesar de haver muito boas indicações, é impossível não seguir o caminho certo. E quando chego lá, apesar da multidão e de ser a hora mais quente do dia, no pico da tarde, não é uma desilusão. Em Roma, mais do que noutra qualquer cidade do mundo, talvez por ser aquela onde mais aglomerados de gente vi, as pessoas querem registar o momento. Os turistas não querem ver nem sentir. Não querem tentar gravar na memória. Não querem simplesmente olhar. Aquilo que antes se atribuia apenas, ou mais, aos turistas japoneses, infectou a maioria dos turistas. A maioria só fotografa, grava, regista. E outra coisa que reparei é que não é apenas registar o monumento, ou o quadro, ou a escultura, ou a pedra. É combinar o retrato com o monumento, o quadro, a escultura ou a pedra. E então, é ver centenas de pessoas a pentear-se ao o telemóvel, a fazer o seu melhor sorriso, a prestar atenção se tem algum resto de pizza do almoço ou talvez um verde da rucula nos dentes. Esta posição de colocar os cotovelos para fora é uma arma branca para os mais distraídos como eu. Perdi a conta das vezes que choquei com cotovelos em Roma. No mais, a Fontana di Trevi, é numa praça pequena, que parece fechada e pequena mas aquele azul piscina é uma maravilha de se olhar, apenas. A sombra das casas que a rodeiam invade a praça. Dizem-me que à noite é uma calmaria e ainda mais bonita. Vejo alguém a vender castanhas assadas debaixo de mais de 40 graus e não quero pensar que depois do verão será outono.







terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Castelo Grinzane Cavour

21 de Outubro de 2018

Este castelo fica aproximadamente a uns 16 Km de Alba. Faz lembrar o Douro, sem rio. Embora a imagem que eu tenha do Douro não seja a da minha memória, porque esqueci as vezes que lá estive, tão tenra era a minha idade. Desde que tenho idade para não esquecer, ou deveria, nunca mais lá fui. Mas digamos que a imagem romântica que eu tenho do Douro Vinhateiro é das imagens e fotografias dos amigos estrangeiros aos quais aconselho. São montes e vales repletos de vinhas muito bem organizados com graus proporcionados de inclinação, com o rio no fundo. Pois bem, a vista que se tem do Castelo Grinzane Cavour  é parecida, talvez com menor inclinação e sem o rio (que só acrescenta beleza). Não visitei o museu do castelo. Vi apenas a cafetaria e a enoteca. Tem um restaurante, cujo chefe já trabalhou no  Louis XV do Alain Ducasse, em Monte Carlo. Muitos adolescentes a ler deitados na relva. Muitos turistas estrangeiros. 

É meio da tarde e eu entro num bar cujos snacks incluem queijos, salames e presunto. E vinhos vendidos a copo de Barbera, Barberesco e Barolo. Está um dia quente. Temperaturas de verão. Mas esta luz triste, amarelada, turva, lembra-me que estamos no outono. Para mim, a pior estação do ano. Acabo a comer um prato de queijos diferentes dos de ontem. Igualmente bons. E com isto lembro-me da Milly Lacombe que diz constantemente que a mãe (italiana) poderia só viver com queijos e vinho. Infelizmente, nunca tive um fígado e uma vesícula biliar irrepreensíveis e sei que vou padecer muito brevemente destes abusos de vinho tinto e queijos.








Ontem à noite, seguindo o conselho de pessoas de Alba, e sendo o Festival da trufa branca, fui a um restaurante chamado Museum, localizado numas ruínas romanas. Queria provar as trufas brancas em Alba. Já havia provado, acho que duas vezes, e não gostei. Mas como não provar esta iguaria na terra natal? E um copo de vinho tinto Barbera, o que me ensinaram ser frutado, ao meu gosto. Barbedesco e Barolo, tenho aprendido neste dias, são demasiado fortes e secos. Trouxeram-me pão caseiro e uma entrada (mimo do chef). E água com gás (que foi o que me salvou). Quando veio a pasta com as trufas era um acumulado do que parecia ser taggliatelli do tamanho da palma de uma mão (pequena) de ovo e manteiga e raspas finas de trufas brancas, muitas. Eu sei que não tinha muita fome, e tavez estes pratos sejam para ser comidos a morrer de fome. O cheiro arrumou-me logo. Para além do mais, o meu grande amigo R. havia-me dito que "não era a cena dele". O meu pai quando não gosta muito de uma comida diz que não aprecia. Eu poderia dizer o mesmo, fosse o caso. Mas detestei mesmo. Não volto a comer nada com trufas brancas. O que salvou a noite foi uma sobremesa. 





