segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A despedida profissional de uma grande pessoa

Fomos colegas de curso. Não privamos muito. Via-a mais na noite do que nas aulas porque eu vivia de noite e ela de dia e de noite. Tínhamos amigos comuns. Ela foi sempre boa aluna, eu não. Ela era beta e eu também. 

No dia que entrou no lab, lembro-me muito bem, os poucos homens que havia no grupo pararam como se de um filme em slow motion se tratasse. Não me lembro como nos aproximamos. Mas lembro-me do jantar de doutoramento do T. em que ficamos juntas. E do jantar de doutoramento da X. E do jantar de doutoramento da M. Jantares que bebíamos muito e que não nos lembramos de metade. Era o tempo em que não passávamos dos 20. Nesse tempo, não tínhamos hora certa de chegar ao lab nem hora de sair. Vivíamos uma vida errante de almoços e jantares na cantina da universidade e voltávamos para o lab sem hora de sair. Um tempo em que se fumava em todo o lado. Perdemos a conta e a noção das vezes que choramos de desespero antes de conferências. Mas havia sempre alguma alma caridosa que nos desse a mão. Tempos em que não havia diferenças hierárquicas entre estagiários, alunos de doutoramento e Postdocs. Tempos em que éramos todos iguais. Tempos em que me lembro que havia momentos muito maus mas os bons compensavam tudo. Tempos em que íamos buscar amostras de medula e cordão ao hospital. Com ela comecei a aprender a ser organizada e a ter uma inveja boa de quem tinha uma letra legível e que toda a gente entendia. A nossa amizade foi sempre improvável. E com ela aprendi que a característica essencial de todos os meus amigos é terem um coração grande. Nunca tive uma amiga tão diferente de mim.

Quem a vê parece uma pessoa fútil mas nunca foi. Ela é o exemplo que beleza e inteligência são compatíveis. Ela ensinou-me sobre tendências e sempre me ajudou a escolher o outfit para ir a casamentos. Eu sempre lhe mostrei o que ela poderia gostar de ler, apesar de ser cegueta, como eu carinhosamente lhe digo até hoje. Partilhamos o gosto por Madonna.

Passamos tanta coisa juntas. Fomos para Shanghai, talvez a viagem mais revolucionária da minha vida. Partilhamos sempre o quarto, em todas as viagens juntas. Tal como eu, nunca teve muito amor ao dinheiro. Gostamos de bons jantares demorados. Foi ela que me ensinou a gostar de vinho branco. E quem mais me ensinou sobre vinhos. Fomos para Pittsburgh juntas, outra das minhas grandes viagens. Para ela, menos boa. Foi com ela ela que fui pela primeira e única vez ao Pinheiro. E foi nessa noite que soubemos pela primeira vez, e para sempre, o verdadeiro significado de sorte. As horas incontáveis que passamos na noite. Bebedeiras, jantares, descobertas de restaurantes, Lisboa, Bairro Alto. Sempre próximas, sempre íntimas.

Foi com ela que vivi a história mais surreal de sempre, que hoje é um menino e tem quase 10 anos. Entretanto, descobriu a diabetes. Durante o meu doutoramento estivemos sempre próximas, mesmo com um oceano a separar-nos. Não estive no dia em que se doutorou mas lembro-me do que lhe escrevi sentada num café em Cambridge, de frente para Harvard. Já nos afastamos muito tempo por motivos nunca esclarecidos. Mas, como todas as verdadeiras amizades, voltamos ao sítio onde fomos felizes. E recomeçamos, não do zero, mas do ponto onde terminamos.


Já nos carregamos para a cama. Já fomos o anjo da guarda uma da outra. É talvez uma das pessoas que melhor me conhece. É das pessoas com quem menos uso filtros. Das pessoas que melhor me conhece só de olhar. É um vulcão em erupção. Mas o que mais vou sentir falta e de vê-la todos os dias, da intempestividade dela que tanto nos faz rir e de ser a maior alegria naquela sala. Boa sorte, gaja boa! Sempre em frente, sem olhar para trás!

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