segunda-feira, 29 de julho de 2013

José e Pilar

Há muitos anos, antes de Saramago receber o Nobel, fui assistir a uma conversa dele. Já era um escritor consagrado mas eu não conhecia muito bem a obra dele. Lembro-me que nesse dia a minha opinião sobre ele mudou totalmente. Eu que achava Saramago austero, antipático, parco em palavras e até um pouco bruto, naquele dia, surpreendeu-me. Um homem delicado, atencioso, apesar das imensas filas. Nesse dia, se tinha muitas dúvidas sobre o comunismo, terminaram todas ali. Saramago, comunista convicto, usava uma gravata Pierre Cardin. Afinal, até os comunistas são capitalistas!

Muitos anos depois fui ao cinema ver “José e Pilar”. E se há retrato tão fiel de Saramago é esse. Eu que privei com Saramago meia dúzia de minutos e que ele atendera a todos os pedidos que eu lhe fizera, reconheci-o totalmente no documentário do Miguel Gonçalves Mendes. Um homem que surpreende quem não o conhece: bem-humorado, meigo, de sorriso fácil. Quem não viu o filme, é melhor não ler este texto, porque todos os “segredos” serão desvendados. Mas eu, não me canso de o ver!

Este texto esperou 3 anos para acabar de ser escrito. Nunca o achei suficientemente bom, e hoje, não é excepção. Mas acho que chegou a hora, não pode esperar mais.
O documentário começa com José e Pilar abraçados, tendo como cenário, as montanhas escuras de Lanzarote... “Se tivesse morrido aos 63 anos, antes de te conhecer... morreria muito mais velho do que quando chegar a minha hora...”. Esta declaração de amor não é linda?  Este documentário centra-se sobretudo na história de amor de José e Pilar. O dia-a-dia comum entre dois egos e personalidades extremamente fortes. O cânone e a pessoa que organiza toda a sua vida. As dedicatórias de todos os livros após ter conhecido Pilar mostram que Saramago não seria o mesmo se ela não tivesse aparecido na sua vida: “A Pilar, que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar”; “A Pilar, que não deixou que eu morresse”; “A Pilar, até ao último instante”; “A Pilar, minha casa”; “A Pilar, os dias todos”; “A Pilar, o meu Pilar” e somente “A Pilar”. Vê-se, repetidamente, cenas de carinho entre os dois, mãos dadas, abraços, ou simplesmente, a verem televisão juntos. Saramago diz também que se não tivesse conhecido Pilar tinha morrido muito mais velho.

A narrativa deste documentário segue a escrita do livro “A viagem do elefante”. Este livro, que eu comprei pouco depois de ter visto o filme no cinema, e que li em NY. Deixei-o algures numa mesa em NY. Isto sou eu: esquecer-me de tudo em todo o lado! “A viagem do elefante” (que eu chamava “A viagem do Salomãozinho”) conta a jornada verdadeira do elefante Salomão (oferecido pelo Rei D. João III ao arquiduque Maximiliano da Áustria) desde Lisboa até Viena. Este livro é uma metáfora da inutilidade da vida. Que triste fim, o de Salomão. Aquelas patas que tinham andado tanto e acabam a servir de bengaleiro. A epígrafe deste livro é linda: “Sempre chegamos ao sítio onde nos esperam”.

Vê-se a casa de Saramago em Lanzarote que tem escrito “A casa” em azulejos. Como é que Saramago escrevia? Num escritório com muita luz, com grandes janelas, mesa grande, rodeado de livros, sentado à frente de um computador, a ouvir música clássica.... Num dos momentos mais bem humorados, há uma cena em que Saramago parece estar a escrever e o que se vê depois? Saramago a jogar “Paciência”, segundo ele, para evitar o Alzheimer!!!
Mais à frente vê-se 3 jovens italianos, nervosíssimos à espera de entrevistar o seu ídolo na biblioteca em Lanzarote. Estas imagens fazem lembrar-me da descrição de Susan Sontag quando, finalmente, conheceu o seu ídolo Thomas Mann. Os jovens treinam para impressionar Saramago mas a simplicidade e simpatia deste, desarma-os.

