Mostrar mensagens com a etiqueta Milly Lacombe. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Milly Lacombe. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

O ano em que morri em NY

Milly Lacombe começa por falar de NY. Uma descrição cinematográfica de quem viveu perto de Union Square, entre a 1st Avenue e a 14th Street, entre o East Village e o Soho. Do pequeno almoço no Jack’s Wife Freda, uma instituição. Das idas a St Mark’s Bookstore. Da sua vida de procrastinação e de proper wife “cuidava dela, da casa e escrevia, e ela completava a nossa renda”. De como era movida pela “felicidade dos ignorantes”. Da rotina de uma new yorker que era freelancer. A vida perfeita que teve um fim. Este é o mote.

O livro divide-se em duas partes: morte e renascimento. A morte chegou “em NY numa manhã ensolarada de sábado”. A pergunta das perguntas, “a mãe de todos os questionamentos: “por que existe alguma coisa em vez de nada?”,  que Caetano adaptou a: “Existirmos: a que será que se destina?”. E o livro é o desenrolar do novelo do nada em que a autora se encontra até à sua reconstrução.

Ficamos a saber que o grande problema da autora era a arrogância e que era a pessoa que deixava e que nunca a que era deixada. Nasceu para ser conquistada e amada: “eu era a mais amada, a mais desejada, a mais cortejada, a mais segura, a que não sentia ciúmes”. Que emendava relacionamentos. E percebe-se  (tão bem) como é que as relações dela duravam tanto. A pessoa que traía e que nunca a que foi traída e provou a dor que isso provoca.

“Evite ter certeza daquilo que você desconfia”. A ficção e os delírios surgem com a ida da mulher para Berlim. Sozinha em casa. Começou a questionar tudo. Perturbada. Maníaca. Chorava muito durante o dia. Angustiada. Começou a ser questionada pela inércia, pela falta de socialização. Estranha. Distante. Sentia alguma coisa diferente.Estava a ficar maluca. Não conseguia (mais) trabalhar.  A desconfiança de estar sempre a olhar para o telefone, o grande inimigo dos tempos modernos, o aparelho que mais lares estraga “deixava o aparelho com a tela sempre para baixo”. A suspeita. Sempre a dúvida. Até ao fim. Passou de uma mulher segura ao oposto. “Você me olha como se eu tivesse morrido”. De pessoa segura, madura e confiante passou a obsessiva. Carente. Sombria. Em simultâneo a ex e melhor amiga foi diagnosticada com cancro.

“Não há amor que sobreviva ao sufocamento... assim como o fogo, o amor precisa de oxigénio para arder”. Transformou-se numa pessoa “sem graça, chata e pobre”. A companheira não a reconhece, não sabe o que quer, não está feliz, está sufocada: “você mudou demais, se trancou nesse apartamento e em sua dor, em seus medos. Sinto saudade de você, da versão de antes, que era alegre, não tinha medos..”.  O que parecia ser uma suspeita, parece transformar-se num facto consumado. Aliado ao problema prático de ter 44 anos, ser incapaz de se sustentar sozinha, sem nenhum dinheiro guardado e “um salário de merda” que se podia resumir em “uma pessoa financeiramente fracassada, moralmente falida e irremediavelmente sozinha”. É assim a primeira parte do livro:“Meus dias se resumiam em esperá-la voltar para casa e imaginar a traição”. Angustiante. Doloroso. Deprimente. Fim.

