quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A noite catártica de Adriana Calcanhotto na Gulbenkian

Este era para ser o concerto que encerraria "Olhos de onda". A tournée começou há aproximadamente dois anos em Lisboa. Um concerto concebido propositadamente para a comemoração dos 20 anos da Culturgest, primeiro palco que Adriana havia pisado em Lisboa. Este concerto na Gulbenkian seria o último. Em Lisboa começou e em Lisboa acabaria. Infelizmente, a mulher de Adriana, Susana de Moraes, faleceu há quase um mês e por esse motivo Adriana teve que adiar os concertos de São Paulo que antecediam o concerto de Lisboa. Não sei qual o motivo, mas a verdade, é que já que o concerto de Lisboa não seria o último, "Olhos de onda" não tem planos de terminar, pelo menos, para já.


Ontem, depois de ter adormecido às 7 da noite e acordado às 2 da manhã, andei a tocar viola até ser dia.... Mas como tinha pequeno-almoço incluído até às 10:30, não tinha como não aproveitar! Acordei, tomei banho em 5 minutos e em 10 estava pronta... O que significa que eram 10:20 quando desci no elevador. A porta do elevador no restaurante abre-se e tenho uma adolescente a fazer um demonstração de karate com direito a som e tudo! Quando a porta se abre ia morrendo com o susto e ela não se conteve com o riso! Ainda não refeita do susto, que me ia provocando um ataque cardíaco ( há duas coisas que eu não aguento: sustos e surpresas!), dirijo-me aos expositores com vários pães... A primeira coisa que vi. Tentei suspirar de alívio! Vou a pegar num prato e exactamente ao meu lado vejo uma pessoa com uns óculos escuros gigantescos! Aí ia morrendo verdadeiramente. Tento disfarçar para não deixar cair o prato. Devo ter dado um ar de malcriada e virei-lhe as costas para fingir que não a reconheci. E para ela não ficar tão incomodada como eu. Peguei no primeiro pão que vi, num pacote de manteiga e numa maçã. Ela continuou na vida dela e eu fui em direcção a uma mesa que me tinham atribuído junto à janela. Não mais me levantei e tiveram a amabilidade de me trazer o café à mesa. Eu felizmente tinha levado um livro que me ocupou o tempo. E a atenção.

Depois de ter comprado uma camisola verdadeira do Benfica para o afilhado  e uma das poucas coisas que o sobrinho mais velho não tem do Cars 2, quase que chegava atrasada ao concerto, que começou exactamente à hora marcada. 

Adriana entrou no palco vestida de cinzento, o traje habitual do espectáculo, a única diferença é que tem uma echarpe. Os cabelos estão presos. No palco somente o banco, a viola, o microfone, uns livros onde coloca o pé direito e uma mesa com uma garrafa de água. O concerto começa como no original com "O nome da cidade". "Maresia" passou de canção final para segunda. Seguiu-se "Inverno". Aqui percebeu-se o quanto estaria a ser difícil este concerto para ela. O dilema, aquilo que ela gosta tanto de fazer, numa cidade que ama, mas num momento tão delicado da vida dela. Enganou-se na letra. Esta letra que António Cicero dedicou a Susana de Moraes. Nem quero imaginar o nó que tinha na garganta. Isso foi tão perceptível nas explicações seguintes de "Para lá", "Sem saída" e "Motivos reais banais", em que uma Adriana entalada, com a voz quase embargada e com a tosse e a voz  (quase) a atraiçoa-la. Até eu me senti nervosa por ela nesses momentos. Uma das canções inéditas foi um poema de Sá-Carneiro que ela musicou para um sarau com a Professora Cleonilde Beraldinelli, especialista em Fernando Pessoa e Doutora Honoris Causa por Coimbra:

Senhora dos olhos lindos,
Por que é que sois tão cruel?
As pombas não têm fel,
E vós sois pomba, senhora...
Tormentos vários, infindos,
Sem dó, me fazeis sofrer...
Morto, vós me qu'reis ver,
Não é verdade, traidora?
Respondei! Ficais calada!
Neste caso, adivinhei...
Pois muito bem! morrerei...
Morrerei, sem ter pesar!...
Minha vida amargurada
Eu vos vou dar, deusa qu'rida...
Antes porém da partida
Dai-me a esmola de um olhar.

