sábado, 10 de dezembro de 2016

Deus-dará de Alexandra Lucas Coelho

Este livro é uma exaltação sobre uma cidade. São Sebastião do Rio de Janeiro. A “melhor cidade da Via Láctea”. Sete dias nesta cidade, na semana do carnaval. Este livro faz-nos ter muita vontade de a conhecer. Essa cidade tão tudo: exagerada, diferente, insegura, tão cheia de contrastes, cheiros e cores. Uma cidade que exalta a força da natureza e a forma inatingível dessa beleza que não foi feita pelo Homem. Como os livros de Jorge Amado que nos mostraram a Baía, este mostra-nos o Rio real. Nu e cru. Como diz a personagem portuguesa, Inês: “Incrível, é como chegar a Nova Iorque (...) Nunca aqui estive, mas estive. Porque a gente cresce com isto, estas imagens”.

O livro tem exactamente 551 páginas e é viciante. Não sei como o classificar. Já que as pessoas gostam tanto de dar um nome às coisas: é ficção, mas também é memória e ensaio e deve ter muito de autobiográfico. O que sei (bem) é o trabalho de pesquisa contido nele. É um cruzamento de histórias dos sete personagens principais no presente (não necessariamente por ordem cronológica  nem no mesmo espaço temporal) com o passado da descoberta do Novo Mundo, com a independência e respectiva abolição da escravatura, com o Brasil presente, com a escravatura mascarada.

Gabriel Rocha “pirata crioulo”, tem uma pala no olho esquerdo. “O olho se foi num estilhaço, briga de facções carioca”s. É o mais cortejado sociólogo do IFCS, bastião da Universidade pública. Tem um filho adolescente de 14 anos, viciado em laptop, celular e playstation.

Judite Souza Farah, 1,80 m, um arraso, irmã de Karim e Zaca, faz parte da elite carioca Não conduz. Está prestes a ser sócia do maior escritório de advogados do Rio de Janeiro. Ficou com Gabriel que a deixou em poucos dias. Casar-se-á com o rico Rosso de quem ficará viúva. Largará a advocacia.

Zaca, irmão de Judite. Fez a biografia do maior sambista brasileiro e ficou famoso aos trinta. Descobre-se homossexual.

Lucas 90 kg, 1.97 m. Nasceu em 91,índio arraçado de negro e de branco. Entrou em História na UERJ. Orfão e mudo. Ficou assim depois do trauma de encontrar a mãe pendurada numa árvore e depois de quase ter sido sufocado pelo assassino dela. Trabalha num elevador enjaulado por horas como o da estação 168 em NY  (Columbia Medical Center). Volta a falar graças ao amor de Noé e depois da experiência psicadélica com ayahuasca.

Noé “carapinha black power”, universitária bolsista da favela, finalista de Ciência Política na PUC. Engravida de Lucas.

Tristão nascido em 83. Português, antropólogo e católico. O seu nome vem do navegador Tristão da Cunha. Está nos antípodas do carioca: sem músculo e a perder cabelo antes dos 30.

Inês, portuguesa, sozinha na vida, franja curta, sobrancelhas separadas, boca bem vermelha, pele bem branca. Fuma. Veio de Beirute onde foi deixada pela namorada Yasmine. Tem a cabeça no Líbano. Yasmine saiu de Beirute e foi para a Tasmânia onde abriu uma pousada.

Li o livro em pouquíssimo tempo, apenas 5 dias (antes de dormir). Este texto demorou-me bem mais. Só sei que sou mais rápida a ler do que a escrever. A palavra que me ocorre é epopeia. Talvez um romance épico recheado pela “crueza” da verdade. A verdade é uma coisa difícil de se falar e difícil de se ouvir. Há factos, que talvez soubéssemos, mas que nos foram escondidos ou diminuídos, e quando sabemos deles neste livro temos um grito de revolta. Talvez a interiorização da verdade contida neste livro me choque tanto. Ocorre lembrar-me dos livros de António Lobo Antunes e da guerra colonial tão pouco explorada na nossa literatura. Os africanos que combatemos em África, das barbaridades que lá cometemos e que a culpa, por mais que até a queiramos assumir, não consigo dizer quem tem. Não sei a quem apontar o dedo. É de quem está ao longe a mandar? Quem dava a ordem? Quem tão jovem e ingénuo, tirado do país sem querer, e lá longe num país distante, sob o efeito daquela adrenalina do momento desata a matar, pela catarse de sentir-se muito grande no meio da multidão? Aquilo que António Lobo Antunes exalta sempre da coragem dos homens com quem esteve em África, que são os que menos culpa têm e que tão marcados ficaram.

