Mostrar mensagens com a etiqueta avô. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta avô. Mostrar todas as mensagens

sábado, 23 de dezembro de 2017

Sete anos sem ele

Estou sentada à espera de ser chamada. Falta de ar. Dia de crise. Bronquite. Bronquite asmática. Asma brônquica. Asma alérgica. Mas, de facto, não sou alérgica a muita coisa. Tenho (apenas) as imunoglobulinas aumentadas 1000 vezes. Corticoides. Cortisona. Optam pelos anti-inflamatórios que não sejam não-esteróides. Brometo de ipratrópio. Salbutamol. Budesonida. Flixotaide. Cansaço. Pieira. Gatinhos. Panela de pressão. Borbulhar. Esponja. Hiperventilação. Peixe fora de água. Insónia. Mal-estar. Cetirizina. Bilaxten. Descanso.

Hoje ela disse-me que a imagem mais remota que tem de mim é de num dia de verão muito quente, dia de tudo a arder em volta, eu a caminhar calmamente, parar e dizer: “não entres em pânico, está a começar uma crise de asma. Eu não tenho a bomba e preciso de oxigénio. Liga por favor para o INEM”. Nesse dia, o INEM chegou rapidamente mas não tinham oxigénio. Lembro-me da médica me dar a mão e pedir-me calma, apesar de eu estar deitada mais do que calma. Nesse dia uma amiga que eu não sabia grávida foi comigo na ambulância a alta velocidade para o hospital. Ela não teve medo. Eu não sabia. 

O meu avô morreu há 7 anos. Passava pouco das 8 e recebemos um telefonema. Nesse dia, eu dormi em casa dos meus pais. A minha mãe foi acordar-me porque uma das minhas tias queria falar comigo. Disse-me ao telefone a chorar: “O avô morreu”. O mundo parou. Não consegui dizer nada. Petrifiquei. Como é que podia ter morrido se estava, apesar de internado, tão bem na noite anterior? Ele que sobrevivera a dois enfartes num mês. Ele que nunca estivera gravemente doente na vida. Ele que nunca estivera internado. Um enfarte atirou-o para a cama de um hospital e nunca mais de lá saiu. Perdeu o apetite. Perdeu peso. Perdeu a função renal. Perdeu quase tudo. Mas nunca perdeu a consciência. Que saudades que tenho do humor dele. Do riso dele. E conversava tanto. Que saudades do “minha neta”.

Há um ano, exactamente neste dia, entrei com a maior das confianças numa sala. E saí de lá cega de desânimo. Acho que nunca me recuperei. Ainda hoje não consigo lembrar-me do que foi dito. Vou aprendendo devagarinho a não acreditar.

Ontem mandaram dizer-me que a minha pressa não era urgente. A minha esperança morre, a cada dia, um pouco mais. Tudo é espera e incógnita. A resposta chegará algum dia. É uma questão de tempo e paciência.

E depois penso naquele senhor de 91 anos, a idade que o meu avô tinha quando morreu, que está desesperado, nota-se no tom de voz. Quer uma receita e não pode esperar porque tem muito que fazer. Tem a filha no hospital. A filha tem 59 anos e tem um cancro no rim. Já foi operada quatro vezes. E naquela casa onde eram dois, agora resta um. Está sozinho, nesta época do ano. Há sempre pior.

domingo, 23 de dezembro de 2012

O meu avô (1919-2010)

Hoje faz exactamente dois anos que o meu avô nos deixou. Nada mais foi igual depois disso. O meu avô nunca esteve doente nem nunca foi internado durante toda a vida até ao dia que teve um enfarte. E esse enfarte foi de tal forma forte que o atirou para uma cama e ele nunca mais pode ser autónomo. Ficou consciente e sóbrio até ao fim. Poucas horas antes de morrer, depois de ter sido internado com uma pneumonia, quando os médicos autorizaram as visitas da família, ele virou-se para uma das filhas e disse: “Podes ligar aos teus irmãos que eu já posso receber visitas”. O meu avô era assim. Adorava visitas. Isto foi ao fim da tarde. De manhã às 8 horas, a minha mãe vem acordar-me porque uma das minhas tias me tinha ligado e a minha mãe achou que tinha sido alguma coisa com o filho dela. Mal chego ao telefone percebi imediatamente. E depois ainda tive que dizer à minha mãe. Fiquei em choque. Só me consegui sentar.

A parte que queria falar, e a melhor era o quanto este António José Martins foi o melhor avô do mundo. O avô que toda a gente queria ter. Tinha um jeito extraordinário para os miúdos. Quando éramos crianças nós tocávamos cavaquinho, violas de plástico e bombo e ele cantava. Sabia muitas canções de assobio. Adorava música. Adorava ler jornais. Era esquerdino para tudo mas aprendera a escrever com a direita. Contava imensas histórias e muitas anedotas. Jogava imenso “às orelhas” com os netos mais novos. E jogava imenso “à sueca” com os adultos. Via imensa televisão, principalmente os programas da manhã e  as notícias. Era um fã acérrimo da RTP. Nunca queria a televisão noutro canal. Era adepto do Vitória de Guimarães e tinha uma queda para o Benfica. Fazia-nos cabanas e quando a minha avó não estava fazia-nos o pequeno-almoço e deixava sempre o leite ferver com medo que estivesse estragado e fizesse mal aos meninos. E para além disso deitava pouco nesquik no leite. Adorava tudo com feijão e tomate. Adorava melancia e meloa no verão. Durante a vida toda sempre comeu maçã à sobremesa. Já o conheci calvo. Saía sempre de fato, gravata e chapéu.  Ficou sem cabelo pouco depois dos vinte, como contava, mas nenhum filho saiu a ele. Ao contrário da minha avó tinha cabelo e olhos escuros. Só a minha mãe e um dos meus tios têm os olhos escuros como ele. Tinha um humor incrível. Um dia o meu avô ia fazer um exame e disseram-lhe para retirar os dentes (placa), caso a tivesse, e ele disse: “Não tiro, isso eu não tiro”. E quando me contou isto a gargalhar nem me lembrei que os dentes eram todos dele. Chamava-me sempre “minha neta”. Elogiava os netos e os filhos como ninguém. Era vê-lo na vila a falar da família. Dava gosto. Adorava surpresas. Era muito alegre e tinha um sorriso lindo. Tinha uma mãos lindas. Era um óptimo conversador. nunca lhe ouvi uma queixa.

Quando éramos miúdos e estávamos sempre a mexer na lareira dizia “vais fazer xixi na cama”. E no Natal perguntava sempre “Quem é que hoje fez xixi na cama?” e aquilo era um monte de mãos no ar. Mas como todas as pessoas extraordinárias, tinha um feitio difícil que lhe durava pouco tempo mas tinha uma frase que mandava como uma bala: “Pensa que é aquilo que nunca chega a ser”.
No dia do funeral, um padre grande amigo dele fez-lhe um elogio fúnebre dos mais bonitos que ouvi: “Um homem sério, bom pai de família, um bom marido, grande amigo”.


facebook