quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Variações, de António

Teatro Garrett, 21 de Janeiro de 2017

A peça começa ainda com as pessoas a entrarem na sala e acompanhada pelos burburinhos e conversas que não se percebem. No palco está já António Variações que verifica as cortinas. Sai e entra novamente. Coloca-se junto ao microfone. Corpo ligeiramente de lado. Sussurra. Imperceptível o que diz, de olhos fechados. Compenetrado. Quando as luzes se apagam e um foco o ilumina, ouve-se Variações a rezar”Ave Maria”. Prepara-se e ensaia para o espectáculo com Amália, que ele venera. Este será um dos momentos mais importantes da sua vida. 

Um incompreendido, um ET que nasceu antes do tempo e numa terra onde não o entendiam. Um insatisfeito sempre em busca da perfeição. Um sofredor. O excêntrico que nasceu numa terra chamada Fiscal, uma aldeia perto de Braga. Uma terra de uma lonjura infinita até chegar à Feira Nova e depois a Campanhã e só no dia seguinte chegar a noitinha a Alcântara. Este menino que levou o Minho e a sua música para sempre dentro da cabeça. Este menino que nasceu diferente, a querer mais, que conseguiu fazer aquilo com que sempre sonhara. Aquele menino da província que não aceitou a sua sorte de ser marceneiro “e andar todo sujo, de ter uma vida normal, casar com uma mulher e ter filhos”. Este menino que tinha saudades de casa e queria gravar a voz da mãe no gravador.

Que interpretação magnífica do Sérgio Praia. Não conhecia o actor. Fiquei impressionada com as parecenças físicas entre ele e António Variações. A forma física incluída. Quando vi quem era o actor na realidade percebi a transformação. Que trabalho magnífico. Foi também esta magia da transfiguração que deu realismo à peça. Sérgio Praia interpreta excertos de algumas canções de Variações, à capela, no decorrer do espectáculo.

Um monólogo de pouco mais de uma hora em que se chora e e se ri. Uma interpretação magnífica que muitas vezes nos leva a pensar que Variações ressuscitou. Os gestos, a dança, a voz, o timbre, o sotaque. Todo ele é António. Um homem de estatura pequena, musculado que fazia exercício todos os dias, que não fumava nem bebia, que comia saudável e que era considerado por quem ele passava “o maluco”. Nunca teve vergonha da sua origem e nunca renegou a sua identidade. Este homem da província que chegou a Lisboa aos 12 anos para trabalhar como marçano a carregar os cabazes das compras das senhoras finas das Avenidas. Nunca se resignou e lutou sempre por mais, pelo sonho, por aquilo que um dia queria ou poderia ser. Percebe-se o amor visceral à sua terra, ao pai e à mãe. E a Amália.   Em Fiscal dizem que Amália foi uma das poucas pessoas públicas que nunca o abandonou, nem mesmo na morte.

Variações, por ser quem foi, apesar de ter tido uma carreira fugaz e muito curta, como a sua própria vida, ainda hoje é lembrado,  após 35 anos da sua morte. Quando o vemos no palco com aquelas roupas, aquela performance, aquele brinco e a barba descolorada,  percebemos que ainda hoje seria revolucionário. Os mitos morrem (sempre) cedo.





P.S. O que é inadmissível é António Variações ter nascido no distrito de Braga e a sua casa mais emblemática de espectáculos, Theatro Circo, não ter estreado esta peça ou a ter na sua programação...

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Luana Carvalho

As pessoas que me conhecem bem sabem o quanto a música está ausente na minha vida e o quanto sou ignorante neste tema. Ouço cada vez menos, menos, menos música. E acho que há cada vez mais música desnecessária e que só polui o mundo. E com o passar dos anos, não me consigo concentrar na presença dela. Uso-a apenas para “mascarar” o barulho quando me incomoda, no ginásio (que vou com muita pouca frequência) e a andar de bicicleta (que era o meu meio de transporte em Houston). Para piorar os meus conhecimentos musicais, saio cada vez menos à noite e a pouca música nova que vou conhecendo limita-se à obra do acaso. Ou à grande transposição de resistência que às vezes concedo às músicas que os meus amigos me enviam.