As viagens de Saramago assemelham-se a de uma digressão de uma estrela pop. Saramago, apesar da avançada idade, não o aparenta. Fusos horários, viagens, aviões, táxis, carros, esperas de aeroportos, autocarros, ruas do mundo, hotéis, filas intermináveis de pessoas para autógrafos, conferências, leituras, apresentações, horas e horas. Tanta coisa que só de escrever cansa! Mas que Pilar insiste que para cansaço já chega os jovens que estão cansados, que andam o dia todo cansados e que já nascem cansados. Que “para descansar existe a eternidade, que é um tempo que nem nos passa pela cabeça”. E pergunta: se queriam que Saramago se sente com um cobertor a tapar as pernas e ela que fique em casa a limpar as pratas? Adoro quando Pilar diz que recusa-se a estar deprimida, ou triste, ou sem esperança: “tomamos comprimidos e vamos trabalhar, ponto! Sou a favor dos fármacos!Uma vida inteira a sofre com dores, quando agora temos fármacos?! O que faz mal é passarmos mal!”. Quando lhe perguntam numa das sessões de autógrafos se quer parar para descansar, responde: “O que ganho se parar?” Outra das cenas engraçadas é assistir ao “cochilo” de Saramago e Garcia Marquez numa apresentação no México.

No decorrer do documentário vê-se um Saramago muito doente, extremamente debilitado e magro. E o apoio incansável de Pilar e da âncora da sua família. Na homenagem de Saramago na Azinhaga, terra onde nasceu, é uma das situações em que se vê um Saramago comovido: “Se vocês não fossem tantos eu já estava a chorar. Mas vocês são tantos que eu nem chorar posso!”. A outra situação em que Saramago chora mesmo é na projecção privada de “Blindness”, onde agradece a Fernando Meirelles: “Ganhamos o dia!”.

Mas o momento em que me lembro de chorar de rir, da primeira vez no cinema, foi quando um brasileiro que estava numa fila para falar com Saramago, de tanto preparar-se, fala assim: “Saramago, me desenha um hipopótamo!” ahahahahahahah


Quando se perguntava a Saramago o que queria mais: “Tempo. Vida!”. O que pretendia Saramago com a fundação? Continuar-se!


terça-feira, 23 de julho de 2013

Ser cientista

Nunca na minha vida quis ser cientista. A coisa mais perto que quis ser, e esse sim, um sonho de criança que não foi realizado: ser médica.  Acho que nesta vida não nasci para o ser, apesar de tantas e tantas tentativas e de tanto querer. Muita gente acha que os (as) cientistas são aquele estereótipo do Professor Pardal da banda desenhada do tio Patinhas: com óculos, despenteado, mal vestido, engenhocas, sempre no mundo da lua...  Como todos os estereótipos, nada mais redutor. A verdade é que os cientistas trabalham muitas horas e, na maioria das vezes, quando estão a fazer os seus doutoramentos, não têm horas. Dizem, também, que gostam muito de beber e de drogas legais (como diz a Isabel Moreira). Há o lado magnífico e que me foi proporcionado: as viagens. Quando os nossos trabalhos eram seleccionados para apresentação oral nas conferências íamos. E isso era a recompensa do que nós achávamos a “eterna juventude”: conhecer o mundo. Até que um dia percebi que não havia cidade no mundo que valesse os anos de vida e os kgs que perdia antes das apresentações orais.

Nos últimos anos vivi entre Houston, Braga e Nova Iorque. Entre laboratórios, bancadas, batas brancas, electroforeses, PCRs, bioreactores, ratos, biotérios, salas de cirurgia, reagentes, pipetas, microscópios, células, meios, assim foi feito o meu mundo durante anos. E para quem nunca esteve num laboratório e nunca planeou uma experiência, nada mais difícil que explicar o sabor de uma descoberta!

