sexta-feira, 24 de março de 2017

Mísia e as palavras – Poetas e cantautores

Mísia elegantemente vestida com um vestido preto. Sobe ao palco e senta-se numa mesa. Cabelo impecavelmente penteado. Os anos parecem não passar por ela. Começa por agradecer à directora do Museu do Fado pelo convite para esta residência artística. Apelida-a de conversas com o público, com pessoas que não a conheciam ou para pessoas que acompanham o trabalho mas que querem conhecê-la melhor. Enaltece a plateia, o público, como lhe chama. Esse público, e essa interacção é que fazem que cada concerto seja diferente. Realça que nesta conversa não falará sobre a história nem sobre a evolução do fado. Considera que há gente muito mais preparada, muitos musicólogos e muitas fadistas, como por exemplo, a Aldina Duarte que dominam o assunto. Neste fim de tarde foi convidada  “para falar de mim” o que é “estranho e constrangedor” nas palavras da própria.

Nestes 25 anos de carreira profissional considera que o corpo principal do seu trabalho foi a colaboração e interacção directa com os escritores, poetas e compositores. Considera um privilégio ter poemas que foram e são escritos especialmente para a sua voz. Contou a experiência de, antes de cantar profissionalmente, ter tido 4 anos de aprendizagem numa casa de fado onde cantava a Beatriz da Conceição – “a melhor professora que podia ter, cantava com uma verticalidade, aquelas costas eram um fio de azeite... foi um grande exemplo para mim, como ela tratava as letras, uma pessoa que não teve grande instrução académica, tinha uma dicção inteligente, não fazia voltinhas, não se tratava de fazer circo, nem performance, tratava-se de pôr cá fora o que estava a sentir”.

Quando começou em 1991 o fado não estava na moda, não tinha grande prestígio cultural nem comercial e não vendia. A excepção, segundo Mísia, era a grande Amália – “a maior fadista de todos os tempos, para mim”. Concordo absolutamente que Amália foi e é a maior de todas. Não só fadista mas também intérprete e poetisa. Mas não nos podemos esquecer como Amália após a revolução de Abril foi (quase) esquecida e ostracizada. Honra seja feita a Mário Soares que a homenageou nos finais dos anos 80 nos apoteóticos concertos do Coliseu. Isso devia ter sido um grande bálsamo para ela que como dizia “nasceu para ser triste” e que no fado Grito de despedida escreveu: “...que ao fim do além da vida/ do que já fui tenho sede/ sou sombra triste/ encostada a uma parede...”.  O fado, em geral, estava ainda com a marca do estigma do Estado Novo. No início dos anos 90, quando Mísia dizia que queria cantar fado com aquela imagem cosmopolita – de mini-saia, argolas enorme e cabelo à Beatriz Costa – as pessoas diziam-lhe para cantar outra coisa. Mas ela foi perseverante e teimosa e achou que o segredo era ter grandes nomes da literatura portuguesa a escreverem para o fado. Sem falsas modésticas (porque a modéstia fica para quem dela precisa) referiu que foi a primeira pessoa que convidou Jorge Palma, Sérgio Godinho, Vitorino , entre outros, a escreverem para fado. Aos grandes poetas, escritores e compositores deve o repertório que tem. Tem como privilégio e uma das maiores satisfações pessoais ter um poema, o único poema que se conhece, de Agustina Bessa Luís – “essa grande escritora do norte” [e que tão mal tem sido tratada pela sua editora que resolveu tirar os seus livros de catálogo e rescindir o contrato por falta de vendas. É no que dá quando a arte deixa de ser um gosto e um prazer e passa a ser números. O capitalismo no seu melhor. Agustina, pelo que foi, pelo que é, não merecia um tratamento assim. Mas este país tem uma memória tão curta]. Mísia, antes de cantar o poema de Agustina, desculpa-se pela “bruta laringite”. Disse que não seria perfeito mas que seria muito sentido. Que beleza tamanha. Mísia a cantar é de uma verticalidade impressionante, como a “mestre” Beatriz da Conceição. Recta, hirta, com a cabeça a apontar para o alto, olhos fechados, parece (até) mais alta. Tem uma voz segura, imponente mesmo estando doente. Se não dissesse que estava com uma laringite eu não adivinharia.

