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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A minha lista de 10 (sobre cultura geral)

Medicina era o objectivo desde sempre. Mas não tive o comprometimento e dedicação exclusiva que as notas necessárias para a entrada no curso, à época, exigiam. Então, no secundário, percebi, muito cedo, que não seria uma candidata à altura. E em vez de me tornar uma sonhadora frustrada, desisti à partida e não à chegada. Fiquei sem segundo plano. E tornei-me uma aluna universitária medíocre. Com a permanente ideia de desistir. Entrei no que deu. E ao contrário de muitos, apesar das constantes ideias de desistência, consegui terminar o curso. Deve ser algo genético a capacidade de não ter desistido. Não atribuo a qualquer mérito meu, que dependesse da minha acção voluntária. Então, entre ser médica, ou qualquer outra profissão que incluísse os meus gostos pessoais, sobravam coisas que não davam para viver nem ter qualquer profissão que os pais sonham para os filhos. Esses gostos incluíam muita coisa, de temáticas muito diferentes umas das outras, muitas vezes até indefiníveis e até pouco coincidentes entre si. Então como isso não dava dinheiro, tornei-me cientista (que é uma profissão que inclui segurança, emprego para a vida e total realização pessoal... Not). Tornei-me cientista por obra total do acaso. Por causa apenas de um professor, do seu entusiasmo, da sua juventude e do seu grupo de investigação, e a uma das poucas aulas teóricas a que fui assistir numa tarde de sexta feira (manhãs não eram para mim). Descobri no decorrer destes anos que em vez de me ter tornado numa pessoa frustrada, aprendi o lado bom da investigação. Permitiu-me viajar, conhecer pessoas incríveis, mundos novos, pessoas que tratam de pessoas, doentes que são curados, outros que morrem mas não em vão, museus, restaurantes, arquitectura, paisagens, livros, escritores, cientistas, comidas, artistas, prémios Nobel, malucos, nerds, e as melhores universidades do mundo. Baseado no supra referido, segue-se a minha lista (por ordem cronológica):

1- Lisboa, a cidade mais bonita do mundo. Apaixonei-me por esta cidade quando a visitei pela primeira vez aos 3 anos. Nunca mais me esqueci de como tudo era alto e grande. Foi o impacto da diferença entre Lisboa e Braga (cidade onde nasci) à época. O sol não brilha em nenhuma cidade do mundo como aqui. A luz e as cores de Lisboa dos telhados e janelas dos quadros de Maluda. O clima perfeito. O Tejo, com dimensão de mar. As colinas. A baixa pombalina. As avenidas novas. A Gulbenkian. A cidade do meu querido António Lobo Antunes. Dos caracóis. Da bica. Do Lux. Das intermináveis e loucas noites do Bairro Alto. De Belém, de onde os portugueses saíram à descoberta do novo mundo.

2 - Na adolescência li a obra completa do Eça de Queirós, à qual volto repetidamente de tempos a tempos, e que continua a ser um dos escritores da minha vida.

3 - Amália intérprete/letrista/poeta dos seus poemas e dos grandes poetas de língua portuguesa (Camões, O’Neill, Homem de Melo, Mourão Ferreira, Régio). Amália é talvez a pessoa que mais lamento não ter conhecido pessoalmente. Talvez a mais importante figura da cultura pop  portuguesa do séc XX e mais conhecida no mundo (esta sim, verdadeiramente, em todos os lugares por onde passei). Sou fascinada pela vida dela. Uma menina que nasceu pobre, que não passou da 3ª classe, que tinha um dom “que Deus lhe deu”, que se alimentava das palmas do público, que se instruiu, que ousou cantar grandes poetas, apreciadora de arte, que escolheu um dia morrer em NY (como uma diva, e bem ao jeito da catarse da tragédia grega, felizmente arrependeu-se a tempo), que amava flores (como a minha mãe). Verdadeira autodidacta.

4 - Clara Ferreira Alves que leio desde 95 no Expresso. Com ela tive verdadeiras aulas de cultura geral. Descobri e apaixonei-me por Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Susan Sontag, Graham Green. Fascinei-me pelo Médio Oriente e por desertos. Interessei-me por política e por muitas outras coisas que não cabem nestas linhas. Faz-me sentir que nunca conseguirei ler à velocidade do que (ainda) gostaria de ler e reler. Mas faz-me ter essa meta e, sobretudo, não desistir.