Alba, muito concorrida nesta altura do ano, tinha todos os hoteis esgotados há mais de duas semanas. No Booking vi a classificação de um seminário como excelente e decidi arriscar. Muito barato para Itália, e mais barato ainda para esta região de Itália. Cada noite ficou por 50 euros, sem pequeno almoço. Foi uma agradável surpresa, a combinaçao entre o silêncio, a arrumação, a simplicidade de um seminário com a modernidade, as grandes dimensões, a comodidade e a limpeza de um quarto de hotel. Para além do mais, as duas semhoras responsáveis eram de uma simpatia enorme e até me foram buscar à estação de comboio. Melhor não podia ter sido. Neste fim de semana, para além de ser o Festival da Trufa Branca de Alba, juntou-se a feira Medieval. Um mar de gente. Ruas entopidas. Muitos jogos, muitas barracas a vender avelãs torradas, vinhos e doces regionais. Barracas de comida de rua com todo o tipo de churrasco, peixe frito, polenta e hamburguers.






A viagem de comboio para Alba é muito bonita e incluiu a mudança de comboio em Torino. Mesmo quem como eu não morre de amores por naturezas bucólicas, aconselho esta viagem porque combina paisagens diferentes, arquitectura diferente do habitual em Itália com a gastronomia e o vinho, que também são cultura.

domingo, 4 de novembro de 2018

O que aí vem

Passou-se uma semana e ainda não estou refeita da escolha feita pelos brasileiros. Aprendi muito nesse mês de campanha eleitoral no Brasil. Mais até no segundo turno. Li muito, vi muito, ouvi muito, discuti muito, zanguei-me muito. E apaguei muitas pessoas. Não quero ter pessoas que frequentam os meus dias que sejam racistas, ignorantes, violentas, xenófobas, misóginas, classistas, que tenham "ódio no coração", que não respeitem e que não sejam democratas. Repetiram-me muito, apoiantes de Bolsonaro, que eu não sei nada, que não sei do que falo, que sou uma privilegiada portuguesa de um país seguro e pacífico que sempre viveu protegida pela academia. E a minha resposta, hoje, já que não consegui mudar um voto, é: "vão-se foder porque quem não entende nada são vocês que vivem num país que fez o 25 de Abril, e quer eu goste ou não, mas respeito a decisão democrática permitida pela constituição, é governado por partidos de esquerda.

Como é que alguém no seu perfeito juízo acredita nesta solução simplista de "matar os maus" e dessa forma acabar com a violência? Ou armar melhor "os bons" em vez dos "maus". Esta gente já parou para pensar que para mudar alguma coisa só educação. Estas pessoas já pensaram em que mundo nascem os pobres no Brasil? Que numa mesma casa vive uma mãe jovem com muitos filhos e muitos netos e ainda não chegou aos 50 anos? Acham que laqueação forçada é a solução? Não entenderam nada. Vejam o filme "A que horas ela chega?" E perceberão alguma coisa. 

Infelizmente, fenómenos como Bolsonaro estão a surgir em todo o mundo. A extrema-direita ou neo-fascista está a aparecer ou a sair da toca em todo o lado. Quando eu achava que nada podia ser pior do que Trump, ou que não se podia descer mais, eis que surge Bolsonaro. As suas ideias tão básicas e tanta ignorância fazem parecer o seu discurso uma piada. É mau e mal preparado demais para ser verdade. Junta a ignorância, com o exagero, com a palhaçada. Nunca achei possível que fosse eleito. Tive esperança até à última hora. Um homem com um discurso de ódio e que resolve tudo com a maior das simplicidades. Elimina-se, executa-se, mata-se, faz-se desaparecer, nega a ditadura militar é problema resolvido. Infelizmente, nada disto é novo. Já todos vimos e foi-nos explicado, nas aulas de História, como Hitler subiu ao poder. Nunca nos esqueçámos que Hitler foi eleito democraticamente quando a Alemanha atravessava uma grande crise pós-guerra. Hitler, bem menos ignorante e mais bem falante do que Bolsonaro, com os seus discursos nacionalistas e populistas conseguiu que votassem nele. Não neguemos que os alemães não tiveram culpa é não sabiam ao que iam. Bolsonaro nem português sabe falar. E eu que não oiça nunca que os brasileiros foram enganados ou que não apoiavam o discurso dele. Se há coisa que Bolsonaro nunca escondeu foi ao que vinha.

