terça-feira, 27 de setembro de 2016

Caetano Veloso e António Cicero à conversa com Inês Pedrosa no FIC

Cascais, nove de Setembro de dois mil e dezasseis

À horinha, ao contrário de muitos acontecimentos em Portugal, os convidados estão todos na sala que está cheia. As três primeiras filas estão reservadas a convidados: políticos, escritores, editores, produtores, amigos, intelectuais: Ministro da Cultura, Presidente da Câmara de Cascais, Paula Lavigne, Lucinha Araújo (mãe de Cazuza), Teresa Cristina, Inês Mota, Jorge Reis Sá, Marcelo Pies, Pedro Corrêa do Lago, Pilar Homem de Mel, David Ferreira (filho de David Mourão-Ferreira), Leonor Xavier, Maria João Lopo de Carvalho (e até Lili Caneças que não se senta nos lugares da frente). Estes e o resto do público são tudo gente que lê livros. Há quem fique em pé.

Inês Pedrosa conhece bem estes dois pensadores do Brasil. Para além de excelente moderadora, é uma contadora de boas histórias e percebe-se a intimidade que tem com eles. Nota-se o quão bem se preparou para esta conversa e confessa ter lido novamente “Verdade Tropical” para esta ocasião. António Cícero é um filósofo de profissão, poeta e escritor de letras de música (para os conservadores que consideram letra de música menor do que poema). Caetano Veloso procurou ser filósofo, estudou Filosofia mas abandonou a carreira cedo. Quis ser pintor e cineasta.  Fez um filme, dizem que muito interessante, chamado “Cinema falado. É cantor, compositor, escritor (“Verdade Tropical” e muitas cronicas escritas ao longo dos anos), pai e avô. Caetano e Cícero têm uma amizade longuíssima, já descrita na sua autobiografia e uma relação pessoal e intelectual muito forte.  Estiveram juntos em 2009, na Casa fernando Pessoa, para falarem na influência da “Mensagem”. Inês Pedrosa contou que Fernando Pessoa se candidatou a um lugar de bibliotecário na Câmara de Cascais, na Biblioteca Castro Guimarães e foi rejeitado. Ficou em segundo lugar porque em primeiro ficou um senhor de Cascais. Esta história arrancou gargalhadas do público presente.

Inês Pedrosa falou também no acaso ou coincidência de há precisamente 10 anos atrás, neste dia, o Prémio Camões ter sido entregue na Fundação Biblioteca Nacional pelo então Ministro da Cultura brasileiro, Gilberto Gil à escritora portuguesa Agustina Bessa Luís.

Inês Pedrosa faz uma provocação: “Para que é que Caetano fala tanto se ele o que sabe é cantar?. Fala de “Verdade Tropical” essa autobiografia de Caetano Veloso que é muito mais do que uma biografia mas uma reflexão sobre o Brasil, relação da música com as outras artes, e o estado da política brasileira na época. É também uma reflexão profunda sobre o que é o Brasil, os caminhos que o Brasil seguiu. Um livro fascinante com o qual se aprende muito. Nas últimas férias li-o pela quarta vez. É um livro a que sempre volto. É um livro obrigatório para quem quer conhecer a história da música brasileira. Para além disso, faz observações muito pertinestes e elogiosas sobre António Cícero, que Caetano considera um dos maiores filósofos brasileiros. Falou-se também sobre Mário de Andrade e Oswald de Andrade.

Quem também não foi esquecido foi Agostinho da Silva. Caetano contou que o Professor foi para a Universidade da Bahia para criar o instituto de estudos afro-orientais. E que o Reitor criou a cadeira de Filosofia do teatro para que o Professor para leccionar na Escola de Teatro. Caetano referiu, também, que o Professor tinha uma amor profundo por Portugal e pelos portugueses (“o povo que criou o globo terrestre”). E que o Brasil é uma espécie de aberração. Um país de dimensões continentais, na América, no hemisfério sul. E que Portugal é um país pequenino territorialmente e que aprendeu a tornar-se pequenino politicamente ao longo dos séculos. E Caetano afirmou que o Professor Agostinho ambicionado ambicionava resolver essa charada. Descreveu também o encontro com o Professor Agostinho em Lisboa. Caetano estava exilado em Londres e veio fazer uma apresentação a Lisboa: “Roberto Pinho que era meu amigo e tinha sido discípulo directo do Professor Agostinho falava-me muito dele”. Marcaram no hall do hotel e conversaram, não por muito tempo. “Eu fiquei um pouco intimidado. Não tinha muito o que dizer. Ouvi algumas coisas, falei muito poucas coisas e me senti meio vago. Ele se despediu, alegre, e se foi. E depois escreveu para Roberto Pinho, e digo isso sem falsa modéstia porque aconteceu assim, mais para que se saiba sobre o Professor Agostinho do que sobre mim. E escreveu simplesmente: Gostei do seu amigo. Pensa bem, fala bem. Age bem. Eu não tinha feito nada. Esta é toda a minha história sobre o Sebastianismo”.