5 - Maria de Sousa, talvez das poucas pessoas que não conheço pessoalmente, mas que mudou a minha vida. Ela que é uma médica que se tornou bióloga e eu que sou uma bióloga que queria ser médica (mas a vida não é tão fácil assim e não deu, lamento). Com ela aprendi que é possível ser-se cientista e gostar de coisas que não têm nada que ver com ciência. Senti-me muito menos só no mundo quando soube que ela gostava de poesia, de tocar piano, de escrever na parte de trás das folhas em que só um lado estava usado. Através dela cheguei a Garcia de Orta, Abel Salazar, António Damásio, Espinoza, Auden, Cummings e por aí vai.

6 – Adriana Calcanhotto – Quase não oiço música porque não consigo fazer mais do que uma coisa ao mesmo tempo. Mas tal como Vinícius e Caetano, Adriana, é muito mais do que uma intérprete. Preferi dá-la como exemplo por ser uma mulher e a mais nova dos três, mais perto, portanto, da minha geração. O que não quer dizer que me interesse menos pelos outros dois. A autobiografia de Caetano é um livro que já li 4 vezes. Aprendi muito sobre o Brasil, sobre a cultura brasileira e sobre o tropicalismo. Quem mais do que Caetano teria a bagagem cultural, o dom e a capacidade para escrever uma canção como Alexandre?”. Uma autêntica lição sobre o Rei da Grécia Antiga.
Adriana, reúne muitos talentos. É uma autodidacta, curiosa, conhecedora, intelectual, moderna e sofisticada. É uma artista multifacetada que desenha e pinta bem, escreve, fala e canta melhor, e dizem que toca bem mais do que melhor. Depois, partilha o mesmo interesse que eu por livros e livrarias.Tal como outros antes, incluíndo Amália, pegou em grandes nomes da poesia brasileira e portuguesa, musicou os seus poemas e deu-os a conhecer através da música (Drummond de Andrade, Ferreira Gullar, Bandeira, António Cicero, Mário de Sá-Carneiro, entre outros). Musicou até uma resposta de Joaquim Pedro de Andrade ao Liberation à pergunta Pourquoi filmez-vous? Há uns anos fiz-lhe a seguinte pergunta: “Apesar das sucessivas comparações a que tem sido sujeita, principalmente com Elis Regina, eu diria que a sua trajectória como excelente compositora assemelha-se muito mais a Vinícius de Moraes pela erudição do vocabulário, pela forma extraordinária como escreve poesia em língua portuguesa e pelo veículo das palavras ser a música. Será que daqui a alguns anos a Adriana será definida como uma grande poeta que fez canções maravilhosas? Era assim que gostaria de ser definida?” Ao que ela respondeu: “Ana, eu detesto comparações (como qualquer artista).  Mas considero um grande elogio a analogia que você faz com Vinícius, a quem amo muito. Na verdade, eu gostaria de ser indefinível, inclassificável, hoje ou daqui a alguns anos”. Interessa-me muito mais o que ela tem a dizer e o que o que escreve do que a melodia das canções, que quase nada entendo. Talvez por achar que a música seja o tipo de arte que menos me interessa.

7 - Houston, a cidade onde fiz quase toda a minha investigação de doutoramento. A cidade improvável. No sul dos Estados Unidos. Perto do México, recheada de mexicanos ilegais, republicana convicta, conservadora, perto da praia mais feia do mundo (Galveston), do centro espacial da NASA onde nasceu a frase "Houston, we have a problem", do maior centro médico do mundo, do mais importante hospital para o tratamento de cancro do mundo (MD Anderson Cancer Center), onde tudo é gigante (principalmente as distâncias e as doses de comida) e onde é impossível andar a pé. No entanto, foi a maior e mais feliz surpresa da minha vida. Andei kms de bicicleta que era o meu meio de transporte, apesar de ter arriscado a vida muitas vezes. E foi lá pela primeira vez que descobri o verdadeiro significado de saudade. Percebi e dei valor a coisas que até aí relativizava: que gostar de flores e apreciar comida bem feita são também formas de arte. Estas duas aprendi com a minha mãe e só à distância é que as compreendi. Descobri a Rothko Chapel e o The crab do Calder. Para atirar mais lenha para a fogueira, descobri o bairro de Montrose, o denominado bairro estranho, um verdadeiro oásis naquela cidade, onde tudo é possível e onde tudo pode acontecer. Durante quase estes 2 anos, a música do ipod e a bicicleta foram as minhas mais presentes companhias. O grande exemplo de como é possível ser-se muito feliz numa cidade feia e com um calor infernal.