Sou uma leitora compulsiva desde criança. Aos 3 anos queria aprender a ler e ser grande para saber ler!! Aos 3 anos já riscava paredes e caixas e portas com o meu nome e com os das pessoas que conhecia. Nunca fui uma aluna brilhante porque tinha muitos outros interesses para além do que se aprendia na escola (que no meu caso foi sempre um colégio de padres desde os 6 até entrar na Universidade!!). Desde que me lembro como gente, queria ser médica, mas aos 16 anos percebi que nunca teria as notas necessárias porque não conseguia dedicar-me em exclusivo aos estudos e muito menos deixar de ler outras coisas. Sempre achei que o pior dia da minha vida seria o da defesa do meu Doutoramento. Se não foi o pior, andou lá perto. Nunca pensei que sobrevivesse. Na primeira aula que dei, depois de doutorada, na Universidade do Algarve, eu estava muito pior do que quem me assistia. Nesse dia, para disfarçar a minha timidez, usei o meu humor judeu e expliquei (para quebrar o gelo) que eu sou um exemplo de uma pessoa que nunca foi brilhante mas que chegou onde todos podem chegar quando são brilhantes. Queria Medicina, acabei em Biologia e depois tirei o Doutoramento entre Braga (Universidade do Minho)e Houston (Rice University). Fiz um Doutoramento em Engenharia Biomédica sobre materiais para serem usados em Engenharia de Tecidos ósseos. E quando achei que esta área não podia ajudar tantas pessoas como gostaria (também dei este exemplo numa palestra que dei na Universidade do Algarve) mudei para a área cardíaca. E como sempre sonhei  viver em NY, nada melhor que juntar o excepcional dos 2 mundos: ciência no centro do mundo! No tempo que me sobra leio, vou muito a museus, gosto de andar a pé, viajo, adorava fumar mas deixei (ou estou a tentar deixar porque dizem que os viciados são para sempre)...  Escrevo muito, todos os dias, mas não ganho pelo que escrevo. Nada é ficcional, nem inspirado. Apenas resultados! “In God we trust, all the others must bring data”.


Os bolseiros da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) recebem como alunos de doutoramento 980€ (1710€ quando no estrangeiro) e como Post-docs 1495€ (2245€ quando no estrangeiro) multiplicado por 12 meses. Não recebemos qualquer subsídio, nem de férias nem de Natal. E o valor das bolsas não é actualizado há mais de 10 anos. Num país que atravessa a crise que sabemos nem me atrevo a questionar se sou uma privilegiada .. E ter uma bolsa da FCT é o que mais me enche de orgulho porque significa que a nossa candidatura foi escolhida entre centenas de outras. Escrevo principalmente artigos científicos, apresentações, projectos científicos e capítulos de livro em inglês. O português, apesar de ser a minha língua materna, é o que menos uso diariamente, só para falar.
Nunca é tarde para se aprender a gostar de um ofício!


sexta-feira, 19 de julho de 2013

Encontros imediatos

Ontem, depois de ter ido ao médico, ter ido à farmácia comprar a penicilina e ter voltado para a primeira das 3 injecções, parei na BP à ida para casa. Ultimamente tenho tido estes encontros imediatos. Parece que atraio estas pessoas. Uma pessoa que me parecia um sem-abrigo vem ter comigo a pedir-me moedas. Como sempre, quando as tenho, nunca me recuso a dar. E em vez e ir à sua vida, começa a perguntar-me: “Quem é o melhor jogador de futebol do mundo: Maradona ou Pelé?”...e eu respondi-lhe que dependia dos ponto de vista... Lá respondeu que era o Maradona e explicou-me a razão, mas não entendi metade. Depois continuou a dizer que pedia dinheiro para uns cafés e cigarros que eram os seus vícios... mas depois acrescentou que às vezes lá ia uma cervejinha. Mas droga nada! O aspecto dele era de mais de 70 mas confessou-me depois que tinha 54 anos. Parecia um velhinho, tão magrinho, nenhum dente... Eu a querer ir para casa e lá continua as perguntas: “Sabe quem é o dono de Sagres?”... “É o Sousa Cintra. Ele manda naquilo tudo”.Depois ainda me contou uma história do Bocage e do Café Nicola. Eu já tinha ligado o carro e ele já me tinha desejado muitas felicidades mas ainda me bateu no vidro. Não tive como não abrir: “Qual é o seu nome?”. Lá lhe respondi, e ele como se tivesse visto a luz: “É o nome da mãe de Nossa Senhora! Sabe quual é o meu: Manuel Joaquim. Joaquim é o pai de Nossa Senhora! Não tem um cigarrinho que me dê?”.  Respondi-lhe que não tinha, que não fumava(ou pelo menos que tentava, porque dizem que somos viciados a vida inteira).  Lá continuou com mais histórias mas deixou-me seguir o meu caminho. 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Egas Moniz

À luz dos olhos de hoje, Egas Moniz, o primeiro Nobel português, é controverso  Existem várias correntes que apoiam a retirada do Prémio Nobel. Quando lhe perguntaram se foi o que pretendia ser na vida, respondeu: «Certamente». Quanto às qualidades que mais apreciava nos médicos: »Honestidade acima de tudo. Saber. Delicadeza com os doente. Grande dose de bom humor».