Falou-se também de Eduardo Lourenço (“Do Brasil: fascínio e miragem) e Leonor Xavier (“Portugueses do Brasil e brasileiros de Portugal). Outra das histórias contadas `foi sobre quando os escritores portugueses são convidados para palestras em universidades americanas e estão 200 alunos americanos na plateia: “Quando estamos com o ego a começar a subir perguntamos qual a razão de quererem aprender língua e literatura” e respondem-nos: “Queremos ir ao Brasil porque gostamos de música brasileira.

José Bonifácio foi o nome que Caetano quis falar desde o início. Português, estudou na Universidade Coimbra Direito e Filosofia. Viveu em Portugal e teve uma vida intelectual de alto nível na Europa do séc. XIX. Ficou conhecido como mineralogista e descobriu o elemento químico lítio. É conhecido como “Patriarca da Independência” pois foi um importante ministro com muitos poderes de D. Pedro I, Imperador do Brasil (D. Pedro IV, em Portugal). Fez um plano para o Brasil que concebeu à luz dos seus conhecimentos mineralogistas, “amálgama”. A proposta dele era a seguinte: (i) abolir a escravatura (acabar com o horror da escravidão) e (ii) passar a considerar aqueles que haviam sido brutalizados pela escravidão, os negros, como irmãos e co-cidadãos e o mesmo com os índios. Seria o maior etnocídio se o plano de José Bonifácio tivesse sido colocado em prática. Era seu objectivo criar uma nação nova: amálgama racial e cultural. E criação de uma nova raça: mestiços. Um verdadeiro visionário no séc XIX com a ideia de multiculturalismo.

Inês Pedrosa falou de uma das suas noites mais comoventes da sua vida, no Porto, onde foi assistir a um espectáculo do Caetano. Nessa noite um dos filhos de Caetano foi encontrar-se com ele e Caetano, no fim do espectáculo, quis mostrar a cidade do Porto ao filho. Contou que andaram de carro pelas ruas e pontes do Porto e que Caetano começou a explicar o liberalismo, os ingleses, o vinho e que parecia saber mais e melhor tudo do que ela. Estava a explicar como se a cidade fosse dele e que lhe pertencesse. E quando Caetano foi convidado a comentar disse simplesmente: “Era o Zeca, o meu segundo filho, primeiro filho dela (apontando para Paula Lavigne na plateia). Quis mostrar-lhe o Porto. O que eu sabia eu queria dizer a  ele. Ele é o Zeca...”.

No final, ainda deu tempo para falar da situação política do Brasil. António Cícero falou do poder judiciário do Brasil. Da impossibilidade que existia há uns anos de alguém poderoso ser preso e que as coisas estão a mudar. Que isso é um enorme progresso. Pessoas importantes que são julgadas e presas. Caetano, desta vez, não pronunciou nenhum “FORA TEMER”. Mas referiu que se lhe tivessem dito há uns anos atrás que o Fernando Henrique Cardoso ia ser o primeiro Presidente democrático do Brasil e que a seguir ia ser Lula: “Eu iria dizer que era um sonho”. E foi possível”.
Ainda houve tempo para a piada sobre o que é que a água de Santo Amaro tinha por ser onde Caetano e Bethânia nasceram. Caetano, respondeu, rindo que “Santo Amaro tem uma das água mais poluídas por chumbo do mundo”.

Inês Pedrosa queria que Caetano lesse qualquer coisa mas ele disse “Eu não sei ler”. E Cícero terminou com o seu “Guardar”.









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