Tive muita pena que Haddad não tenha sido eleito Presidente. Confesso que me conquistou. Acho-o um homem bom. Mas ele e o PT cometeram o erro de não aceitar a prisão de Lula e para além de uma ideia quiseram transformá-lo num mártir. Nunca gostei do Lula mas acho, depois de tudo o que tenho visto, que ele não foi o pior que o Brasil produziu. Tenho muita pena que, como os apóstolos, o PT e Haddad tenham largado tudo e seguido o mestre (neste caso, Lula). A história encarregar-se-á dos julgamentos mas o grande erro do PT, ou de Haddad, ou de ambos, ou de todos feijão terem abdicado de Lula. Haddad seria muito melhor Presidente do que Lula seria hoje. Lula, que como os grandes egos, em vez de se deixar descrever pelos erros, descreve-se a si próprio, já não é um homem é uma ideia. Pode até ser. Mas já era tempo de ter deixado a luta para os outros. O tempo de Lula acabou e ele devia ter percebido. Haddad foi a segunda escolha. Sempre colado à péssima imagem que a maioria dos brasileiros tinha de Lula. Tarde e mal assumiu e desculpou-se pelos erros do PT. Haddad, um homem bem formado, democrata, ponderado, com ideias. Acima de tudo um professor. Que oportunidade desperdiçada, Brasil.

Depois, ciro Gomes, que se eu fosse brasileira e votasse, teria sido a minha opção no primeiro turno.que desilusão. Que decepção é o engano. Ciro Gomes mostrou que o ego é uma merda. Como as pessoas normais, e não como os grandes estadistas devem ser, Ciro Gomes não soube aceitar os resultados que lhe deram o terceiro lugar e amuou. Abdicando da sua privilegiada posição e de milhões que acreditaram e votaram nele, viajou para a velha Europa, o exterior, como gostam de dizer. Ciro Gomes assinou a sua morte política com esta decisão. Nunca se vira as costas aos eleitores e ao país quando tanto está em causa. Embora ele ache que tenha jogado certo e apostado na futura candidatura em 2022. Só que Ciro Gomes jogou mal é errado. Se houver eleições democráticas em 2022, que desconfio que possa acontecer, os seus eleitores se tiverem memória, não voltarão a confiar num candidato que só quer é aceita ganhar. Para mim, Ciro Gomes morreu politicamente. Como escreveu Drummond: "Nunca me esquecerei desse acontecimento/ na vida das minhas retinas fatigadas". Ciro Gomes perdeu a oportunidade de ficar do lado bom é certo da história. Que triste que foi.

O acesso à educação dos mais pobres e a ascensão social que a educação permite, intimida os privilegiados. Salazar, esse "pai" dos pobres e pregador das vantagens de se ser pobrezinho mas limpinho dizia: "um lugar para cada pessoa é cada pessoa no seu lugar". Não foi por acaso que Portugal em 74 tinha uma taxa de analfabetismo gigantesca e as pessoas não concorriam às universidades, inscreviam-se. Quem é que lá chegava? Os ricos, privilegiados, educados ou um pobre que com um rasgo de muita sorte é uma série de coisas que correram bem conseguia chegar ao topo. A verdade, por mais que digamos mal de Portugal é que conseguimos de 74 até hoje democratizar o ensino. Só não houve necessidade de cotas porque somos uma maioria branca. Ainda estes dias discutia isso com um amigo aqui em Itália. Somos uns privilegiados porque somos brancos. De boca fechada ninguém sabe que não somos italianos. Sim, é assim que está Itália, a transformar-se rapidamente num ninho de apoiantes da extrema-direita. E Salvini ainda há pouco chegou à Ministro. esperem para ver.

E depois, quando todas as previsões e sondagens insistiam em dar a vitória a Bolsonaro, eu insistia em não acreditar. Eu tive esperança até ao fim tal era o clima de mudança é manifestações tão bonitas. A esperança é teimosa. Achei possível uma viragem. A democracia vencer contra o ódio e contra a violência.

Flores e livros. Que melhores símbolos podiam representar um candidato? Apesar de nunca ter gostado do Lula, num ter sido sua apoiante, e nunca ter votado num partido com a ideologia é tão à esquerda como o PT, teria votado em Haddad de olhos e coração bem abertos.

E na hora da derrota, o discurso de conforto e sem confronto.um discurso de abraço e de comunhão. Um discurso tão bonito, de improviso, emocionante, sentido. "Não tenham medo". E como li há pouco, no livro do João Guimarães Rosa "Grande sertão veredas", que tanto queria e me foi dado sem eu esperar e pelo qual me tinha apaixonado por causa de Diadorim na voz de Maria Bethânia: "o correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem".