O narrador, que é um brasileiro, é a voz de Alexandra Lucas Coelho. É um narrador que olha de fora, exterior a cada personagem. Não sei o que os brasileiros acharão mas eu acho que o narrador é bem brasileiro. Alexandra, parece conhecer o Rio como os cariocas que são “bonitos, bacanas, sacanas, dourados, espertos e que não gostam de sinal fechado, nem de dias nublados”. E só alguém com muito mundo, com muita experiência do Brasil, uma quase carioca (que não nasceu no Rio) podia ter escrito um livro destes sem “apanhar dos dois lados”. O lado do colonizador e o lado do colonizado, se é que existe um lado, se é que as coisas se dividem (tão simplesmente) em preto e branco. O lado da culpa ou a total ausência dela. E o melhor de tudo: o que aprendemos com este livro. Uma verdadeira lição histórica. E as referências bibliográficas. Obriga-nos, pelo menos, a pensar. E depois, uma lição literária e musical: Nelson Rodrigues (esse grande cronista que eu já li há algum tempo porque comprei alguns dos seus livros e biografia em São Paulo), Machado de Assis esse mulato órfão de mãe desde criança, que era disléxico, epiléptico, doente dos olhos, casado com uma portuguesa, fundador da ABL e não tinha filhos), Carlos Drummond de Andrade, Caetano...

Este romance mistura muito bem o presente com o passado. Para além de ficção inclui factos históricos. Aprende-se muito com este livro. Os portugueses, que poderiam nem pensar nisso, ou sentirem-se redimidos com o passado histórico, da descrição d’Os Lusíadas’ de Camões que exalta a epopeia portuguesa pelos mares. Um nobre povo, quase à semelhança do povo judeu, o escolhido, põe a descoberto o lado negro do “achamento” do Brasil. Coloca o dedo na ferida e coloca sal em vez de bálsamo. Esta visão fria e crua do nosso passado colonial, de um país colonizador à força, é muito pouco comum quando é uma portuguesa a fazê-lo. Alexandra, é por isso, uma das poucas.  Faz-nos (re)lembrar os índios que nós matámos e os milhões de africanos que tirámos de África e que escravizámos e que estão apagados da maioria dos manuais escolares.  Nós que exaltamos os nossos descobridores e navegadores mundo desconhecido adentro, aprendemos (apenas) que a História de Portugal é só triunfo, ousadia e audácia. E este livro traz, relatos verdadeiros. Eu que sou cientista, que leio muitos ensaios, romances e biografias mas que não leio muito sobre história, fiquei chocada com o que li do Vasco da Gama que está ao lado de Camões nos Jerónimos. Nós que aprendemos desde sempre que a nossa colonização tinha sido a melhor, que nos misturamos, que criamos a miscigenação, que criamos uma nova raça, os mulatos, não foi isso. Pouco nos questionamos que essa mistura foi com toda a certeza feita à força assim como os militares da Guerra Colonial no Ultramar abusavam e violavam nativas (obviamente) sem o seu consentimento. Isso são os factos que ninguém quer falar. Aquilo que ficou morto e enterrado e que ninguém quer trazer à luz do presente com a desculpa que ninguém tem culpa dos erros dos nossos antepassados.

Este romance mostra que há sempre novas possibilidades de se olhar o mundo. As múltiplas possibilidades. O que me surpreende é a base teórica, bibliográfica e factual deste livro. Não se trata de um romance que se limita à voz da imaginação mas aos factos históricos negros e crus. Faz-nos pensar (tanto). Quem sabe redimir dos nossos pecados, tão judaico-cristãos?

Para quem como eu, não conhece o Rio e apenas o imagina, fica ainda com mais vontade. Parece uma cidade imprevisível, caótica, inesperada onde a alegria está (sempre) à espera de acontecer.

E este romance que insinua um apocalipse, e uma das personagens diz “que nunca acontecerá aqui”, mesmo quando tudo parece perdido, quando se elege um Prefeito evangélico que acredita no criacionismo, achamos que tudo está (mesmo) perdido e que não terá solução. Mas é o contrário, esta cidade (Rio) e este país (Brasil), são sobreviventes, reaprendem e renascem sempre reinventando-se. E agora, que escrevo numa altura em que a eleição Trump parece ser o apocalipse temos a esperança que ao contrário da música que diz “anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar”, o mundo não acabe (de vez).


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