“Morrer dói, mas renascer é lindo”
A segunda parte do livro é o renascimento. A aventura do descobrimento.  Um retiro, longe da civilização, no meio da Amazónia, na margem do Tapajós, um rio que parece um mar, com um grupo de pessoas (desconhecidas) da esquerda caviar, a comerem  grãos, acaí e tapioca. Agora uma pessoa que não era mais amada, desejada nem cortejada.”Uma pessoa vazia de sentimento”. Havia-se transformado numa pedra. A pessoa que não conseguia ficar longe do telemóvel 10 minutos.  A pessoa que nasceu “para brilhar, ser protagonista, feliz e amada” a dormir numa rede. Todas as pessoas do grupo a incomodavam, principalmente, as que se riam muito sem motivo. Inicia-se no ritual do rapé (planta medicinal dos índios), ela que nunca tinha usado nenhum tipo de droga ilegal. “somente quando experimentamos o nada é que estamos prontos para tudo". Não há nada como bater no fundo para subir às alturas. Ou a frase: “Não há mal que dure sempre nem bem que nunca acabe”. Munida dos dois volumes de Os irmãos Karamazov de Dostoiévski e de uma atitude fechada, arrogante, preconceituosa e julgadora foi baixando a guarda ao longo dos dias. E nesta semana descobre-se e renasce. A pessoa que estava num relacionamento que repetia a dinâmica dos pais. No retiro falam muito de sexo, de relações que não resultaram, de medos, de novos amores, de (in)felicidade, de fraquezas, de inseguranças. Com o passar dos dias foram despindo-se de máscaras e muros, começaram a expor-se em público e a assumir fraquezas. Começaram a permitir-se admitir que sentirem-se amedrontrados, indefesos e desprotegidos não é um defeito. Todos precisamos de afecto, carinho e um colo. Não somos autosuficientes o tempo todo. Afinal, somos algum dia, “apenas crianças que tentam sobreviver e ser felizes neste mundo tão cruel e cheio de expectativas”. E sai do retiro não com mágoa nem raiva da ex (que não abandonou e não foi culpada sozinha) mas com a visão positiva de uma história linda que construíram. Aquilo que se chama reciprocidade e simbiose: amar alguém que a amou de volta.

Só a autora poderá dizer o que é de facto verdade ou não. Aqui tudo parece verdade com um pouco de ficção que não irá além da troca de nomes, número e nome de irmãos e sobrinhos e a morte da mãe. O resto, só ela e as (os) intervenientes directas (os) poderão atestar. Sozinha, pegou em algumas garrafas de vinho, alguns livros e o computador e isolou-se na montanha para escrever. O livro é o resultado da fórmula que a autora encontrou para superar a dor. O melhor do livro é talvez o sentido de humor no meio de tanta dor. Partes do livro são crónicas já publicadas. Textos conhecidos. Não faz diferença para não os conhece.

Como leitora inclui alguns dos grandes que vão de David Foster Wallace, Virginia Woolf, Dostoiévski, Eça de Queirós, Machado de Assis, Proust, Camus, Chomsky, Guimarães Rosa e cita até alguns deles. Para além dos autores que cita e lê, fala de Hopper e do Nighthawks (que é a capa do livro Cenas da vida americana da Clara Ferreira Alves). Hopper que pinta a solidão como ninguém.

Tempos antes de publicar o livro, Milly disse tratar-se de “um romance auto-biográfico, género chamado auto-ficção”.  O começo é difícil, amargo, angustiante, sentimos pena da protagonista (eu incluo ainda a solidariedade com a pessoa que supostamente trai) mas depois tudo acaba em bem, como se de um exorcismo se tratasse. Sem dizer nada de novo, a história não ser original e o argumento ser (apenas) o quotidiano que é a vida, leva-se (sempre) alguma coisa e não causa dano algum.



segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Mara Gabrilli – Depois daquele dia

Milly Lacombe é uma contadora de boas histórias. Sobretudo conhecida pelas suas crónicas mensais na Revista TPM, pelas críticas literárias na Folha de S. Paulo e pelas reportagens/ opiniões como free lancer para os mais diversos jornais brasileiros.  Milly, descreve-se assim, brevemente: “Eu vivo de escrever porque não sei fazer mais nada na vida. Se soubesse, pararia de escrever e ia ganhar algum dinheiro”. Precisa de mais palavras? Viveu 7 anos em LA, voltou para o Brasil, onde se solidificou como escritora e voltou a sair, desta vez, rumo a NY, onde vive. A sua escrita está recheada de detalhes e pormenores, de emoções, de quotidiano, de ironia, de muitas figuras de estilo e muito humor.