Quem foi afinal Egas Moniz?
Nasceu em Avanca, Estarreja em 1874. Com pouco mais de 5 anos foi para Pardilhó para casa de um tio padre. Aos 10 anos, depois do exame da escola primária vai para o Colégio de S. Fiel, dos Jesuítas, em Castelo Branco. Passou depois para Viseu, onde esteve numa casa particular. Aos 16 anos fica sem pai. Os exames do liceu foram, mais uma vez, excelentes. Matriculou-se nos estudos preparatórios em Coimbra, que serviam ao mesmo tempo, para a carreira militar e Medicina.  Em 1894 ingressou no curso de Medicina. Nos primeiros anos do curso fica órfão de mãe. Em 1900 foi aprovado com Muito Bom, 16 valores. É aí convidado para seguir a carreira académica. Casou-se em 1901 com Elvira de Macedo Dias. O casal nunca teve filhos, o que terá sido um grande desgosto para ambos. Também neste mesmo ano, para a obtenção do grau de Doutor («a última e a maior honra a que nas Universidades pretendiam chegar os que nela estudam») escolheu como tema «A Vida Sexual I – Fisiologia.  Há apenas um século pode ver-se como  a ciência médica ainda estava atrasada: «o óvulo humano é uma célula completa, e pode sozinha gerar um feto». A Isilda Pegado, presidente da Federação Portuguesa da Defesa da Vida, que parece estar atrasada em relação ao seu tempo devia ficar impressionada com esta frase! Para ser admitido a professor escolheu como tese «A vida sexual II – Patologia» que incluem algumas questionáveis ideias de Egas Moniz: «O homem é essencialmente sexual, a mulher é essencialmente mãe. Tudo o que se afasta disto é anormal»; «Sou contra o casamento virgem da parte do homem, acho-o mesmo inexequível»; «A inversão sexual é uma doença tão digna de ser tratada como qualquer outra». O seu interesse a partir daqui foi essencialmente a neurologia, uma vez que estudara em Bordéus com um neurologista e com um psiquiatra. Refere mais tarde que: «O que sou em ciência devo-o à França e aos seus mestres».

A relação com a Universidade de Coimbra nunca foi pacífica. Egas nunca tomou posse dos cargos de lente substituto e catedrático em Coimbra. Egas arranja então consultório em Lisboa na Rua Nova do Carmo e vem a ocupar a cadeira de Clínica Neurológica da Faculdade de Medicina de Lisboa. Da sua vida política não vou aqui falar, pois o que me interessa destacar, é a sua carreira de cientista e médico. Egas considerava Coimbra demasiado pequena para a sua ambição. Além do consultório da Rua Nova do Carmo passa a dar consultas de «doenças nervosas» na Praça Luís de Camões. Alguns anos depois muda-se para a Rua do Alecrim.

Entre os seus doentes conta-se Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Pessoa desistira do Curso Superior de Letras e começara a ser autodidacta na psicopatologia. Como a avó tinha enlouquecido, Pessoa temia que lhe acontecesse o mesmo. Egas passa-o para «fins ginásticos», ao que Pessoa, quando seguiu as suas recomendações afirmou: «para cadáver só me faltava morrer». Egas pronunciou-se a respeito dos autores do Orpheu: «meninos sem talento que querem chamar para si as atenções vomitando asneiras...levem-nos para os manicómios, e metam-nos em pavilhões para dementes...». Mais tarde, Pessoa tece violentas afirmações contra Egas: «O que me indigna não é que esse parvo da ciência tenha essas opiniões...mas tenham prestígio suficiente para que a essas opiniões se dê importância». Egas fazia-se pagar muito bem. Em 1921 é eleito director do Hospital Escolar de Santa Marta.