Hoje, sábado, já depois de saber que Sergio Moro aceitou ser Ministro da Justiça e da Segurança Pública torna tudo mais triste. Afinal, Sergio Moro acaba de desmentir tudo o que disse de nunca aceitar nenhum cargo político. De facto, o ego é uma merda. E Sergio Moro acaba de transformar Lula num mártir e de legitimar a tese do PT de perseguição política. Mais, se houvesse algum resto de respeito por Moro acabaria quando aceita o convite de uma pessoa tão anti-estado de direito. O eleito governador do Rio de Janeiro, um magistrado associado com seitas religiosas defende a "matança d bandidos" com tiros certeiros na cabeça por snipers. É nesta guerra que o Brasil se transformou. 

Mas depois oiço a música de Caetano Veloso, que considero adequada para este momento, e que ganhou a melhor versão que ouvi até hoje acompanhada apenas pelo piano e cantada pela Adriana Calcanhotto (que infelizmente retirou do repertório de "a mulher do pau Brasil" mas que eu tenho a esperança infinita que seja reposta), talvez de resistência em democracia, sem violência e sem ódio: "Mas ela ao mesmo tempo diz que tudo vai mudar/ Porque ela vai ser o que quis, inventando um lugar/ onde a gente é a natureza feliz vivam sempre em comunhão/ E a tigresa possa mais do que o leão".

sábado, 27 de outubro de 2018

O dia da virada

Ontem, discutia que achava impossível haver um fenómeno Bolsonaro em Portugal. Pelo simples facto que um neo-fascista palhaço e ignorante não encontraria muitos apoiantes em Portugal. É que Bolsonaro é ainda pior que Trump. Posso estar muito enganada mas Bolsonaro comparado com Trump é muito pior. Antes de ser eleito, Bolsonaro não engana ninguém e diz ao que vem. A última é tirar o Brasil da ONU. Não perdeu tempo a ameaçar os seus opositores “cadeia ou exílio”, coisa que nem a ditadura militar se atreveu. Defensor, sem qualquer vergonha, da tortura.  E teve a desfaçatez de dizer que o erro da ditadura militar foi não ter eliminado umas 30 mil pessoas. Depois defende coisas absurdas como o conceito de família normal mas tem uma família constituída por marmanjos que vivem e enriqueceram da política. O nepotismo no seu melhor. E foi “batizado” em adulto por uma das seitas que mais poder tem no Brasil. Fala e expressa-se mal em língua portuguesa, imaginem nas outras. É um ignorante em todas as matérias técnicas. Não é por acaso que deve ter sido um dos únicos candidatos em todo o mundo a recusar debates com o seu adversário.  Dizem que é contra a corrupção mas há muitos anos que vive da política e vê o seu património, e o da família, aumentar exponencialmente. É um homem grotesco. O absurdo em pessoa.
 Depois de Trump achei que não se podia descer mais baixo. O problema é que o buraco parece não ter fundo. E quando se instiga à violência e ao ódio e se provoca medo, não há como não votar em Haddad. mesmo que não se seja de esquerda, mesmo que não se concorde, mesmo que não se goste, nem que seja o mal menor, ou de olhos fechados. E eu que nunca votei em Portugal num partido da ideologia do PT digo com toda a convicção e com os olhos e o coração nem aberto, eu apoio Haddad. Que pena ter sido a segunda escolha do PT. Quem sabe, com mais tempo, não houvesse segundo turno e o inominável não estivesse cheio de esperança.

E Ciro Gomes foi a desilusão. Amuado, pegou nos votos das pessoas que confiaram e acreditaram nele e veio descansar para Paris. Tão fácil? Independentemente do que se passará amanhã não haverá Ciro em 2022. 

Mas erros todos cometemos e Ciro Gomes ainda está a tempo de ficar ligado ao lado bom da história. Todos contamos com o apoio e as palavras de Ciro Gomes. O Brasil fará história amanhã, dando uma grande lição ao mundo de como a ditadura não passará? Eu quero acreditar que sim. Pela língua portuguesa, pelos meus amigos que não quero ver exilados, pelos artistas que quero continua a ver terem voz sem medo, pelos esquecidos , pelos que não têm voz, pela esperança num Brasil melhor, eu serei sempre pelos candidatos democratas. Eu sou Haddad. Contra o ódio e a favor da democracia no Brasil!

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Prémio Bottari Lattes


No sábado, 20 de Outubro, no Castelo Grinzane Cavour, numa cerimónia que começou às 4:30 da tarde foi entregue o prémio Bottari Lattes a António Lobo Antunes numa cerimónia pública. Vindos dos liceus de toda a Itália, a plateia estava repleta de jovens leitores.

