terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Regressos quase perfeitos: memórias da guerra em Angola

Regressos quase perfeitos vem da adaptação de uma frase do Whitman “uma mentira é um regresso perfeito”. Tal como o pai, cujos títulos de livros são sempre uma citação, este primeiro livro da filha, Maria José Lobo Antunes, que resulta da sua tese de doutoramento, também o é. Três coisas fizeram-me comprar este livro: ter sido escrito por uma Lobo Antunes, ter a chancela de tão grande editora Tinta da China (não há nada que não goste) e a temática da guerra colonial. Quando vi quem era a Maria José Lobo Antunes vi a cara do pai.

Agora falando do livro. Gostei muito, como disse o Joaquim Furtado. Apesar das Guerras do Ultramar serem “nossas” e de a distância temporal não chegar ao meio século, os livros sobre esta temática não são abundantes: “A guerra colonial portuguesa é, hoje, um país estrangeiro”. Habituei-me a ela nas referências biográficas e ficção de António Lobo Antunes e pouco mais li. O meu pai não foi mobilizado para a guerra porque teve a sorte de ter ido à inspecção em 1974. Como a maioria, naquele ano, passou à reserva territorial. As histórias e os relatos da guerra são, por isso, para mim distantes e resumem-se aos livros e séries de televisão. Tendo eu nascido em 1979, o Portugal descrito neste livro é um país muito distante e desconhecido. Este livro procura relatar a memória de alguns militares que a viveram. Chegaremos ao fim a perceber que a memória e o passado destes militares é tão diferente quanto as pessoas que o relatam. Alguns conceitos que são para nós, comuns mortais, desconhecidos, como camaradagem, são neste livro destacados. A camaradagem só pode ser compreendida por quem passou pela guerra (neste caso 26 meses): “Uma pessoa tem irmãos de sangue, nós somos irmãos de alma”. Depois a descrição dos almoços do CART 3313 são tocantes e a gratidão que sentem pelo seu camada alferes médico meliciano, António Lobo Antunes, “somos quem fomos”. Maria José Lobo Antunes tem uma ligação com estes homens de que não se lembra devido à tenra idade em que esteve em Angola. Mas todos eles se lembram muito bem dela. O pai, António Lobo Antunes, tornou-se escritor e a guerra é assunto muito presente na sua obra. Cus de Judas é o livro que mais retrata os mais de dois anos que passou em Angola, assim como, o livro que contém as cartas diárias que escreveu à mulher durante a guerra.

Portugal, naquele tempo era uma sombra do que fora, mas que o salazarismo insistia em que o destino de Portugal se cumprisse “enquanto império colonial , heranças de gerações gloriosas que tinham dado novos mundos ao mundo”, “Portugal do Minho a Timor”. Este era o Portugal que Salazar ambicionava, provavelmente (apenas) no seu imaginário, já que nunca saira de Portugal continental.

A tropa, para a maioria destes homens, que seriam soldados ou praças, homens que fizeram a 4ª classe ou nem isso. Homens cujo mundo era apenas frio, fome, miséria, trabalho e porrada. Eram filhos de “um país pobre e rural, onde a agricultura ocupava mais de um terço da população total”. Um país autoritário, em que a informação era considerada desnecessária e que vivia debaixo de vigilância e censura. O regime defendia o respeito pela autoridade, a valorização da tradição , o nacionalismo e a fé católica”. Os três pilares: Deus, pátria e família. Há muito a menção à palavra respeito. Respeito ou medo pelo professor que era maioritariamente um desumano que batia muito e sem coerência. Um ensino que era marcado unicamente pela coação e repetição e não pela razão. Aprendia-se que “Portugal era muito grande e muito rico”. Durante a ditadura, “a educação era um luxo”. Um país de acentuadas diferenças sociais entre patrões e criados. Um mundo de pais incógnitos e de mães solteiras. Pés descalços. Trabalho quase escravo a troco de (má) comida. Um trabalho duro demais para a tenra idade. Ninguém parece guardar saudades desse tempo em que se valorizava a humildade, a simplicidade, a pobreza, a ignorância e os perigos da ambição. Este foi o segredo do regime: “um lugar para cada um e cada um no seu lugar”.

O liceu estava reservado às elites. A aposta do regime era nas escolas comerciais e industriais. O magistério era o 5º ano mais dois. Aos 18 anos já se era professor primário.  Terminado o 7º ano fazia-se a admissão à universidade: “Os filhos dos ricos iam para a universidade para ser doutores e nós íamos para as escolas comerciais”. Só com inscrição ou frequência na universidade se ia para oficial miliciano.