Egas Moniz foi um cientista improvável e tardio, corroborando a afirmação: «You are never too old to be a scientist». Já tinha 51 anos quando começou a interessar-se por visualizar os vasos cerebrais. Havia a necessidade de uma técnica que permitisse a localização correcta dos tumores cerebrais. A primeira ideia foi administrar por via oral brometo de lítio (40 g deste composto que tinha 92% de bromo!!!) a doentes epilépticos e depois radiografava-se o crânio. Depois começou a testar a opacidade de diferentes sais de bromo(lítio, estrôncio, sódio e potássio) dissolvidos em água e presos numa placa de cartão que encostava ao crânio. Nesta altura começa a colaboração com  Pedro de Almeida Lima, tio dos irmãos Lobo Antunes, foi o fundador da neurocirurgia em Portugal. Esta dupla professor/aluno, com quase 30 anos a separá-los, começa a estudar a toxicidade de várias substâncias opacas aos raios X no coelho e cão, quando injectados por via subcutânea e endovenosa. Chegaram à conclusão que o brometo de estrôncio até 30% era o menos tóxico. Em 1927, com este meio de contraste, conseguiram vizualizar a circulação intracraniana de um rapaz com um tumor da glândula hipofisária. Ao que Egas reage assim: «Ontem ao alcançar o fim desejado, chorei como uma criança. Este trabalho era a minha vida». Em 1933, Egas publica na Lancet um artigo que demonstra a utilidade da angiografia com tototraste, obtida em mais de 300 doentes, os quais, podiam regressar a casa após o exame sem qualquer problema. Egas preferia os colaboradores cultos e dedicados ao estudo. A invenção da angiografia teria sido mais do que suficiente para garantir a Egas Moniz um lugar eterno na história da medicina.
Há um caso clínico, descrito com muito pormenor no livro Erro de Decartes n de António Damásio: Phineas Gage trabalhava nos caminhos-de-ferro em Vermont be sofreu um acidente com uma explosão acidental no qual uma barra de ferro de 109 cm de comprimento e 3 cm de diâmetro atravessou a sua face e saiu pelo osso frontal. Depois de ter desmaiado, Gage recuperou e foi levado para o hospital. Gage, apesar de ter sobrevivido, sofreu severas mudanças comportamentais e emocionais, embora a memória permanecesse perfeita. Gage pareceu recuperado, com a mesma inteligência, capacidade de aprendizagem mas tornou-se numa pessoa socialmente inconveniente após o acidente. Com a leucotomia pré-frontal (corte da substância branca do cérebro) com um leucótomo (cânula metálica de 11 cm de comprimento e 2 mm de diâmetro) os doentes pareciam melhorar. Ao contrário da angiografia cerebral, psicocirurgia rapidamente se expandiu, devido à ausência de terapêuticas eficazes nas doenças mentais. Calcula-se que entre 1942 e 1954 foram operados no Reino Unido cerca de 11 mil doentes e nos EUA 18600.

Em 1949, depois de 4 candidaturas, Egas Moniz é galardoado com o Prémio Nobel de Fisiologia e Medicina pela descoberta e valor terapêutico da leucotomia pré-frontal. Morreu em 1955.

A psicocirurgia continuou a ser praticada pelos nomes mais ilustres da neurocirurgia mundial até à introdução dos psicofármacos como a clorpromazina, em 1954. Claro está, que a psicocirurgia foi mal aplicada, dizia-se para controlar o comportamento de presos e delinquentes ou para mudar orientações sexuais. As críticas continuam até hoje como a história trágica de Rosemary Kennedy ou da irmã de Tennessee Williams à peça  “Voando sobre um ninho de cucos” filmado por Milos Forman. Depois de votada à clandestinidade durante anos, a psicocirurgia está praticamente confinada à doença obsessiva-compulsiva e a estados de ansiedade refractários a qualquer outra terapêutica.

Fonte: Egas Moniz - Uma biografia de João Lobo Antunes


sexta-feira, 12 de julho de 2013

Os meus sobrinhos comem a pasta de dentes

Quem me conhece bem sabe que eu tenho um problema grave de ver alguém a lavar os dentes, incluindo eu própria. Quando vejo alguém a lavar os dentes, dá-me imediatamente vontade de vomitar. E isso acompanha-me desde que me lembro de ser gente. Não mudou- Posso ver alguém a vomitar que fico ali, pacientemente à espera, a segurar-lhes a testa, para que na maioria das vezes se consigam aguentar-se nessa posição. O resultado pode até salpicar-me as calças, que a única coisa que penso é: “será que este vinho tinto vai sair destas calças claras?”. Continuo ali, sem qualquer problema, qual gesto caridoso, a ser a mão amiga que os (as) acompanha naquele momento de agonia. Não tenho qualquer tipo de repulsa. Mas ver alguém lavar os dentes, não! Em quantos quartos de hotel, quando as pessoas que ficavam comigo saiam da casa de banho a escovar os dentes... eu só tinha tempo de ter o instinto de sobrevivência de virar-me de costas, fugir e ainda tapar os olhos com as mãos!!! Quem me conhecia bem percebia imediatamente e fugia para o lugar de onde saiu e não devia...repetindo a palavra “desculpa” vezes sem conta. As que me conheciam menos bem não percebiam e continuavam em direcção a mim a achar que me tinha dado um ataque de asma...