No discurso de agradecimento do Prémio Bottari Lattes no valor de dez mil euros disse: “Quero agradecer este prémio que me deu muito prazer de o vir receber aqui e encontrar pessoas que foram, para mim, de uma delicadeza e de uma elegância que não vou esquecer. Se há coisa que eu admiro nas pessoas é a elegância da alma. E isso encontro aqui, até na beleza da vossa língua, que me faz imensa inveja, porque se eu escrevesse em italiano poderia, certamente, chegar mais longe. Quero, sobretudo, agradecer a forma como receberam, atrevo-me a dizer que com ternura e amizade. Como estava sempre a dizer um grande amigo, que tinha idade para ser me avô: “Olha miúdo, só há duas coisas no mundo que valem a pena: o amor e a amizade. O resto é uma merda”.

Ainda houve tempo para uma pergunta i: “A sua prosa tem uma força poética excepcional. Qual é a sua relação com a poesia? ”.“A mim parece-me que a distinção entre poesia e prosa está em vias de acabar. Não faz muito sentido. Lembre-se que às Almas mortas de Gogol se chamou de poema e Nabokov chamou ao seu poema romance. Toda a arte tende para a poesia. A poesia pode muito mais do que a prosa. Eu muitas vezes não sei o que estou a escrever nem a ler. Se pensar em Bashô, poeta japonês, tem um poema que é assim: “ Os quimonos secam ao sol/ Ai as mangas pequenas/ Da criança morta”.  Uma vida inteira está aqui em meia dúzia de palavras.

Quando Antonio Lobo Antunes recebe das mãos da mulher de Mario Lattes agradece-lhe, muito educadamente, e como um cavalheiro como poucos, faz-lhe uma pequena vénia com a cabeça e beija-lhe a mão.









copyright: Fondazione Bottari Lattes






copyright: Fondazione Bottari Lattes





terça-feira, 23 de outubro de 2018

Lectio Magistralis

Entro no Teatro Sociale  Giorgio Busca a poucos minutos da hora marcada. Sala bonita, parecida com o Teatro Nacional S. João. A plateia está cheia e como só restam lugares longe do palco opto por um dos camarotes. Muitos intelectuais, muitos jovens, muitos adolescentes. A mulher está sentada na segunda fila.

No palco está apenas uma cadeira e uma pequena mesa. António Lobo Antunes (ALA) entrará daí a poucos minutos para iniciar a Lectio Magistralis do prémio Bottari Lattes do qual foi o vencedor de 2018. A cerimónia de entrega será no dia seguinte no Castelo Grinzane Cavour, Património Mundial da Unesco.

Quem apresenta António Lobo Antunes descreve-o como "muito conhecido em Itália, na Europa e no mundo". O teatro repleto numa cidade pequena como Alba é o exemplo disso. Continua com a introdução da biografia de ALA, destacando a sua formação como médico psiquiatra, principalmente a sua experiência como médico na guerra em Angola "o Vietname português". Seguiu-se a bibliografia, com o apresentador a mostrar-se um conhecedor da obra, sem necessitar de ler para destacar cada um dos livros traduzidos. Elogia a ligação de ALA à literatura e ao cinema italiano e a narrativa inovadora. Destaca a imaginação de ALA, e os cenários dos seus livros, Lisboa e África ficcionadas, realidades que não existem. Há também uma pequena leitura do livro "Não é meia-noite quem quer", o último livro traduzido em Itália. 

António Lobo Antunes entra no palco debaixo de estrondosas palmas. Andar arrastado. Os anos têm visivelmente passado por ele e deixado marcas, fisicamente. Começa a falar com uma voz inaudível em português. Tem tradução simultânea. 

Começa por dizer que não fará nenhuma Lectio Magistralis. E o monólogo inicia-se pela sua relação com os livros aos 3/4 anos. Aprendeu a ler muito cedo. Divaga entre a morte, tratada como desconhecida, e os livros que começou a ler, desde Oscar Wilde a livros franceses. Fala dos irmãos, de como eram todos bons alunos, o contrário dele. Não estudava. Só lhe interessava escrever e ler e o hóquei. Passa para a relação com o pai que quando leu as primeiras coisas que escreveu foi muito encorajador: "Isto não presta para nada". Mas ele próprio tinha a certeza que ia escrever coisas extraordinárias. Aos 14/ 15 anos era hiperdotado e começou a enviar os textos, sob pseudónimo, para o jornal. Escrevia de tudo poesia, conto, novela. Estava convencido que era um génio. E como queria ser escritor, quando o pai perguntou qual o curso para o qual queria entrar, pensou em Letras. E o pai, como era muito democrata, disse: "Estás matriculado em Medicina". Então, mais precoce que a maioria, aos 16 anos entrou em Medicina. Nunca tinha visto um cadáver. Mas tudo nos primeiros anos envolvia cadáveres. Tinha medo. Essas aulas imensas de 4 horas provocavam-lhe terror. Mas continuou sempre a escrever e enviava coisas para a Casa dos Estudantes do Império (que defendia a libertação das colónias). E foi chamado à Polícia política. Como era um Lobo Antunes disseram-lhe: "O menino vá para casa e veja se não reincide de andar com comunistas". 