Um dos momentos altos da noite foi quando introduziu a canção "Susana" que  ela explicou que escreveu entre 20 ou 21 de Março do ano passado e que tinha falado disso num programa "Alta definição" para um menino, Daniel Oliveira, que é perigo em todos os sentidos. A letra falava de mar, de desertos...

Em tantos concertos que assisti da Adriana Calcanhotto nunca a vi interagir tanto com o público. Parecia um género de exorcizar a dor. Explicou quase todos os poemas. Contou piadas. Com o seu humor tão característico. Sentiu-se que ela estava ali inteira e o público recebeu-a com um silêncio inquietante mas com palmas ensurdecedoras no final de cada música. Adriana de certeza que se sentiu abraçada, especialmente hoje. Aplaudida sempre de pé das vezes que regressou ao palco. Quando lhe pediram no último encore "Fico assim sem você" confessou que ali não podia negar nada e revelou-se surpresa pelos concertos do seu alter-ego, Partimpim, estarem ambos esgotados. Uma noite grande, comovente, inesquecível, apoteótica, catártica, como só algumas têm o privilégio de ser. Uma noite daquelas, nas suas palavras.



Créditos: Catarina Henriques



sábado, 14 de fevereiro de 2015

Um amor de 26 anos

[Para a Susana de Moraes, in memoriam ]
Foi um amor que durou 26 anos. Sucumbiu, apenas, com a morte. Casou-se 7 vezes, isso herdou do pai. Mas um dia um amor fulminou-a e prendeu-a 26 anos. Qual o segredo? Foi o amor. O que mais poderia ser? Encontraram-se. Esse privilégio que só alguns têm na vida. Nas palavras de familiares e amigos, Susana, era uma pessoa fascinante, uma mulher incrível, forte, lutadora, inteligente, culta, bem-humorada, chique, admirável, generosa, amiga, sofisticada, interessante, alegre, incentivadora, conselheira. Uma pessoa única. Qualquer pessoa que a conhecia ficava encantada. Enfrentava tudo com muita força. Uma das irmãs apelidou-a de "nosso farol", "guia" e "matriarca". Como Vinicius escreveu:

"A redação seria a coisa mais triste do mundo, não fosse a presença inesperada de Susana. Susana com seus 13 anos em flor, sua sábia beleza, seu doce e triste olhar castanho e sua perfeita desenvoltura encheram a redação de uma vida inesperada, fazendo-me por alguns instantes esquecer a mesquinhez do cotidiano. Ela entrou nos amplos espaços do meu tédio com passos graciosos de dançarina e ficou a girar por ali, balançando os cabelos longos sobre os ombros firmes de adolescente. Pus-me a adorá-la como nunca dantes, àquela menina a quem dei vida, e nunca senti mais forte, doce, secreto, o elo que a ela me prende. 

Talvez para os outros sua jovem figura trouxesse apenas o encanto uma flor em desabrochamento. Para mim, seu pai, trouxe uma sensação de indizível amor, de um triste, fatal e pacífico amor sem remédio. Revia-a pequenina em meus braços diante de um branco céu crepuscular olhar para o alto anunciando-me que as estrelinhas estavam acordando. Revi-a a me olhar do seu modo sério quando lhe contava histórias, longas histórias por vezes inventadas
 e que nunca eram bastantes para a sua imaginação insone. Revi-a crescendo diante de mim qual planta misteriosa, estirando o caule,
distendendo os ramos numa ânsia saudável de crescer. Agora ali estava ela a dançar sua maravilhosa dança ritual só para mim, nos infinitos espaços do meu silêncio - Susana, uma vida tirada de mim, 
uma menina que eu fiz para amar com a maior doçura do mundo: Susana, flor de agosto, filha minha muito amada, para quem eu cantei meus mais sentidos cantos e sobre cujo pequenino rosto adormecido despetalei as mais lindas pétalas do meu carinho".