Os meus sobrinhos sabem que me podem pedir tudo menos que vá com eles lavar os dentes! Eles bem me mostram que as escovas são iguais às minhas, que têm uma pasta de dentes muito gira... mas basta falarem-me em lavar os dentes que eu entro logo no sistema de manter o perímetro de segurança. Então, principalmente o mais novo, está sempre a querer lavar os dentes mas não pode fazê-lo sozinho porque o mais provável é que sairia da casa de banho a parecer que tomou um duche. Este é daqueles que lava os dentes e quer imediatamente comer, apesar de saber que lavar os dentes é a última coisa que se faz depois de comer e não antes! Eu, o mais afastada possível da cena, ouço o pai dele, a avó ou o avô (sim, porque ele é quem escolhe) “deita a água fora”, “a água não é para engolir”... e outras preciosidades. Tenho sempre de tentar abstrair-me porque a simples imagem dá cabo de mim.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

A despedida da menina da "Medeira"

Conheci a A. há alguns anos, não me lembro bem quantos... sou péssima para datas e para nomes, toda a gente sabe. Chegou ao lab e eu fiquei responsável por mostrá-lo. Eu acredito na A. mas não me lembro deste dia. Tempos depois aparece para fazer o Mestrado e por ali ficou montes de tempo. Esse tempo que é sábio e que ensina tudo, neste caso foi bem agreste. Acredito que nem tudo tenha sido mau para a A. mas sei que foi penoso. A A. tornou-se uma grande amiga, essa pessoa que gosta de pessoas! Fiquei fã dos jantares dela, era a minha companheira para os filmes que mais ninguém queria ver, adorávamos a “nossa” picanha a horas tardias, chegávamos sempre atrasadas ao cinema, passamos muitas peripécias, acompanhou-me a concertos e leituras muitas vezes. Agora, passados estes anos todos, muda do “Contenente” para a ilha das baleias!

Não gosto de despedidas, mas não podia faltar à “Despedida do Contenente”. Estava um dia daqueles de derreter. Já passava das oito da noite mas a temperatura parecia de 4 da tarde... Cheguei à mesa e estavam todas a beber o “cocktail da Su”. Pela cor (rosa) não dava nada por aquilo. Mas como pago sempre para ver, depois de provar, delirei! Eu que estava a tomar antibiótico, não resisti, e mandei o bom senso às urtigas. Não me lembro de tão bom cocktail na minha vida! A C. e o F. (meus queridos companheiros de NY) iam adorar. Depois veio a sangria e o vinho branco... e as tapas que valeram a pena. Os anos da J., apesar de esquecidos no dia, foram festejados com pompa e circunstância com direito a um muito bom bolo.  Os grandes Pumbas, que mostram em todas as ocasiões serem uns amigos dignos do nome, desta vez, não desiludiram e superaram-se. Nem tenho palavras para descrever o filme que fizeram. Foram 17 minutos lindos que deu para tudo. Chorei, ri, gargalhei, arrepiei-me e fiquei sem palavras. Que coisa magnífica. Que surpresa tão boa. E é nestas alturas que acho que os amigos são muito grandes. E que feliz que me senti por comprovar, mais uma vez, que a A. tem estes amigos tão dignos dela. Até já A.! Queremos ver as baleias! Eu estarei aí para o ano para cantar contigo: “Seus netos vão lhe perguntar em poucos anos/ Pelas baleias que cruzaram oceanos”!!! 