A Luana foi uma das grandes surpresas do último ano. Conheci-a, e a sua voz, num fim de tarde lindo em Óbidos. Fiquei encantada. Falou bem, cantou bem e vim a saber que escreve (ainda) melhor. Acompanhada da poeta Alice Sant’Anna, do baterista e baixista da banda Tono. Foi daqueles encontros memoráveis e irrepetíveis que ficam apenas gravados na memória, em que tudo parece ser perfeito. Ali era apenas a Luana. Com as letras, as canções, a voz, a música, os óculos e o violão. Lembro-me, para sempre, que se falou de Machado de Assis, de baleias, de mar, de Moby Dick, da Mangueira...

Em Outubro foi convidada especial do Moreno Veloso no S. Luiz. Cantou “Deusa do amor” e “Invente-me” que serão para sempre a imagem dela, para mim. E no final do concerto foi-me apresentada pela Anabela Mota Ribeiro. Pessoalmente Luana é tal e qual como a cantora que se revelara no palco, como leitora de poesia dela e dos outros, como compositora, como instrumentista: gentil e delicada. Disse-me que os discos seriam lançados em Janeiro, e assim foi. Cumpriu-se.

“Sul” saiu saiu primeiro em todas as plataformas digitais. Ouvi do princípio ao fim, repetidamente, sem me cansar. Tem sido a minha companhia, como barulho (bom) de fundo. A capa, na primeira vez que a vi, lembrou-me “Moby Dick”. Não sei se era essa a intenção. E estão lá, tão perceptíveis a guitarra de Pedro Sá e o violoncelo de Moreno Veloso. “Invente-me” é de morrer de amores. E já sei o significado de “cabrocha”.

“Branco” é diferente. Parece-me um trabalho muito mais experimental e autoral, muito decantado. Um conjunto de sons e palavras cuidadas que não se parece com nada. Talvez daí o nome branco. Ou um zero (não absoluto). Algo no disco me fez (re)lembrar da sonoridade de “Cantada” de Calcanhotto. Sou só eu que achei?

Este trabalho duplo da Luana não é só música, nem canção, nem interpretação. É muito mais. Mais além. Para lá. Muitas expressões artísticas numa só. O muito que se transforma em pouco. A simplicidade tão difícil de conseguir, atingida. A beleza da arte como uma coisa só.


quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Mário Soares,1924-2017

(Escrito no dia em que morreu: 7/01/2017)


Nunca votei Soares. Quando andava na primária usei e abusei do "Soares é fixe e o resto que se lixe", mal sabia eu o que era política. Mas ninguém pode negar a importância dele na política portuguesa. Depois, sempre respeitou muito Sá Carneiro e reconciliou Amália com Portugal,conseguindo prestar-lhe a homenagem que ainda viu em vida. Um homem culto, moderno, visionário, leitor voraz.Um conhecedor e admirador de arte, admirava as coisas belas. Um defensor da ciência e dos cientistas. O político português mais conhecido no mundo. Errou Ao candidatar-se ao Parlamento Europeu e ao recandidatar-se a PR, contra a vontade até dos seus amigos e familiares. Numa época em que a política é inundada de gente sem qualidades, Soares é um exemplo. Fui a maior das críticas da Fundação Mário Soares, ainda em vida. Não é porque na morte toda a gente é boa mas porque é merecido. Abomino as destilações viscerais de muita gente com pouco o que fazer no anonimato das redes sociais.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

