quarta-feira, 9 de novembro de 2016

O dia em que o mundo mudou

Estava com medo.  Havia um infinitésimo receio. Mas nunca, nos meus piores pesadelos, imaginei que Trump ganhasse. Não achava essa hipótese possível. Arrogância. Excesso de confiança. Chamem-lhe o que quiserem. Mas o povo americano quis pagar para ver. Mantive quase toda a noite a esperança numa vitória de Hillary Clinton, ou quis acreditar. Tudo por puro medo do detestável, arrogante, malcriado, imprevisível e perigoso Donald Trump. Mas a realidade não quis nada comigo, e pouco passava das 4, já a desgraça se anunciava. Apenas os estados ditos “letrados” da costa leste e oeste, onde a América é uma excepção, ex. como Califórnia, NY, Washington D.C. ou Massachussets, foram ganhos. E perdeu inexplicavelmente na Florida, na Carolina do Norte, na Pensilvânia e em estados há muito democratas como Michigan ou Wisconsin.

O dia da queda do muro de Berlim. O dia escrito igual ao que os americanos usam para o 11 de Setembro (9/11, o mês seguido do dia) igual ao que usamos em Portugal (9/11, o dia seguido do mês).

Hoje, para quem não conhece a realidade americana, ficou a conhecer-se a verdadeira América. Os EUA não são NYC nem Boston. A América na sua maioria é conservadora, racista, que até à metade do século passado distinguia as pessoas com base na sua cor de pele. O país que não permitia a Rosa Parks sentar-se no autocarro. O país do Ku Klux Klan. O país que permitiu a imortalização das células HeLa retiradas, sem autorização, sem consentimento prévio, as células de uma neoplasia cervical de uma mulher negra chamada Henrietta Lacks.

Muitos dizem que a América se revoltou. Que foi um voto de protesto. Que não foi Trump que ganhou mas Hillary que perdeu. Mas eu acho que é muito pior do que isso. O resultado destas eleições são o fruto de gente desinteressada que acha que a política tem uma varinha mágica que lhes resolva a vida. Trump disse coisas tão absurdas como: “vamos acabar com a guerra na Síria”, “Vamos irradicar o ISIS”, “Vamos expulsar os imigrantes”,  “não vamos permitir a entrada de muçulmanos”, “vamos construir um muro na fronteira com o México”, “Vamos tornar a América grande outra vez”.... E estes eleitores acreditaram que ele é o salvador. E quem são estas pessoas que votaram Trump? Não me venham dizer que são apenas red necks, a classe média caucasiana, o comum trabalhador que se sente ameaçado pelos imigrantes ilegais que ganham menos e trabalham mais.  O voto branco pobre. O voto menos letrado. Não é só. São também os pobres de espírito. Os frutos do séc XXI que vivem nas redes sociais e só lêem frases feitas com 150 caracteres e ouvem (apenas) sound bytes. Os filhos de uma segunda geração de imigrantes que vive (bem) melhor que os pais, que se esqueceu e finge que não sabe como os pais viveram enquanto foram ilegais. Que dizem que são americanos e não imigrantes. Que são filhos de imigrantes, não imigrantes. E o que mais me envergonhou hoje foi ver na plateia do Trump muitas mulheres, negros e hispânicos a exibirem a sua alegria. Aqueles por quem Trump destila o seu ódio de estimação.

Foi a vitória do populismo, do racismo, da misoginia, da xenofobia, da homofobia, da estupidez, da ignorância, do deboche e da piada. A capacidade de se dizer aquilo que as pessoas querem ouvir. Nada motiva tanto as pessoas como o ódio, o medo e o desespero. Outra da lição que poderemos retirar é que a ignorância, a inconsequência e a falta de instrução têm efeitos devastadores para um país. O partido Republicano manteve a maioria no Senado e no Congresso.

E isto é o pronúncio do que (ainda) está para vir. Provavelmente daqui a uns tempos teremos a Marine Le Pen no poder em França e isto é só espalhar e começar a cair como um desmantelar de um baralho de castelo de cartas.

Até há pouco ria da Venezuela e da ascenção democrática de Chavez e do seu fato de treino à la Republica Boliveriana. Ficava perplexa pela hegemonia dos bispos da  IURD e seitas evangélicas no Brasil. E o poder de ditadores como Putin ou Erdogan. Não dá para rir mais. "It's not funny anymore".

Outra coisa que me irrita profundamente é dizerem que a Hillary era fraca e que a derrota se deve a ela. Que o Bernie Sanders é que devia ter sido escolhido. O Bernie Sanders, o revolucionário lá do sítio? Um homem, cuja competência não duvido, mas cujas ideias são ultra revolucionárias para a América conservadora. E não, a Hillary não é fraca. É talvez das mulheres mais bem preparadas da sua geração para Presidente dos EUA. A América perdeu, perdemos todos, por consequência. Que pena a América desperdiçar Hillary assim. O tempo, com toda a certeza, vai mostrar tudo.

Os votos valem o mesmo. São todos iguais. Tal como no nascimento e na morte.“Democracy is a bitch”. Os grandes ditadores foram eleitos democraticamente. Olhemos para trás. O mundo, tal como o conhecemos, acabou hoje. Só espero que não termine como a canção “Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar...”.


Copyrignt: The New York Times



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