terça-feira, 9 de julho de 2013

Alcina Amélia Araújo, a minha avó

Faz hoje um ano que dava os parabéns à minha avó pela última vez. Há exactamente um ano tinha tomado talvez a decisão mais errada e decidido ficar mais uma semana em NY em vez de ter ido passar férias a Miami. Hoje um ano depois, vejo que a troca não valeu a pena. Mas como sempre defendo na vida, só nos devemos arrepender com o que não fazemos. Há um ano atrás, no calor húmido de NY, em frente às urgências do Presbyterian, liguei o skype e falei muito tempo com a minha avó. Nesse dia ela ainda me conheceu e estava muito bem disposta. E esta falta que podia ser de muita tristeza transformou-se numa saudade boa e dou comigo a sorrir das lembranças.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

A nossa corda bamba

Quem me conhece bem sabe que eu não defendo com unhas e dentes este governo, aliás nem tiveram o meu voto. Quando foram as eleições,  por imperativos legais, não pude votar no Consulado de Portugal em NY. Nunca fui uma defensora de Passos Coelho. Sempre fui descrente quanto ao percurso político e académico dele. Começou na JSD, saiu aos 30 anos, seguiu a sua vida. Terminou o curso aos 32 anos numa privada... Tinha como “padrinho” o Ângelo Correia e ainda para mais era amigo desse Miguel Relvas. Depois, achei a escolha de Miguel Relvas uma vergonha. Muito antes de saber sequer o CV dele, nunca gostei dele. É aquela coisa “do meu Santo não se cruzar com o dele”. Nunca gostei do homem. E foi este homem o princípio do fim. Como era amigo de Passos Coelho, a sua nomeação nunca se deveu à competência técnica nem política, mas às razões da amizade que a própria razão desconhece. De resto, este governo apesar de sempre muito criticado, na minha opinião, tem pessoas de muito valor: Paulo Macedo, Paula Teixeira da Cruz , e até para mim uma boa surpresa, o Miguel Macedo. Mas o grande defeito de Pedro Passos Coelho é a teimosia. E como a maioria dos defeitos são sempre irracionais, toldam-nos a razão. O grande erro começa quando começam as suspeitas sobre Relvas e nesse imediato momento, já que o próprio não teve a honestidade de se demitir, o primeiro-ministro que o fizesse. A partir daí, o governo pôs-se cada vez mais a jeito.

De que acusam Maria Luís Albuquerque afinal? De ser o bode expiatório de um dossier tão melindroso como as swaps? Ela fez alguma coisa ilegal? Ontem ouvia um dos comentadores políticos a dizer que ela tinha muita competência técnica mas que a sua credibilidade política estava em causa porque a tinham envolvido na “lama” das swaps (mesmo que sem culpa alguma). Vem a saber-se que esta foi a razão invocada por Paulo Portas para se demitir. Não por a terem envolvido no caso das swaps mas admirem-se, por ser a continuação das políticas de Vítor Gaspar! Será mesmo por isto? Com tantos motivos que portas teve já para se demitir, talvez com mais razão até no caso da TSU, abandona o barco como os ratos agora? Eu pergunto-me: não haverá desenvolvimentos no caso dos submarinos? Ou acha Portas que vai coligar-se com o PS quando houver novas eleições e assim poder continuar no poleiro? E depois existe ainda outra hipótese: há a possibilidade de Paulo Portas sair da liderança do CDS-PP? A demissão de Portas, pelo que se consta, surpreendeu até o núcleo duro do CDS-PP. Ontem à noite, ouvi perplexa o José Ribeiro e Castro dizer que foi uma surpresa para ele, que nada fazia esperar. E se Portas discordou assim tanto com a nomeação da nova ministra das Finanças, como permitiu ou sugeriu que alguém dos eu partido fosse nomeado Secretário de Estado? Muitas perguntas sem resposta, eu sei...

Outra coisa que não percebo, partindo do princípio que Portas se demitiu sem ser surpresa dos seus pares, se o Primeiro-Ministro soubesse da solidariedade dos ministos do CDS-PP (Assunção Cristas e Pedro Mota Soares) com Paulo Portas não se teria demitido ontem à noite? Se estes dois ministros estão tão solidários com Portas e se esta fosse um decisão conjunta porque ainda não se demitiram?


Alguém acredita que a oposição liderada por António José Seguro é mesmo alternativa a este governo? Não duvido que o governo já só se aguenta no poder porque não há à vista qualquer alternativa credível. E as eleições serão mesmo uma solução? Como? Que consequências terá esta hipótese para os compromissos que Portugal assumiu? As eleições serão solução para alguma coisa se não se conseguir uma maioria?

terça-feira, 2 de julho de 2013

Paulo de Morais: o arauto

Este post devia ter sido escrito há dois dias. Não o foi porque coincidiu com a recta final da escrita de um projecto da FCT, cujo prazo de submissão, termina hoje. Passei o fim de semana a terminá-lo e submeti-o ontem, 24 horas antes do fim do prazo.