Fala da divisão social que existia na ditadura entre ricos e pobres. Das quatro ou cinco empregadas que tinham em casa. Das diferenças sociais que existiam. A missa das empregadas às 7 da manhã separada da missa dos patrões ao meio-dia, com direito a homilias mais longas é um dos exemplos dados. A igreja católica não é poupada, destacando os grandes almoços que havia em casa com padres e bispos que comiam e comiam: "essas santas criaturas".A ditadura também não é poupada. A existência da polícia política agressiva e temível, muito mais para os amigos do que para ele, que era um privilegiado.

Fala da sua viagem a Pádua de carro, ainda criança, e o pai a querer parar em todos os museus dos países por onde passavam. O pai queria ver todos os Tintoretto e ele achava uma chatice e que "gostava dos escarradores". Conta o episódio do escritor que perante As meninas de Velasquez no Prado ficou a olhá-lo muito tempo, calado e quando lhe perguntaram o que achava respondeu: "Onde está o quadro?", a mais bela crítica de arte q ouviu.

Fez o curso com várias reprovações mas no fim apaixonou-se pela Medicina. Escolheu Psiquiatria porque achava que dava menos trabalho. Foi para Londres fazer um estágio e quando volta é chamado para a guerra. Pensou em fugir. "A esquerda ia fazer a revolução para os cafés de Paris e voltava a votar na direita". Mas como podia fugir se escrevia em português? Tinha que estar em Portugal. E achava que a ditadura, que tinha começado em 1926, nunca iria acabar.

Exalta os militares, os seus soldados. Alguns deles nunca tinham visto o mar: "Que rio é este tão largo e com tanta espuma?". A maior parte dos soldados era muito pobre. Contou outro episódio que se passou há uns anos, no Porto, num sítio muito chique e os "seus" soldados apareceram para a apresentação do livro e o professor responsável pela apresentação disse: "O António gosta muito de pessoas humildes". Ao que ele respondeu, indignado: "Os meus soldados não são gente humilde. São príncipes. Está a ouvir? São príncipes!". E a partir daí começaram a aparecer com cartazes "Os príncipes de António Lobo Antunes. Quanto à guerra. propriamente, só falará de um dos intervenientes da revolução, Ernesto Melo Antunes, que no meio de um tiroteio à noite andava desprotegido e com uma lanterna: "Sabes, é que às vezes apetece-me morrer". Recordará a única vez que chorou na vida quando recebeu um telegrama a dizer que tinha uma filha. Foi chorar imenso tempo e outro oficial colocou-lhe a mão no ombro, sem dizer nada. E essa mão silenciosa e a sua importância, nunca mais esqueceu.

Recordou a dificuldade de voltar à vida real depois da guerra. E também a dificuldade de publicar o primeiro livro. Deu o manuscrito a ler a dois amigos: "um disse-me que devia tirar a primeira parte e o outro disse-me que devia tirar a segunda...". O livro foi recusado por todas as editoras em Portugal. Depois foi publicado por uma pequena editora e na sessão de lançamento "estava eu, o editor e a empregada da editora". E foi um acontecimento. Vendeu muito. O irmão Miguel até lhe disse: "Tens que tirar a fotografia da conta-capa porque ouvi dizer "deve ser uma porcaria mas ele é tão bonito". 

Falou do imenso orgulho que foi conseguir um agente em NY e ter sido publicado pela Random House e de ter boas críticas no The New York Times e todos os mais importantes jornais americanos. De como largou a Medicina para se dedicar em exclusivo à escrita. Continua a fazer o mesmo horário. Escreve das 8:30 até à uma e depois das 2:30 às 8 e depois mais um bocado à noite. Porque escrever, segundo ALA, é sobretudo trabalho.

Tem andado a reler Dickens. Cita de memória sobre um filho que vai ver a mãe que está muito doente:
"- Tens dores, mãezinha?
-  Tenho a impressão que há uma dor aqui no quarto mas não sei se sou eu que a tenho".
Deu este exemplo para explicar o quanto é preciso de trabalho e sofrimento para chegar a uma frase destas. 