Entre os ex-militares as opiniões dividem-se entre aqueles que achavam justa a guerra “acreditavam que era necessário defender aquilo que era nosso”,  aqueles que se voltassem atrás nunca iriam à tropa e aqueles que mesmo antes de irem já eram contra: “Nunca quis ir para a guerra. Abominava aquilo tudo”.  A maioria dos que foram para o Ultramar não tinham qualquer noção da rigidez do regime nem da opressão. Viviam num mundo demasiado fechado e escondido, longe das grandes cidades sem qualquer noção da realidade. A maioria considerou que a ida para a tropa foi um “abrir de olhos”, que lhes deu mundo e “alargamento de horizontes (...)  tudo era surpresa e novidade”.Oportunidades. Descoberta  da dimensão e variedade da paisagem. Os mais abastados perceberam que o mundo em que viviam era um privilégio. O grau de instrução era o elemento diferenciador: menos que o 5º ano eram praças, com o 5º ano eram furriéis milicianos e 7º ano completo eram oficiais.

A maioria desconhecia a realidade da guerra no Ultramar. Só começou a saber-se através de vizinhos, familiares e amigos recrutados para o serviço militar. O regime não esmoreceu e manteve a determinação de “manter a unidade de um país disperso pelo mundo”. Entre 1961 e 1973 foram mobilizados para a guerra cerca de 105 mil homens. Do que se passou na guerra ficou no segredo dos deuses e o pacto de silêncio entre os camaradas. A excepção era feita a acontecimentos cómicos e banais.

Os negros ou pretos eram vistos como uma raça menor, com “mentalidade de primitivos”.  O trabalho forçado dos negros só foi abolido quando se iniciou o conflito em Angola. Não existia uma harmonia igualitária entre brancos e negros: “a injustiça de um regime onde a cor de pele definia o lugar de uma pessoa”. Ocupavam lugares distintos. Os negros eram subalternos, obedientes e silenciosos. Os brancos referiam como desculpa a irresponsabilidade, preguiça e superstição dos negros. Enfatizavam a aversão dos negros ao trabalho. Não existia, também, igualdade entre homem branco e mulher negra. Usavam-nas, apenas. Referem, entre risos, a possibilidade dos filhos que deixaram para trás.

Todos falam, sem excepção do medo e do inimigo sem cara. O isolamento. A demora do passar do tempo. As saudades da família. Sensação de eternidade. O rebentamento de minas. Os ataques. A utilização de napalm (negada pelas Forças Armadas). O secretismo. Falam dos valores militares como a camaradagem, a coragem e o heroísmo. E das fraquezas que incluem a cobardia. Fizeram muita coisa, socialmente boa: vacinação conta a cólera e ensinar as crianças a ler e a escrever. Alfabetizaram muita gente. Os jogos de cartas. Os jogos de futebol. A caça. A torturante agonia da espera. O absurdo da morte. Os suicídios. Muito bem resumido por Lobo Antunes nas cartas enviadas à sua mulher, publicadas em livro: “Eu vou-me afundando numa apatia total. Nada faço, nada me apetece (...) chego a pensar que sairei daqui para um hospital psiquiátrico – como doente (...) o resto são mosquitos, chuvas, trovões, os mesmos horizontes que não mudam, que não mudam... Como acabará isto?”.

Estes ex-militares não relatam na primeira pessoa episódios grotescos. Mas percebe-se o pacto de silêncio, como a frase: “o que aconteceu lá, fica lá”.  Sobram suspeitas de violência e do horror da guerra. O pronunciável são as histórias aceitáveis, tudo o resto reduz-se a silêncio. São abordados os traumas da guerra, o stress pós-traumático, os mutilados.

Passados 26 meses, regressaram. Para trás ficaram os camaradas que não voltaram a ver durante muitos anos, retomando apenas os encontros anuais muito depois. Voltaram diferentes. Tinham vontade de normalidade. A guerra ficou-lhes para sempre.


Um excelente livro para quem, como eu, não nasceu nem viveu no salazarismo nem na ditadura. Aprende-se muito. Principalmente a não ter saudades e a não se querer voltar atrás. E depois, dá um certo orgulho, que passado meio século, as transformações são gritantes. E agora, puxando a brasa à minha sardinha, para dizer que as teses de doutoramento servem para alguma coisa, afinal. Como disse Clara Ferreira Alves na apresentação do seu Pai Nosso: “não podemos esquecer os anos de guerra colonial como se não tivesse existido”.




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