Um dos poemas mais bonitos de António Cicero, que é também uma das canções mais bonitas da Adriana Calcanhotto, chama-se "Inverno" e fala do momento inicial, do início da paixão, do atordoamento. E é assim:

No dia em que fui mais feliz
Eu vi um avião 
Se espelhar no seu olhar até sumir

De lá pra cá não sei
Caminho ao longo do canal
Faço longas cartas pra ninguém
E o inverno no Leblon é quase glacial.

Há algo que jamais se esclareceu:
Onde foi exactamente que larguei
Naquele dia mesmo o leão que sempre cavalguei?

Lá mesmo esqueci
Que o destino
Sempre me quis só
No deserto, sem saudades, sem remorsos, só
Sem amarras, barco embriagado ao mar

Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu
Reuniu-se à terra um instante por nós dois
Pouco antes do ocidente se assombrar

"Qual é a resposta?/ Me diga, então/ Qual é a pergunta?" São os primeiros três versos do "Tema de Alice" do filme "Mil e uma" da Susana Moraes e o primeiro destes versos é a pergunta que Alice B. Toklas fez a Gertrude Stein quando esta se encontrava no leito da morte. Quase tão profunda como a declaração da sua mulher, Adriana Calcanhotto, no mesmo dia que morreu: "Fui a mulher mais feliz do mundo nestes 26 anos em que estive com ela. Uma grande mulher, inteligente, engraçada, culta, amiga dos seus amigos, que teve uma vida extraordinária, e que vivia cada segundo como nunca mais. Morreu de mãos dadas comigo. Foi-se o amor da minha vida".

Através da neta mais velha, que tem o meu primeiro nome, e que é uma beldade (nas palavras da avó Susana) conheci um texto lindíssimo que é uma carta de Susana ao pai, Vinicius de Moraes, e que pode se lida aqui.

Há muitas pessoas que passam pela vida sem encontrarem um amor assim. É um privilégio conseguir-se isso!


sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O dia que a Bu fugiu

Nunca imaginei um dia assim. Vivo por antecipação muitos dos dias da minha vida. Imagino cenários, antecipo situações, sofro por antecipação, sonho alegria e tristezas, imagino conversas, tento o simples tão difícil. Mas nunca imaginei que a Bu um dia fugisse. Era uma sexta à tarde e ligaram-me. Fiquei parada sem reacção. Não sabia o que fazer. Não sabia por onde começar. Liguei primeiro para uma amiga e para o meu irmão. Ficaram os dois como a noite. Liguei para um vizinho meu que tem duas cadelas para me aconselhar. A Bu fugiu porque é uma medricas. Estava a passear sem trela e ouviu um barulho grande e fugiu com o medo. Desorientou-se. A bem da verdade, ela nunca é orientada. O tempo que demorou a chegar a Braga foi uma eternidade. Preparei-me psicologicamente para que o pior tivesse acontecido ou fosse acontecer. O meu medo não era que a roubassem ou que se perdesse porque ela tem chip e uma placa com o nome dela é com o meu telemóvel. O meu receio é que fosse atropelada. Com uma rua cheia de trânsito à frente de casa nunca imaginei um bom cenário. Quando cheguei a casa comecei por procurar o Poeta e pedir-lhe que a procurasse e espalhar a notícia. Depois fui à pastelaria. Estava tudo em alerta. Depois fui procurá-la a pé a chamar pelo nome dela. Quando achei que a vi, avistei- a ao longe. Uma coisa pequena a andar junto ao rio. Comecei a gritar o nome dela. E ela imediatamente parou. Não correu, não andou, simplesmente parou. Rodava a cabeça sem sair do lugar. E quando cheguei ao pé dela ela não reagiu com a euforia e o barulho de sempre. A excitação era muita mas não se ouvia apenas se via. Desde esse dia que reparo que está muito mais atenta e que não foge. Desde esse dia que não mais a passeei sem trela.



segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

A tese de doutoramento do RP

[escrito no dia 06/02/2015]
O RP é meu amigo há muitos anos. Fomos colegas de curso e no fim veio pedir-me para lhe arranjar o estágio. Desde o início que é um grande investigador. E desde sempre que é uma grande pessoa. Para o bem e para o mal é muito parecido com o meu irmão. É assim que o sinto, quase um irmão. Uma grande pessoa, um grande amigo, culto, amigo dos seus amigos, interessante. Tem dois grandes defeitos: adia sempre decisões importantes e nunca quer enfrentar os problemas. Como se fosse uma solução, resolve os problemas sem os enfrentar. Aí, desaparece e não responde. É um eterno Peter Pan. Começou o doutoramento oficialmente um ano depois de mim.  Tal como eu, teve a felicidade de crescer e de aprender muito fora de Portugal. Mas ao contrário de mim, trocou Portugal por Itália há 8 anos. Deveria ter acabado o doutoramento em 2010 , um ano depois de mim. Mas arrastou-se. Neste tempo tornou-se ainda melhor investigador. Percebe de cartilagem como eu percebo de livros. Fala disso com uma alegria imensa. Mas tem um problema: detesta escrever. A vida dele é o lab. A vida dele é ter grandes questões e hipóteses e encontrar-lhes soluções. Entretanto, para além de ter plantado árvores, teve dois filhos gémeos lindos. São a razão da vida dele. Eu nunca imaginei o RP pai de filhos, quanto mais de dois, antes de acabar o doutoramento. Esta semana, o RP tinha de entregar a tese. A coisa, talvez, mais difícil da vida dele. Veio para Braga uma semana e trabalhou para esse objectivo. Ficou em minha casa e todos os dias o vi desesperado com saudades dos filhos. O cansaço de não saber o que era dormir mais de 5 horas seguidas há quase um ano não melhorou. Realmente, poderia ter dormido sem interrupções mas os dias e noites longas de trabalho não permitiram. Nunca achei que não seria possível terminar tudo em 5 dias. Afinal, como diz o ditado, a esperança é sempre a última a morrer. Nestes 5 dias trabalhamos como se não houvesse amanhã. Jantamos quase todos os dias em cada do A e da L. Sem a ajuda deles não teria sido possível. O R nunca se queixou do cansaço mas fez todos os dias a pergunta que acompanha os desesperados: "Para que me meti nisto?". O outro queixume era as saudades dos filhos. Em 5 dias, a obra do R, para além de ter tido filhos e ter plantado árvores, saiu. Mas sem antes pregar alguns sustos. Nada pode terminar bem sem a sua dose de suspense. A sua " maçã" não aguentou a pressão e resolveu entrar em coma no último dia. Como se não bastasse, descobrimos que a tese estava escrito num estilode letra que não era o correcto. A L deu conta da bomba. O A. com a imensa paciência dos monges budistas não se questionou e apenas agiu. Formatou a tese toda, conferiu páginas, números, figuras e tabelas. Modificou letras. Conseguiu-o em tempo record. E como última emoção, como o melhor acontece sempre no fim, o RP descobriu hoje, já depois de ter entregue a tese, dois erros no título.... Tudo acaba bem. Se não acabasse bem é porque ainda não tinha acabado. Depois de uma semana de cansaço acumulado em que tivemos de conciliar trabalho e tese, é um enorme alívio chegar a sexta à tarde com tudo pronto. Agora falta a defesa. Uma grande parte do pior está feita. Não falta muito para termos um novo Doutor. 


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