Não se esqueceu de destacar o quanto estava orgulhoso por ver publicada toda a sua obra na colecção Pléiade, o único português, a par com Fernando Pessoa, a integrar esta lista. E junta-se aos 3 escritores vivos a integrá-la. 

Um monólogo, com argumento conhecido, sem qualquer novidade para os que acompanham de perto os poucos eventos públicos que aceita, usado como guião da sua Lectio Magistralis. Despediu-se com: "Só entre os homens e por  eles vale a pena viver".

O público não teve direito a perguntas mas os seus admiradores tiveram a oportunidade de ver os livros autografados. Teve direito a uma pausa para fazer desaparecer dois cigarros. Filas desorganizadas de mais novos e mais velhos, com a predominância dos mais novos. Auxiliado pela tradutora nos recados que os seus admiradores faziam questão que entendesse, parava de escrever, olhava-os nos olhos, com o sorriso lindo, apesar de contido e tímido. Quase não se lhe vêem os dentes,e aquele segundo de atenção com um sorriso inocente de quem não está a entender o que se lhe está a dizer, mais por causa da surdez do que outra coisa. E responde, delicadamente, com a mão estendida: "Grazie".









quinta-feira, 11 de outubro de 2018

"Eu vejo o futuro repetir o passado"


Ressacada do resultado das eleições democráticas no Brasil com Bolsonaro quase a não precisar de uma segunda volta, sinto-me como os versos de Caetano: "Estou triste, tão triste/ Por que será que existe o que quer que seja... sinto o meu prato vazio e ainda assim farto". E para piorar, Bolsonaro teve 59% dos votos dos brasileiros em Portugal. Apetece dizer, no calor da coisa, mudem-se para esse país que vocês idealizam porque vocês devem merecer. Depois recupero alguma lucidez e penso que o Brasil perdeu uma tão boa oportunidade de eleger um homem bem preparado tecnicamente, com ideias, com um programa bem explicado, que fez uma campanha informada e que já foi ministro e governador do Ceará, Ciro Gomes. Mas pelos visto, desta vez, parece que o que os brasileiros queriam era uma guerra ou um combate à dois. Avaliação de forças.  Como se justifica esta dicotomia Bolsonaro vs Haddad? 


Nunca simpatizei com Lula da Silva. Já escrevi muito sobre isso. Mas não há como negar que o primeiro governo de Lula tirou muita gente da miséria. E muitos, pela primeira vez na vida, puderam sonhar. No entanto, quando em 2015 estive em São Paulo, pude constatar que era uma cidade de extremos. Uma cidade com a maior favela da América Latina com restaurantes com preços mais altos que NY. Hotéis 5 estrelas que tinham tantos empregados como hóspedes, pessoas cujo trabalho era abrir a porta e dizer: "cuidado com o degrau". Apartamentos em pleno século XXI ainda construídos com separação entre patrões e funcionários. Mulheres mestiças e negras a quererem parecer brancas e alisar os cabelos e a pintá-los de loiro. Médicos  e cientistas que não dominavam a língua inglesa. Brasileiros de classe média a invadir as lojas em Miami e NY.



O maior erro do PT foi manter-se refém de Lula da Silva. E não ter querido ouvir os protestos de um país. Concordo que Haddad é um bom candidato. Bem preparado. Foi um grande Prefeito da cidade Pde São Paulo com ideias progressistas como diminuição da velocidade e fecho de ruas ao trânsito e implementação de outros meios de transporte como a bicicleta. É unânime que foi também um bom Ministro da Educação. Tinha tudo para ter um bom resultado. No entanto, o PT preferiu não fazer o mea culpa e achar que tudo no Lava Jato foi uma "armação". E como todos os mártires, Lula decidiu ir até ao fim e medir forças com a justiça. Acabaram a perder todos. Haddad que foi a segunda escolha e quase não fez campanha como principal candidato. Perdeu o PT porque quando se assume culpas ganha-se o respeito dos seus eleitores e perdeu o Brasil que poderia não estar agora a um passo do abismo. Poderemos sim, para sempre, culpar o PT por este erro estratégico.



Obviamente que Bolsonaro,um péssimo candidato, péssimo político que viveu os últimos 27 anos na e da política e tão pouco contribuiu para ela, sendo ignorante, racista, sem ideias, sem planos, sem projecto de governo, homofónico, xenófobo, misógino, defensor da violência, primário na resolução dos problemas, só podemos concluir que o resultado obtido é um voto de protesto. Os brasileiros estão fartos.
Pobreza, desemprego, desigualdade, violência, falta de oportunidades. É disto que os brasileiros mais se queixam.



