terça-feira, 4 de março de 2014

Pra tudo se acabar na quarta-feira por Adriana Calcanhotto

No dia em que o "Público" comemora o 24º aniversário, a Adriana Calcanhotto foi convidada para ser a directora nesta edição especial. Aqui segue o editorial escrito pela Adriana, desta vez não é curto como a vida, mas é muito bem escrito e a tocar em assuntos que a maioria não se lembraria:

"Porque gosto de viver perigosamente foi a razão para aceitar o convite do PÚBLICO para a edição de hoje, seu aniversário de 24 anos.
Aceitei na hora, imagina, que sonho, falar da língua portuguesa, da palavra lusitana, provocar o PÚBLICO a respeito do acordo ortográfico, vigente no Brasil desde 2009 e não adotado pelo periódico com furor argumentativo. Falar dos dogmas modernos para os poetas antigos; abrir espaço para as especulações atuais do tipo seria Mário de Sá-Carneiro, “o esfinge gorda de delicadas mãos”, transgênero? O grande poeta brasileiro Manuel Bandeira afirmava, quando inquirido sobre os heterônimos pessoanos, que neles via claramente o poeta tentando sair de seu drama. Seria mesmo o fato, reza a lenda, de que ele tinha um pênis exageradamente pequenino e esse era o seu facetador, que o empurrava para ser outro homem qualquer que não ele mesmo? Pois se isso é um drama real para um homem qualquer, imaginemos para ele, que era tantos, ou era ele tantos por isso mesmo? Poderia me estender sobre a correspondência do mesmo Pessoa com Ofélia, onde ela várias vezes o trata como “preto”, “meu preto”, “meu pretinho”, afinal, sou a diretora hoje, tenho carta branca. Começava a separar livros quando recebo um email oficial do PÚBLICO, agradecendo-me por aceitar o convite para a edição especial de 5 de março de 2014, sobre o Brasil. Sobre o Brasil? Como assim sobre o Brasil? Eu não entendo nada de Brasil, aliás, entendo cada dia menos, o Brasil não é para amadores, e agora?
O Brasil não é só diversidade, natural, cultural e racial, mas também temporal. O trabalho infantil escravo, o sistema prisional arcaico, com cadeias hiperlotadas sobre as quais o próprio ministro da Justiça admite serem “o inferno”, convivem com jurisprudências incontornáveis diante da sociedade e dos novos arranjos familiares. Fizemos progressos, tivemos um parlamentar cumprindo pena de reclusão por corrupção mantendo o cargo público, no exercício de seu mandato de deputado com a concordância da câmara, não temos mais. Vimos mudando. O racismo é crime, temos a lei Maria da Penha, que protege as mulheres da machista violência doméstica, temos a lei da Ficha Limpa, que deveria impedir que parlamentares com pendências na Justiça candidatem-se aos pleitos, menos gente passa fome, o beijo gay tem classificação livre na TV. Mas como viajo muito, acho que devo ter perdido algum evento importantíssimo porque, de uns tempos para cá, desde as últimas manifestações de rua, não consigo saber mais quem é a polícia, quem é a milícia, quem é o bandido, o mercenário, o mascarado, a caboclada maoísta, os vândalos que apedrejam à noite o banco onde trabalham de dia, o político cínico, o velho coronel, o coronelzinho de ocasião. Não nego que sou distraída, mas está difícil de acompanhar. A quem será que interessa incitar a violência nas manifestações legítimas municiando garotos miseráveis com máscaras de gás e rojões? De onde viria isso? Quem é o vilão, quem é a imprensa, quem é o sistema? 
O passaporte mais visado no mundo para ser falsificado é o brasileiro; claro, podemos ter qualquer raça, cor, a mistura mais improvável de raças, podemos ter qualquer nome, ter um sobrenome sírio-libanês, por exemplo, podemos ser tudo, temos a vocação para a originalidade como Caetano Veloso sempre diz, e uma vocaçãozinha para a incompetência bastante pronunciada. Podemos ascender na escala social, não somos aprisionados por castas, um menino pobre e analfabeto pode virar uma estrela do futebol internacional, não é obrigado a seguir a profissão do pai ou do avô, pode escolher o que quer, fazer o que gosta, um metalúrgico pode ser presidente, tudo muito diferente da malha social britânica, para dar um exemplo, onde saltos sociais não ocorrem. Isso é das coisas mais fascinantes do novo mundo, especialmente no Brasil. A gente inventa. Enquanto isso, a causa indígena é completamente desprestigiada pelo governo, os assentamentos dos sem-terra diminuíram, seguimos desmatando a mata amazônica e crescimento na economia não há.
No momento, a população vem mostrando descontentamento nas ruas, o que não é mau sinal, já que educação, saúde, transporte e ética andam muito castigados e não é comum irmos às ruas por qualquer coisinha. A revolta com os milhões gastos em estádios para a Copa do Mundo mais o aumento das passagens de ônibus e a carga tributária pesada sem serviços públicos de qualidade levou-nos às ruas, mas um cinegrafista foi morto por um garoto pago não se sabe bem por quem, para “fazer barulho”, e o rojão atingiu a cabeça de um cinegrafista que cobria a manifestação. O ministro dos Esportes do Brasil diz aqui em entrevista chapa branca que “não há por que se preocupar com manifestações” durante a Copa do Mundo, declaração, convenhamos, extremamente preocupante.
Um país inapreensível em qualquer tentativa de explicação, a democracia racial não é bem o que parece, nossa diplomacia visivelmente fascinada por ditaduras de diferentes países do mundo envergonha, assim como os 33.000.000 de analfabetos funcionais, além daqueles que se orgulham de nunca terem lido um livro alegando que não precisam de livros para vencer na vida.
Assim é, queridíssimos patrícios, que a edição de hoje do PÚBLICO está invadida pelo Brasil com seus inacreditáveis contrastes, belezas, contradições e maravilhas, impregnados da profunda e maior herança portuguesa depois da língua, a mestiçagem. Em Cabo Verde dizem-se eles inchados de orgulho “somos mestiços puros”. Herança portuguesa. O poeta brasileiro Antonio Cicero replica com uma gargalhada aberta, “já nós, que somos mestiços in-puros...”. Ainda na seara dos poetas cito aqui um trecho da extraordinária letra de Vinicius de Moraes para a melodia de Tom Jobim:
“A felicidade do pobre parece/ A grande ilusão do carnaval/ A gente trabalha o ano inteiro/ Por um momento de sonho/ Pra fazer a fantasia/ De rei ou de pirata ou jardineira/ Pra tudo se acabar na quarta-feira.”
Terminou o carnaval, hoje é a quarta-feira de cinzas. Costuma-se dizer que é ao meio-dia da quarta-feira de cinzas que começa o ano no país, antes disso a nação não consegue pensar em outra coisa. Então, neste primeiro dia de 2014 no Brasil, país que é essa auto-invenção permanente, neste primeiro dia do Ano Grande do Brasil no PÚBLICO, vamos ao “gigante pela própria natureza”. Muito bem-vindos!"















Todas as fotos pertencem ao "Público"


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