Voltou, uma vez mais, a enaltecer a importância e a generosidade dos “seus” poetas, escritores e compositores em usar as palavras deles. Falou de um episódio, numa tournée nos EUA, quando estava a dar uma série de entrevistas e era difícil explicar-lhes a importância dos grandes escreverem para o fado: “Era como se o Hemingway escrevesse para country music”. Nomeou, individualmente, cada autor que para ela escreveu: Agustina, Lídia Jorge, Hélia Correia, José Luís Peixoto, Vasco Graça Moura, Paulo José Miranda, Mário Cláudio e Saramago (acho que se esqueceu do Tiago Torres da Silva). Explicou que cantou António Lobo Antunes mas que este não escreveu especificamente para ela, mas para Vitorino. Os poemas que não entraram no trabalho de Vitorino foram cantados por Mísia. É esta a verdade da história. “Saramago é uma pessoa à parte. Gostava muito dele como pessoa e como escritor. Ia começar a trabalhar com ele num projecto muito muito importante, que quero ainda algum dia fazer. Na altura em que nos deixou e o projecto ficou orfão”. Todas essas pessoas não tiveram medo de emprestar as suas palavras para uma fadista, como a própria de autointitula, outsider, alternativa, na margem. Vasco Graça Moura fez 90% das letras de um disco que era inspirado nas músicas de Carlos Paredes. Nos anos em que esteve a viver em Barcelona, ouvia Amália e Carlos Paredes. “Não deixava qualquer dúvida que eu era mesmo daqui. Mesmo sendo filha de mãe espanhola. Tinha mesmo que voltar”. Vasco Graça Moura tinha uma grande intuição, erudição, ele sabia música, sabia muito bem onde deviam estar as tónicas das palavras.

Outra das poetisas a quem recorreu foi Amália Rodrigues, um caso raro de muitos talentos reunidos na mesma pessoa. Uma inteligência a cantar. Não apenas a voz miraculada. “A voz é uma coisa que se nasce com ela. O que se faz com ela é que é importante. Imaginem a Celine Dion” – disse entre risos.  Referiu também a Amélia Muge, tendo sido a primeira pessoa a pedir-lhe uma música. E a partir daí tornou-se uma figura incontornável do fado. Não se esqueceu do episódio de o Vitorino aceitar escrever “para uma louca” após ter saído da EMI-Valentim de Carvalho. O facto de ter tido sempre grandes autores associados à sua música fez muitas vezes pessoas quererem aprender português e conhecer os poetas que ela canta. “Metade Almodovar e metade Manuel de Oliveira”. A participação de todos estes autores no repertório de Mísia elevou o nível do seu trabalho.

Cantou Ciúmes de um coração operário um poema que Vitorino escreveu em 1992 que era o verdadeiro “novo fado”. E depois o poema de Fernando Pessoa Autopsicografia com o fado Meia-noite. Apresentou os músicos “que tornam possível que este momento esteja a acontecer”: André Dias na guitarra portuguesa (um músico da nova geração que “tem as pestanas mais bonitas que já vi”), Didi na viola e Luís Cunha no violino. Na primeira fila estava Mário Pacheco e Sandra Correia. Alguns amigos que vêm de fora ainda os leva ao Clube do Fado

Perguntou à plateia as horas e às 7:45, au point, senta-se sempre. Arrancou mais gargalhadas. “Estava preocupada por não ter aqui um relógio e ia passar a hora de eu me sentar”. No início quando actuava, cantava e ia embora e perguntava aos amigos “Notou-se muito que sou filha de mãe espanhola?”. Somente pelo pânico de acharem que não era uma verdadeira fadista. Hoje, não se preocupa mais, porque quem não a acha uma verdadeira fadista não importa o que ela faça.

O melhor deixa-se para o fim. Apresentou a convidada como sendo do seu coração. Convidada especial, também, do Artur (um dos gatos de Mísia). Já colaboraram muito. Já escreveu um poema para um dos discos da Mísia. Será a convidada no espectáculo de Mísia no CCB no dia 19 de Maio. “É com imenso carinho, ternura e admiração que eu peço à Adriana Calcanhotto para se juntar a nós”. Adriana que assistia na primeira fila, subiu ao palco casual chic de óculos, com um casacão de lã cinzento, calças de ganga, sapatos oxford camel e camisa aos quadrados de flanela cor de vinho e branco. Sentou-se. A viola não parecia ser a dela. Ou pelo menos, não é a que tem usado nos últimos concertos ou em Coimbra. Usou a piada do costume “passamos metade do tempo a afinar o instrumento e a outra metade a tocar com ele desafinado”. Usou o iphone para o afinar. Enquanto afinava foi explicando que não tem tocado e que adorou o convite para tocar. Disse que aprendeu “horrores com esta mulher” sobre fado e sobre a possibilidade de pegar num fado tradicional e colocar outro poema. Falou de ter ficado escandalizada quando há uns tempos atrás lhe disseram que quando Amália cantou Camões foi um escândalo. Mas considera que isso faz sentido, quando ainda há quem fique escandalizado pelo Bob Dylan ter ganho o Nobel da Literatura. “Apesar de a poesia existir antes da escrita”, citando o exemplo da Ilíada de Homero que seria para ser transmitida oralmente. Depois, falou do poeta com o qual "tem mais intimidade, não o que gosta mais" - Mário de Sá-Carneiro. E cantou a lindíssima Senhora dos olhos lindos (que para mim é um fado). 