Adiante, no sábado fui à apresentação do livro de Paulo de Morais na Centésima Página. Já li o livro “Da corrupção à crise – Que fazer?” no sábado.  Não vou resumir o livro mas aconselho-o entusiasticamente a toda a gente para perceberem coisas, que como eu não imaginava, e para compreender melhor o estado a que chegamos. Temos vários problemas: 1) dívida pública deve-se principalmente ao desperdício, economia desestruturada, predomínio da banca sobre a política e corrupção; 2) dívida privada que se deve principalmente ao imobiliário. Paulo de Morais referiu que o urbanismo é uma máfia semelhante ao tráfico de droga, com a diferença que no tráfico de droga apreende-se a droga, mas no urbanismo não há nenhuma apreensão de prédios. Alguns, segundo Paulo de Morais, até recebem medalhas no 10 de Junho. O imobiliário é a verdadeira bola de neve que não tem fim. A venda de apartamentos foi sobrevalorizada. Hoje as casas valem menos 40%. Existem 2 milhões de casas vazias em Portugal: 500000 de ocupação sazonal (Algarve) e as restantes pertencem a fundos de investimento, imobiliário fechado, têm isenção de IMI e IMT e não são colocadas no mercado porque se assim fosse as rendas no mercado baixariam. 

Agora prestem atenção a este escândalo para perceberem como chegamos até aqui. Durante anos, o que se passou com o imobiliário e as relações promiscuas entre banqueiros, câmaras e promotores imobiliários foi o seguinte: um promotor imobiliário comprava um terreno agrícola por 100, ia a uma câmara e transformava esse terreno agrícola em terreno com grande capacidade de construção. Depois ia a um gabinete de engenheiros e arquitectos e mandava fazer um projecto. Saía de lá com um power point, ia ao BPN e um terreno que tinha custado 100, por via da valorização da câmara, passava a valer 1000. O projecto passa a valer 4000 e pedem um empréstimo sobre o projecto. E o que deixavam lá de garantia? O terreno que valia 100!!!! É destas vigarices que o BPN está cheio. Projectos financiados que nunca passaram do power point!

Um dos exemplos que Paulo de Morais deu, recuando aos tempos dos Descobrimento, foi o de D. João II. Como conseguimos fazer os Descobrimentos?  D. João II, o Príncipe Perfeito, que introduziu o primeiro livro em Portugal e fez o Tratado de Tordesilhas, derruba a conspiração de Viseu e mata o Duque de Viseu, Duque de Bragança e Duque de Beja. Esta “guerra” contra os fidalgos, com o confisco de bens, permitiu resolver o problema da fazenda pública (vejam como vem de longe e parece crónico ou genético) e lançar os Descobrimentos.

Portugal parece estar como o Brasil, em que há meia dúzia de pessoas, a aproveitar-se do Estado e a perpetuar a riqueza à custa dos portugueses. E estes parecem ser intocáveis. 70% da nossa dívida privada deve-se a estes senhores, 15% crédito ao consumo e apenas 15% para toda a actividade do país. Estes números fazem sentido? Temos de acabar de uma vez por todas com estes promiscuidade entre a política e a banca! Este meu texto parece muito desanimador mas não é. A verdade é que as coisas podem ser mudadas e existem soluções. Fica aqui a minha sugestão para comprarem e lerem o livro de Paulo de Morais.

A outra analogia pode ser também ser feita, com o Sermão de Santo António aos Peixes (tema do post anterior): «...Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande..».

Para terminar, soubemos ontem que o Prof. Vitor Gaspar se demitiu do governo. Toda a gente bate palmas. O tempo, que ensina tudo e que é sábio, dirá se foi bom ou mau ministro. Apesar de há algum tempo o nome deste ministro estar nos remodeláveis, esta demissão surpresa, faz-me perguntar o que se passou para um homem que parecia aguentar tudo ter atirado a toalha ao chão. Para os entusiastas, que tanto acreditavam que a saída de Gaspar seria a solução de todos os nossos problemas, fica a questão se não estaremos a caminho de uma nova Grécia...



facebook