quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos 2016

Ponham os olhinhos no FOLIO, senhores! Ainda dizem que a cultura de alta qualidade não vende.Um evento de 10 dias à volta dos livros. Uma vila, no interior de Portugal, num país que se diz ler pouco e todas as sessões estão cheias e os eventos, mesmo os pagos, estão esgotados. O povo é aquilo que se lhes dá. Eu e a maioria das pessoas presentes no Folio foram propositadamente. Qual a receita do sucesso?

Fico a saber que o Presidente da Câmara Municipal de Óbidos é do PSD. O partido que muitas vezes nos seus governos aboliu o Ministério da Cultura. Incluindo o último, de Passos Coelho, que foi só tiros nos pés. Até o acervo do Miró queriam leiloar. Ou seja, as decisões culturais dos políticos não são ideológicas. Há por aí muito boa gente que diz que não precisa de estudar nem ler nada para além do seu trabalho porque já aprenderam tudo o que deviam quando foram alunos na Faculdade. Que visão mais redutora do mundo. Que pequeno o mundo que lhes vai na cabeça. Que falta de pensamento. Mas, isso, são outros quinhentos.

 O que me fez ir, não vou mentir, foi o programa. Primeiro o Salman Rushdie com a Clara Ferreira Alves. E depois, o Camané a cantar Jobim. Apesar de, para este último, já não ter conseguido bilhetes. Tirei o meu último dia de férias para ir e conseguir chegar a Óbidos às 9. A conversa de Rushdie com Clara Ferreira Alves teve que ser mudado de lugar. Da tenda de autores para a tenda de concertos. Acho que a conversa não poderia ser conduzida por ninguém mais habilitada. Quem melhor do que Clara Ferreira Alves para conversar com Salman Rushdie? Ela que é uma enciclopédia ambulante. Que domina e conhece o islão, o Médio Oriente, a fatwa, terrorismo, EUA, NY, Londres. Sobre isto e muito mais se falou nesta noite. E que escreveu um livro magnífico sobre estes assuntos. Eu diria que o humor e a ironia são as características deste escritor. Ao contrário de muitas outras vedetas do seu calibre, este não é tímido, é solícito e ri-se de si próprio. É talvez a única pessoa de origem indiana que conheci simpática, não querendo generalizar. Apelidou a religião de non sense. Referiu-se a Madre Teresa de Calcutá sobre ser o oposto de uma santa. E apelida o ex-Papa de “Eggs Benedict” Falou-se da sigla ISIS que há uns tempos ninguém conhecia: “era apenas o nome de uma deusa egípcia, ou de uma mercearia na rua onde vivo, em Nova Iorque. Falou de quanto é feliz por viver em NY. Clara perguntou-lhe onde se sentia em casa ou aonde é que ele pertencia. Ao que respondeu que sempre se sentiu pertencer muito mais a cidades do que a países. Gosta de livros que o façam pensar. Falou que grandes livros não mudam necessariamente o mundo. Deu como exemplo o “Moby Dick”, um colosso que segundo ele nem a pesca mudou.
No dia seguinte acordei relativamente cedo, para ser sábado. Fui comprar o “Expresso” em frente ao hotel e cruzo-me com o grande Luís Miguel Cintra. Nunca o tinha visto fora do palco. Passei a manhã a ver todas as livrarias de Óbidos: Mercado, Adega...O saco de pano que muitas pessoas usavam era ridiculamente caro. Nem um saco destes na Strand custa o mesmo.Almocei num dos restaurantes na rua principal. Comi muito bem, bebi melhor.


Copyright: Folio
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Ao fim da tarde tive uma das grandes surpresas, talvez pela ausência de expectativa: a “Casa Cais”. Luana Carvalho (que eu não conhecia, como é possível), Alice Sant’Anna (que eu conhecia do livro “Rabo de Baleia” que trouxe de São Paulo), Pedro Sá (o grande músico da banda Cê e um dos grandes responsáveis pela modernidade dos últimos discos de Caetano) e Rafael Rocha. Pedro Luís, na plateia fez uma participação especial. Anabela Mota ribeiro apresentou-os, lendo “excertos” do grande livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas do não menos grande Machado de Assis. A delicadeza de Alice Sant’Anna a ler excertos do seu livro “Rabo de baleia” cujas palavras mais repetidas foram: baleia e Japão. E os variadíssimos nomes para a mesma cor usados no Japão. Mostrou ainda talento para cantar. Luana Carvalho, filha da mãe Beth, mostrou que o talento é genético. Até o cenário era inspirador. Uma laranjeira em que se viam as folhas a cair. O passar do tempo, como a vida. Que acontecimento este. Foi tão bom mas tão bom. Ficou a memória e a vontade de ver de novo. “Que lindeza tamanha”, como nas palavras de Régio.

Copyright: Anabela Mota Ribeiro


À noite, o grande concerto de Camané a cantar Tom Jobim. Uma verdadeira utopia neste registo. Indescritível de tão lindo e emocionante.

Copyright: Anabela Mota Ribeiro
No último dia houve ainda uma leitura encenada dos solilóquios de Hamlet — “como queiram de William Shakespeare” , coordenada por Beatriz Batarda e e por alunos e ex-alunos dela. Este para mim, foi o outro grande momento do festival. De uma delicadeza, força, verdade e excelentes interpretações. De encher a alma e o coração. Beatriz Batarda, uma excelente professora e uma das maiores encenadores e actrizes da sua geração. Que para além de tudo, é muito gira. Palamas para ela, muitas e para os alunos que ajuda a formar. Enquanto houver actores desta qualidade existirá sempre público.

Copyright: Folio
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Dos dois curadores só conhecia a Anabela Mota Ribeiro e José Eduardo Agualusa. O último não vi. A Anabela estava omnipresente. Todos os eventos que fui, lá estava ela. Sorriso aberto e abraços e beijinhos para todos os conhecidos. A felicidade era visível. Foi através dela que conheci o festival e não poderia haver melhor divulgadora. O seu entusiasmo e alegria foram contagiantes. Que qualidade de programa e que orgulho. Palmas e elogio, por isso, para ela.


Há coisas a melhorar, claro. Como as acessibilidades. O Comboio Literário foi uma excelente iniciativa. Falta melhorar os transfers da estação de comboios para a vila e criar um Comboio Literário desde o Porto (o norte também existe, e passar o dia entre aviões e comboios só com muita vontade mesmo). Mas não me arrependi. Tudo valeu muito a pena. Superou todas as minhas expectativas. O tempo ajudou. A organização magnífica, o cenário condizente. Tudo beirou a perfeição. Memórias muitas e já penso na vontade de voltar para o ano. Para mim, foi um verdadeiro acontecimento. 

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