terça-feira, 12 de novembro de 2013

Os carros e eu

Não nasci para conduzir. Nunca percebi nada de carros nem nunca me interessaram. Há 10 anos, exactamente, tirei a carta de condução quando já não tinha motivos para adiar mais. Nos primeiros meses  depois de tirar a carta ia todos os dias para a universidade antes das 8 para não apanhar trânsito. Depois disso continuei a ser uma péssima condutora. Mas apesar disso nunca tive nenhum acidente.

Agora passados dez anos chegou a hora de trocar de carro. E o que deveria ser uma coisa boa está a tornar-se num pesadelo. Primeiro comprou-se o carro e só depois o experimentei! O mostrador da velocidade é digital, tem GPS, tudo é automático, não tem chave e tem um cartão. Para se ligar e desligar o carro é um botão. E para piorar é enorme... Excesso de tecnologia nunca foi uma boa coisa para mim. Eu que preferi sempre livros e o cheiro deles a livros digitais, escrever à mão em vez de escrever no computador... agora quando entro no carro tudo se liga sem eu querer... é o rádio, quando chove aquilo é automático, o A/C, as luzes... Quando tenho de conduzir é um stress. Eu acho que até emagreci! Mas agora que está feito é andar para a frente e já não posso voltar atrás. O meu sonho de consumo era ter um motorista, sempre disse isso.

Um destes dias estava a dizer ao Poeta (o toxicodependente, sem-abrigo e arrumador de carros que está em frente ao meu prédio) que tinha um carro novo para ele vigiar e ele pede-me uma moeda. A mim ele nunca me pede nada, sou eu sempre que ofereço sempre. Mas naquele dia ele devia estar a precisar da droga e perdeu a vergonha: “Eu nunca lhe peço nada mas hoje queria mesmo era uma moedinha em vez de comer”. Eu levava a Bu pela trela a passear e não tinha moedas mas disse-lhe que ia levantar dinheiro. Ele foi comigo levantar dinheiro e eu para trocar por moedas fui comprar pão. O Poeta, amavelmente, ofereceu-se para ficar com a Bu fora da pastelaria. A Bu que nunca pode estar longe da dona, era ouvi-la a uivar. Até que as senhoras da pastelaria me disseram: “Deixe entrar a bichinha. A menina há-de ter o céu... ficar com uma cadelinha que estava abandonada... deixe entrar a bichinha que ela não faz mal nenhum!”. Com esse problema solucionado, virei-me para o poeta e disse-lhe para escolher qualquer coisa para comer: “Nem pensar! Se me vai dar uma moeda não quero comer. Eu não abuso, nem pensar”. Lá o convenci a levar os bolos, na compra de um deram-me o outro. Ainda tive tempo de lhe perguntar se acreditava em Deus porque tinha um enorme terço ao pescoço: Vai-me desculpar mas eu acredito apenas no Homem e no dinheiro que é isso que faz girar o mundo. Isto tenho ao pescoço porque me deram e acho bonito”.  Dei-lhe as moedas que sobraram do troco do pão e dos bolos e só lhe perguntei: “quanto é que gasta por dia em droga?”.  Ao que ele me respondeu: “Nem queira saber, não lhe vou dizer que até tenho vergonha e você vai achar um absurdo”. Ele seguiu pela noite, a agradecer como sempre a bater com a mão no coração, de gratidão. Provavelmente dei-lhe o que ele precisava para completar o que lhe faltava para pagar mais uma dose.


Pensando bem, eu não deveria dar-lhe o dinheiro. Mas ele é tão delicado, tão educado, passa tão mal a viver na rua, é ostomizado mas eu não lhe posso mudar o mundo. Eu não sou nem posso ser o Deus de toda a gente. Mas não nego nada a quem tem fome. E apesar de acharmos que estas pessoas que se drogam, perdem todos os valores, não é verdade. Ele não rouba e está sempre a gabar-se disso e ainda acrescenta: “Aquela magrinha é malcriada, eu sei, mas tem uma coisa muito boa, não vende o corpo. E isso é uma grande coisa”.

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