8 - Nova Iorque, a cidade que eu escolhi para viver. A cidade onde se pode fazer tudo. A cidade onde tudo é possível. A melhor cidade do mundo para se andar a pé. Onde realizei os sonhos inimagináveis de ver Black Swan pela New York City Ballet, de ver Placido Domingo como maestro de Madama Butterfly no Metropolitan Opera e os vitrais de Chagall. Onde vi a exposição inesquecível Savage Beauty de Alexander Mcqueen  e o quadro The great wave de Hokusai no The Met Museum of Art, onde morei a poucos metros da primeira casa de Susan Sontag e frequentei os lugares que ela frequentou, onde fui ao lançamento de Just Kids e Banga de Patti Smith, onde eu li muito no metro, do maior numero de livrarias por metro quadrado, das inúmeras galerias em Chelsea. Dos fabulosos estúdios do Soho. Ia a Times Square quando me sentia sozinha. Onde vi quase todos os quadros que tinha visto nos livros, onde me apaixonei mais ainda por Hopper. Onde vi as fotos de Annie Leibovitz. E onde assisti duas vezes a Wit, o monólogo magnificamente interpretado por Cinthia Nixon sobre uma professora de literatura inglesa, especialista em Donne, que está com um cancro terminal. Aqui também li quase todas as biografias que encontrei de Marie Curie, a cientista que ganhou dois prémios Nobel de Física (pela descoberta da radiação) e Química (pela descoberta dos elementos químicos radio e polónio) e que se apaixonou por um discípulo que era casado e foi um escândalo. Da tardia descoberta de Brooklyn.

9 - Um eléctrico chamado desejo no Teatro Nacional D. Maria II, encenado por Diogo Infante com a brilhante interpretação de Alexandra Lencastre (de volta ao teatro tantos anos depois) no papel de Blanche DuBois (a mais bela representação desta personagem, de todas as que vi) e Albano Jerónimo no papel de Stanley.

10 – Fundação de Serralves – Não sou grande admiradora do Porto como cidade. Não gosto da cor (permanente) cinza nem da temperatura. Não gosto do interminável síndrome de inferioridade, do bairrismo da cidade pequena e/ou das sucessivas comparações com a capital. No entanto, acho que uma cidade que tem um museu como Serralves e viu nascer Sophia, não precisa de mais nada. Já valeria a pena só por isto.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

João Lobo Antunes

João Lobo Antunes, como diria Pessoa, “tinha o mundo dentro dele”. Foi o primeiro Lobo Antunes que conheci e li. Li “Um modo de ser” no ano em que foi galardoado com o Prémio Pessoa, em 1996. Depois desse, quase todos os livros. Conheci a realidade de NY através dele, e Washington Heights, muito antes de achar que algum dia frequentaria aquelas ruas. Foi com ele que descobri o meu amor por NY. Foi assim que escolhi a universidade de sonho em NY e que achei que seria apenas isso: um sonho. E foi através dele que quis ir viver para lá. Através dele aprendi antes de ser uma new yorker “emprestada” a differença entre a opera e o museu. The Metropolitam Opera e The Metropolitan Museum of Art. A sigla Met. Quando finalmente fui para NY, para Columbia, mostraram-me  a cadeira com o nome dele no Neurological Institute of NY. Através dele apaixonei-me por Edward Hopper, principalmente aquele homem numa noite sob a sombra da luz (Night shadows). E depois disso fui a todos os museus de NY que têm obras do Hopper: Met, Whitney, MoMa e Brooklyn Museum. O americano que mais pintou o quotidiano. Com ele descobri a humanidade que deve existir em todas as profissões tão bem descrita na “Morte de Ivan Ilitch” de Tolstoi. O livro que talvez ele mais citava. O livro que todos os médicos deveriam ler. E o livro que eu mais li e ao qual volto sempre. Com o Professor aprendi que as mãos são a marca do ser humano. Aquilo que talvez mais nos distingue das outras espécies. As mãos, essa parte anatómica que denuncia a nossa idade. Aquela que ninguém consegue fazer regredir os anos. A mão que é o instrumento de trabalho mas que também afaga e consola. O peso da mão. E a beleza e delicadeza que as mãos cirúrgicas têm. Já apreciaram a beleza e a dança das mãos numa neurocirurgia. Os gestos delicados, o detalhe, a leveza? Já apreciaram as mãos de um neurocirurgião? Já pararam para apreciar o quanto umas mãos bonitas são talvez das mais belas partes do corpo humano?