Foi assim que Hitler chegou ao poder. E é assim que chegam ao poder (quase) todos os ditadores. Como alguém disse os democratas deviam ter-se unido na primeira volta para derrotar o fascista Bolsonaro. Infelizmente, o meu optimismo não abunda, e acredito que milagres só Deus e os santos. 



Mas o mais revoltante é ver que 59% do emigrantes brasileiros que vivem em Portugal (e não, não são só ricos e milionários) votaram em Bolsonaro! Como é possível os alvos de Bolsonaro votarem a favor dele?! Perceber que São Paulo, a maior cidade do Brasil e mais cosmopolita elegeu novamente o palhaço Tiririca e Alexandre Frota, um ex-actor pornográfico, a quem um dia Bolsonaro disse ser a sua escolha para Ministro da Cultura. Como Cazuza cantou há 30 anos e é tão actual: "eu vejo o presente repetir o passado".Agora, com 20% de vantagem sobre Haddad, Bolsonaro só precisa de continuar igual a si mesmo. E a mim resta-me tentar convencer os meus amigos brasileiros que votaram em Bolsonaro ou Ciro a mudar o voto. Porque apesar dos muitos tiros nos pés de Haddad, como continuar sob a batuta de Lula (o que foi aquela visita a Lula no dia seguinte às eleições? Precisa da autorização do mestre?). Mas mesmo assim, confirmo convictamente que nunca votaria num candidato de extrema-direita, apoiante da ditadura, defensor da tortura e da violência, tecnicamente ignorante, misógino, racista, xenófobo, homofónico. Por isso, a solução é o mal menor. Esqueçam os pecados do PT, votem de olhos fechados, votem no mal menor como um dia Paulo Portas se referiu ao apoio de Cavaco Silva na primeira candidatura à Presidência da República. Não consigo imaginar um Brasil regredir em pleno século XXI.Que país é esse?

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

#elenão


No dia em muitas das cidades do Brasil, e incluíndo outras como Lisboa, vão manifestar-se contra Bolsonaro eu também digo: “ele não”. Bolsonaro é o exemplo de que pode sempre existir pior. Está na hora de a sociedade brasileira perceber que Bolsonaro à frente dos destinos do Brasil será uma desgraça. E não confiemos no absurdo da possibilidade. Arrisco-me a dizer que Bolsonaro é ainda pior do que Trump. Bolsonaro, o homem que fala abertamente e sem vergonha em resolver a violência matando; que deseja a morte de adversários políticos; que tem como ídolo um torturador; que nega a existência de ditadura; que insulta mulheres, que ameaça bater-lhes; que é apologista da tortura, que incita ao uso de armas, que se mostra publicamente a fingir empunhar uma arma; que apesar de viver num país de extremos económicos não aceita como solucão a reformulação dos privilégios dos políticos; que acha que ter uma filha é uma fraqueza, que se vangloria de só ter filhos homens; que não acredita na educação como mudança de uma sociedade; que acha melhor ter um filho drogado do que um filho gay, que acredita na cura gay; que enriqueceu com a política e que todos os filhos vivem da política; e por aí vai.

Um homem sem qualidades. Um político sem ideias, sem plano, sem estratégia. Um político que é o pior que a política pode ter como exemplo: um homem sem preparação alguma, sem qualidade técnica, sem empatia. Um homem que vive da descrença de um povo e de sound bytes. Um homem que nem falar sabe.

Hoje e até ao dia das eleições no Brasil é importantíssimo que os grandes exemplos não fiquem calados e usem a sua importância como “influenciadores” de opiniões e também digam “ele não”!   

Como estou fora de Portugal só  acompanho as notícias pelas redes sociais e o que me contam. Soube há poucos dias, com o sentimento que a humanidade de facto falhou, que juizes do Porto consideraram consentida a violação de uma mulher inconsciente. Para além  de repugnar a decisão destas pessoas supostamente acima de qualquer suspeita e superiormente educadas, o que leva seres humanos, seres bípedes com suposta inteligência violar uma pessoa inconsciente? Que prazer há nesse cenário mórbido? Uma pessoa inconsciente, que não responde a estímulos ser abusada por duas pessoas? Estes pseudo humanos não têm mães, irmãs, filhas, mulheres que respeitam e de quem gostem?  Que sentido faz isto? Isto não se passou no Brasil ou na Índia aconteceu em Portugal em pleno século XXI. Mostremos a nossa indignação. Falemos, ensinemos, gritemos que tudo se baseia em consentimento e respeito. Nem os animais irracionais são capazes de tal aproveitamento.,


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