Quando Adriana se juntou a Mísia na mesa foi recebida com um “Agora é um momento muito importante”: um prato de bolinhos de bacalhau. E Adriana às gargalhadas juntamente com o público. A Adriana em todos os concertos que sabe que a Mísia está ou quando lhe perguntam como conheceu a Mísia ela conta esta história. “Conta você. Eu gosto quando ela conta me imitando”. A Mísia tinha um namorado que era “um erro de casting” e por causa dele conheceu a Adriana. Quando chegou a Portugal fez o que todos os brasileiros fazem quando chegam ao hotel: ligar a tv ("fazia", corrigiu imediatamente Adriana, pretérito imperfeito, não mais). E viu um grande close up da Mísia a dizer "coisas insensatas". Ficou impressionadíssima com aquilo. E aí perguntou ao “erro de casting” quem era aquela cantora. E uma das características do erro de casting é que ele nunca assumia nada e disse apenas “Ah, eu conheço” (não disse que era namorado da Mísia). E aí combinaram ir ao Clube de Fado e a Mísia cantou para a Adriana. Como não se lembra nunca de almoçar ou jantar e como não tinha jantado pediu dois bolinhos de bacalhau porque era uma coisa fácil de comer. Aí comeu um bolinho de bacalhau e foi cantar. Quando regressou à mesa comeu o outro e a Adriana disse: “O segundo ela mereceu”. Esta conversa mostrou o humor e a cumplicidade destas duas amigas que são também grandes artistas mas que aqui estavam como em casa. “Quando ela canta me faz chorar e quando não está cantando faz-me chorar de rir”.

Mísia, ao contrário do que aparenta não é distante nem altiva. Tem um humor fenomenal. Tem em comum com  Adriana o humor, a paixão pelos animais e o gosto pela polenta frita de Porto Alegre. Adriana referiu que grandes poetas partilham deste gosto pelos animais, por ex, Alexandre O’Neill, “poeta fetiche de Amalia”- como lhe chamou, que escreveu sobre a pobreza da condição humana a partir dos animais. MÍísia pediu a Adriana para cantar outro tema, do mesmo Mário de Sá-Carneiro. Falou do restaurante Petit Riche que frequentava em Paris, do qual era assíduo. Adriana aproveitou para falar que Mário de Sá-Carneiro estudou Direito em Coimbra, obrigado pelo pai. Nesses 3 meses ele viveu num quarto (que deveria ser uma pensão e não um hotel). Adriana conta que quando foi convidada para passar o semestre em Coimbra pediu: E se eu ficasse no quarto do Mário de Sá-Carneiro?”. E que toda a gente a desaconselhou vivamente e a demoveram daquela ideia. “Podemos levá-la lá para ver o quarto mas ficar lá não pode”. E ela continuava “Mas porque não pode?”. “Porque aquele hotel paga-se por hora!”. Terminou com chave de ouro com O outro.

Soube a tão pouco. Não se percebeu a passagem do tempo. A plateia estava cheia. E atrás de mim estava o temido Nuno Pacheco, crítico de música do Público. Para quem for de Lisboa estas conversas são imperdíveis. Vale por tudo. Vale pela inteligência, pelo humor, pela conversa, pelas histórias por contar da persona Mísia. A diva, essa, voltaremos em breve a protagonizar Geosefine no TAGV e a interpretar os seus poetas no palco do CCB.

Copyright: Mariola Landowska

Copyright: Mariola Landowska

 P.S. Eu sei que as fotos não são o melhor mas foram as únicas que encontrei. Não tirei fotografias. Acho que a memória deve guardar tudo para sempre. A Adriana costuma dizer que "as pessoas fotografam mais quando gostam mais da música". Eu não, lamento, não consigo fazer (bem) duas coisas ao mesmo tempo. Perderia o momento único da interpretação e a fotografia ficaria, com certeza, péssima. 

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