João Lobo Antunes foi sempre um aluno brilhante. Dizem que fazia tudo bem. Tinha qualidades invulgares para um homem só. Escrevia exemplarmente bem, era um acérrimo leitor, apreciador de todas as artes e tinha uma cultura invulgar. Para além de tudo isso, foi o mais brilhante neurocirurgião da sua geração. Como ele disse um dia, aqui é famoso mas foi para NY onde era um “small fish in a little pond”. Há maior banho de humildade do que este? Exaltava como maiores virtudes do ser humano a compaixão, decência e carácter. Conheci, não pessoalmente a sua fama como neurocirurgião. Mas sobre o que posso opinirar é sobre a escrita. Que bem que ele escrevia. Ensaios e memórias, sobretudo. Espero ansiosa pelo registo  das suas memórias a que se dedicou nos últimos tempos.
Morreu em casa como Ivan Ilitch, mas não como ele. Com toda a certeza que rodeado da família, com compaixão, respeito e amor.

Nenhum dos livros que tenho dele estão por ele assinados. Não por falta de oportunidade mas por falta de coragem. Ele para mim estava num pedestal. Transparecia ser tímido, de poucas palavras, reservado, cerimonioso, educadíssimo. Aquilo que se dominaria de um “homem à antiga”. Daqueles que ainda beijam a mão. Um príncipe.

Era sabido que estava doente. Não sabia o quanto nem que fosse tão rápido. Se é verdade que na morte, todos são bons, a gigantesca quantidade de mensagens de pesar e a unanimidade no elogio, emoção  e na  admiração pelo médico e pelo homem é de ressaltar.

A Medicina, a Ciência e a Cultura portuguesa ficam mais pobres. Foi-se um dos grandes intelectuais do país.