E para isto fomos feitos

Em jeito de balanço, como todos os finais e/ou inícios de ano. Para mim, pessoalmente, 2016 foi um ano (muito) bom. Com muita saúde, alegrias, conquistas, descobrimentos e a maior das alegrias na minha vida que custou muitas lágrimas e muitas tristezas nos últimos 4 anos. Mas felizmente, a razão ganhou e a justiça fez-se. Ninguém vai conseguir tirar-me esta alegria, este sentimento de plenitude e sorriso na cara. Duas mortes de pessoas muito próximas tocaram-me muito. E embora a morte seja para mim (ainda) incompreensível, é a única inevitabilidade na vida. No entanto, a forma como viveram e a sua dignidade perante a morte e a forma como a família se lhes dedicou foram uma lição de vida para mim.

Quanto a mortes mediáticas foi o annus horribilis actores: Alan Rickman,  Carrie Fischer, David Bowie, Prince, Leonard Cohen, George Michael, Ivo Pitanguy, Umberto Eco, Ferreira Gullar, Muhammad Ali, Fidel Castro, só para citar alguns.

Costa conseguiu o que ninguém acreditou. Nem os mais optimistas ousaram acreditar. E por mim, tem o meu aplauso. Esta capacidade de diálogo e conseguir consensos entre partidos fora do arco da governação é um feito. Costa, se não conseguir mais nada, ficará na história por isto. Quanto a números, economias e finanças, não percebo nada. Mas tenho muitas dúvidas que o país se tivesse tornado, de repente, num caso de sucesso, dando tudo a todos.

No entanto, acho que o tempo de Passos Coelho terminou. Passos Coelho foi a pessoa errada na hora errada. Ganhou as eleições mas não foi Primeiro-Ministro por muito tempo. Esta nova táctica de jogar está a ser pela primeira vez testada na nossa democracia. Como ganhou mas o parlamento nomeou outro Primeiro-Ministro, mesmo sem culpa alguma, Passos deveria ter feito o que Portas fez: dar o lugar a outro. Teria uma saída pelo seu pé e (pelo menos) aplaudido pelos seus. Mas não, à boa maneira dos teimosos, preferiu acreditar que os ventos soprariam a seu favor e que a história não demoraria muito a dar-lhe razão. Puro engano. Os ventos não sopraram a seu favor, o Presidente Rebelo de Sousa tornou-se (se não) um aliado não se tornou um obstáculo para o governo, o défice parece ter-se cumprido, os feriados voltaram, as pensões aumentaram, os ordenados descongelaram. Tudo para todos. E a hora de Passos sair pela Porta pequena e empurrado não tardará a chegar. Esta é uma lição para quem acha que existe justiça na política. A política, tal como a vida, não é feita de justiça mas de jogadores mais aptos.

Frederico Lourenço ganhou o Prémio Pessoa. Admiro-o principalmente pela suas crónicas. Os homens em maioria , sempre. Mas esta premiação tem um valor especial. É um homem especial, bonito, professor (na mais Clássica e antiga das nossas Universidades, Coimbra), homossexual assumido e casado. Numa altura em que ainda existe gente a ser morta pela sua orientação sexual, exemplos destes contam. E fazem a diferença. O casamento entre todas as pessoas é legal. A co-adopção é legal. As crianças já podem ter dois pais, ou duas mães, ou um pai e uma mãe. A adopção é legal para toda a gente, independentemente do género e estado civil. Há, pois, que mostrá-los, falá-los, generalizá-los. Existe, é comum, é normal.

2017. Olhar em frente. De cabeça erguida. Sem arrependimentos. Sem olhar para trás. Sem palavras que ficam por dizer. Optimismo. Sempre um copo meio cheio. Tudo é um recomeço e não um fim. Sem mágoas e sem rancores. Alegria agora. Agora e amanhã. E depois e depois de amanhã. À espera do melhor que ainda está por vir! (Re)inventar(-me)! Paz no mundo!


“Para isso fomos feitos
Para lembrar e sermos lembrados
Para chorar e fazer chorar (...)”

Vinícius de Moraes

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