6 de
Setembro. São quase 9 da noite. A temperatura na rua ultrapassa os 30 graus.
Dizem ser o dia mais quente do ano. O Coliseu está praticamente vazio. O calor
é mais que muito. E eu adoro calor.
Só se fosse para ter o efeito da música: “Calor que provoca arrepio/ Toma
esta canção/ Como um beijo”. O Coliseu
demora a encher. Perto da hora do concerto começar, a lotação não estava a
metade. A conhecida pontualidade dos portugueses. A temperatura subia
exponencialmente, quase infernal. Pensei ser para o ar condicionado não afectar
as vozes. Antes de começar o concerto eu já tinha bebido duas garrafas de água
com gelo, compradas no bar. Cheguei, também, a pensar que esse seria o objectivo.
O lucro extra com a venda de bebidas. O concerto começou 30 minutos
depois da hora marcada. Este que foi o concerto extra. Sendo a primeiro dos
dois. Quase esgotado.
As cortinas abriram e Caetano surge sozinho: "Este espectáculo se resume a uma cantora, um violonista é um compositor. Mas diz tudo sobre a extensão e a profundidade do samba. E por isso eu quero chamar ao palco Carlinhos 7 cordas e Teresa Cristina". Teresa Cristina é uma cantora praticamente desconhecida aqui e eu só a conheço por cantar uma música da Adriana Calcanhotto Beijo sem Aquele samba que fala de uma saída à noite para afogar as mágoas da "dor de corno": "vou á Lapa, decotada, viro todas, beijo bem...". Desta vez, Teresa Cristina vem cantar Cartola. Não posso dizer que adorei. Mas a simpatia, sinceridade, emoção e generosidade dela foram marcantes. Falou do sonho que tinha desde a infância de cantar em Portugal e que por isso era "um sonho com laço rosa". Disse também que o Coliseu foi o sítio mais lindo onde cantou. E os elogios não ficaram por aqui. "Tudo aqui é lindo, a rua, a padaria, a farmácia". E a emoção que é cantar falar numa língua que os outros entendem. Um discurso emocionante e emocionado que incluiu lágrimas. E ela própria sofreu com o calor quando aceitou a oferta e de um leque de uma senhora da primeira fila.
Copyright: Catarina Henriques |
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Caetano entra e o figurino resume-se a um banco e um violão. Ele, que vem
formal, de "paletó" castanho alaranjado, camisa, umas calças chinos e
sapatos pretos de atacadores. O concerto dele começou com Um índio, uma
canção arrebatadora para lá de linda:
"Um
índio preservado em pleno corpo físico
Em todo
sólido, todo gás, todo líquido
Em átomos,
palavras, alma, cor
Em gesto, em
cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico
(...)
É aquilo que
nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá
a todos não por ser exótico
Mas pelo
facto de ter estado sempre oculto
Quando terá
sido o óbvio
Seguiram-se Os passistas, Menino do Rio, Minha voz minha vida, Meu
Bem, Meu Mal, Esse Cara, por
desordem alfabética e de alinhamento, ao sabor minha memória. Caetano, um
baiano do Recôncavo, mostra que continua a ser um menino do Rio e que no alto
dos seus 74 anos, como o vinho do Porto, melhora com o passar dos anos, como a
canção: “Eu vi
muitos cabelos brancos na fronte do artista/ O tempo não para e no
entanto ele nunca envelhece”. Como o
Coliseu está mais do que quente, "mais quente do que no Rio", Caetano
não resistirá a tirar o paletó "bonito” (not!). Nesta noite não
haverá gritos de "Fora Temer" mas muitas vaias. Introduzirá um samba com:
"Recentemente o presidente que era interino até poucos dias atrás no
Brasil fez um discurso utilizando mesóclise e a imprensa sacaneou muito porque
achou que era uma coisa, sei lá, formal. A
mesóclise é uma forma considerada estranha para o coloquial brasileiro mas é
bonita. E nesse samba eu faço duas
mesóclises: Se desbotássemos, outros revelar-nos-íamos no Carnaval// (...)
Amor,/ onde quer que estejamos juntos/ multiplicar-se-ão assuntos de mãos e pés/
e desvãos do ser.”
Copyright: Pedro Gomes |
Copyright: Catarina Henriques |
Mostrou também que é um poliglota genial e que domina (exemplarmente) no mínimo
3 línguas: Cucurucucu Paloma (do
aclamado filme de Almodovar Hable com
ella), London London (uma irmã de Englishman in New York, a mostrar o quão
difícil é ser estrangeiro numa grande metrópole: “I know no one here to say
hello/ I know they keep the way clear/ Iam lonely in London without fear/ I’m wandering
round and round here nowhere to go), Love
for sale (cantada a
capella) e por fim Libertação. Esta
última, um fado cantado por Amália sobre um poema de David Mourão-Ferreira e
que Caetano disse nunca se sentir preparado para cantá-la em palco. Não foi o
que pareceu. O sotaque português beirou a perfeição.
Copyright: Catarina Henriques |
Depois não
podiam faltar as aclamadas Reconvexo,
Leãozinho, Força estranha, Sozinho,
talvez as mais aplaudidas e acompanhadas da noite e terminou Luz de Tieta.
Voltou para
um primeiro encore, acompanhado: a
fabulosa Tigresa (inspirada na
Zezé Motta que frequentava a lendária boite Dancing Days que era uma amálgama
social: “Me
falou que o mal é bom e o bem cruel... Ela me conta, sem
certeza, tudo o que viveu/ Que gostava de política em 1966/ E hoje dança no
Frenetic Dancing Days /.../ Com
alguns homens foi feliz, com outros foi mulher/ Que tem muito ódio no coração,
que tem dado muito amor/ E espalhado muito prazer e muita dor...) Miragem de
Carnaval, Como 2 e 2 (que é tão
linda e que diz: "Meu amor,
Tudo em volta está deserto tudo certo, Tudo certo como dois e dois são cinco"), Desde que o samba é samba. E voltou para terminar, de vez, com Odara. já com toda a gente fora dos seus
lugares, junto ao palco e de telemóveis em punho. Momentos inesquecíveis,
memoráveis, fantásticos. Bom demais!
Copyright: Nuno Ferreira Santos |
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Copyright: Catarina Henriques |
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