Copyright: Correio da manhã
Copyright: The Metropolitan Museum of NY

sábado, 13 de fevereiro de 2016

A surpresa do inesperado

Os sinos das igrejas do centro dão as 6 horas. Chovem cães e gatos. Eu sem um guarda- chuva. Sou só água. Entro na Favorita e lancho rápidamente ao balcão. Subo a rua de S. Marcos. Tenho consulta marcada no oftalmologista. Há muito que adio. Como vejo pior a cada dia, hoje teve que ser. Subo as escadas. Pouso a mochila e tiro o casaco encharcado. À hora marcada entro. A última vez que lá tinha estado foi há 12 anos. As perguntas habituais: "estás cá, agora?", "então, o que tens?". Respondo que não vejo bem, cada vez pior, ao perto e ao longe". E o médico: "estás a ficar velhota". Começamos os exames. Pergunta-me há quanto tempo reparei que comecei a ver mal. Respondo que foi em NY que não conseguia ler os ecrãs de informação do metro. Letras. A aumentarem de tamanho. Não as reconheço. Aumentam. Continuam a aumentar. Tapo um olho. Tapo outro. O tamanho das letras a aumentar. Percebo isso. Mas não as distingo. Cada vez maiores. Percebo a cara de espanto do meu pai. Penso que deva estar intrigado por não conseguir dizer que letras são. Ufa. Distingo-as. Continuo sem distinguir o O, D, C. Também não distingo o F e o P. Passamos para outro aparelho. Tenho de focar uma casa. Pergunto se é normal só ver cores porque não mais consigo ver a casa. Não me responde. Vamos repetir os exames iniciais. "Agora com calma". Diz o médico. Muda-me as lentes, coloca-me uns binóculos. Continuo a fazer muito sacrifício para adivinhar. E continuo com muitas reticências sobre as letras que vejo. Ao fim de muito tempo, pede-me para me sentar em frente da secretária. A cara está séria e preocupada. Percebo a preocupação. E sai-lhe "Não te quero assustar mas o quadro está negro. Não vês nem ao perto nem ao longe. Estás com uma perda de visão brutal". Diz-me que nem deveria conduzir assim. Que devo (ainda) não ter tido um acidente porque sou muito cuidadosa. Que vejo muito muito pouco. Eu, que ainda estava a limpar os olhos das gotas, devo ter paralisado. O médico estava a dizer-me aquilo tudo e de repente comecei a achar que ele estava a falar de outra pessoa. Fala-me da urgência de fazer análises. Que se tem de perceber de onde vem isto. Garante-me que não é dos olhos mas a incerteza não me faz bem. Pergunta-me há quanto tempo fiz análises gerais. Há quanto tempo me doía a cabeça.. Porque não fui lá quando comecei a ver muito mal?...Continuo a não achar que a pessoa de quem ele está a falar não sou eu. Até que me diz: "Sabes Ana, há coisas mais importantes que o trabalho". E, nesse momento, que ainda não tinha começado a digerir a informação, a ficha começou a cair. Começo a ver a minha vida a andar para trás. Deixo de o ouvir. Em vez de me preocupar com a informação que ele debita, só me preocupo com as duas deadlines dos 2 projectos que estão aí. O médico a sugerir e a insinuar possibilidades bastante graves quanto à origem da falta de visão e eu preocupada com a falta de óculos. Afinal, foi para isso que eu lá fui. Diz-me que enquanto não percebermos a origem não há óculos para mim. Com o regresso à realidade de me lembrar (estupidamente) dos projectos, e não da primeira preocupação que deveria ter: comigo! Quando tento digerir o que me acaba de dizer, olho para o meu pai, ao meu lado. Estou mais preocupada com o meu pai por estar a saber da verdade, como eu, e tento perceber-lhe a expressão. Não consigo perceber se está muito preocupado ou se está em choque, como eu. Já não assimilo muito. Já só oiço pedaços de frases."Hoje é sexta mas segunda sem falta...", "se não conseguires liga-me", "falo com (não sei quem) na Clínica de Santa Tecla". Marca-me outra consulta para fazer outros exames. Estou muda. Não reajo. Não questiono. Concordo com tudo. Devo ter mudado de cor. Tenho o estômago embrulhado. Acompanha-nos à porta. A assistente marca a próxima consulta. Percebo (agora) que fica marcada para uma hora em que deveria trabalhar. Lembro-me de o meu pai me perguntar se não é muito cedo, se não pode ser mais tarde... Eu quero encontrar a minha agenda na mochila mas não sei o que procuro. Mudo, para a procura de uma esferográfica num dos bolsos do casaco. A assistente, que deve ter percebido que eu não sabia o que procurava, disse-me que escrevia num cartão. Não me lembro onde pus o cartão. Desci as escadas, com velocidade, sem olhar para trás e sem esperar pelo meu pai. Chego à rua e agradeço estar a chover torrencialmente. Desço a rua apressada com a chuva a cair-me como um chuveiro. O meu pai tenta acompanhar-me. Tenta abrigar-me. Tenta abraçar-me. E eu não quero nada. Sou uma lágrima só. Paro, finalmente, em frente à Igreja de Santa Cruz. Não sei porque choro. O meu pai diz-me para ter calma. Eu que (quase) nunca vacilo. Eu que sou uma muralha. Trocam-se os papéis. Sinto o frio da dúvida. Sinto a impotência perante o inesperado. Não sinto revolta. Mas sinto culpa. Eu que achava que (ainda) era muito nova. O meu cérebro é um turbilhão. Pergunto ao meu pai, repetidamente, se não percebeu a gravidade da situação. E ele só me pergunta porque choro. "Não tenhas medo"e "não vai ser nada" são as frases que me lembro. E hoje percebo porque chorei. Não tenho medo.  Seja o que for. Seja qual for o resultado e o prognóstico. Mas chorei pela surpresa do inesperado. O instante que não controlamos (nunca).

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