Não me lembro exactamente como conheci a escrita da Milly Lacombe mas acho que me fizeram chegar uma das suas (muito bem escritas) crónicas da revista Trip. Quem me conhece bem sabe que eu sou apaixonada por biografias e crónicas!

A biografia de “Mara Gabrilli – Depois daquele dia” foi escrita entre encontros e jantares com a escritora e biografada: “Durante quase cinco anos, que foi o tempo que demorei para escrever o livro, eu fui para casa agradecendo ao universo pela chance de poder contar a história dela, e pedindo força e inspiração para fazer isso da melhor forma possível. É uma história sublime, edificante, espetacular e linda. Eu não podia errar (...) Foi uma tremenda responsabilidade (...) eu quero que a história dela seja conhecida por multidões. É uma história que precisa ser contada, uma história que pode mudar vidas, que pode inspirar e fazer a gente entender o mundo, e aprender a aceitar o ritmo das coisas. A Mara, e a chance de contar sua vida num livro, foi um presente que me deram e pelo qual eu agradeço todos os dias”.

Mas o que tem esta biografia de tão especial: “a história é a de um resgate espetacular, a verdadeira jornada do herói (...) acho que pode interessar a portugueses, irlandeses, americanos, chineses: trata-se de experiência humana universal (...) Uma menina rica e mimada que quebra o pescoço voltando da praia aos 26 anos e imediatamente aceita a nova condição. Depois de anos de reabilitação ela decide se candidatar para tentar ajudar outros que tenham a mesma deficiência mas não o mesmo saldo bancário. Se fosse ficção seria inverossímil, mas o bom é que a realidade não precisa fazer sentido”.

A Milly, que para além de uma excelente escritora, é uma excelente pessoa, enviou-me este livro para ler. Aqui fica a minha opinião, muito aquém do verdadeiro entusiasmo de o ter lido. E esperemos que daqui a pouco alguma editora portuguesa se interesse pela publicação deste livro em Portugal.

O livro começa com a descrição do acidente e tudo se desenrola com a vida de Mara, antes e depois, porque era muito mais do que o acidente. Começa de forma  dramática e  a partir dali o livro vai recuando e adiantando, conjugando passado, presente e futuro, como só a Milly sabe fazer. Quem conhece a escrita de Milly Lacombe reconhece o seu estilo neste livro e principalmente as pitadas de humor.

Com essa história que tinha tudo para ser triste e trágica,  Milly Lacombe mostra-nos o intenso processo de superação e adaptação de Mara. O livro conta o acidente no qual Mara fica tetraplégica. Usa uma forma muito dinâmica repleto de analepses e prolepses. Mistura passado, presente e futuro. Muita verdade, muita coragem, muito exposto e muito despido de preconceitos é como pode ser descrito, de uma forma simplista. Com o decorrer da leitura, Mara parece ser uma super-mulher, que supera obstáculos como se não fosse tetraplégica, com uma vontade de lutar que não parece humana, com um optimismo que não parece real. Mas depois disto, aparecem os defeitos, as discussões, as manias, que chega até a dar raiva. Mas o livro é muito mais do que isto. Mostra que Mara continuou com a sua vida profissional agitada, que manteve os seus relacionamentos, vida sexual e passou a ajudar os outros que não têm as mesmas condições financeiras que ela.

No filme Mar Adentro (baseado em factos reais, realizado pelo espanhol Alejandro Amenábar, em 2004), o personagem de Ramón Sampedro, vivido por Javier Bardem, luta pelo direito à eutanásia depois de uma fractura semelhante à de Mara a ao mergulhar no mar. Mexer apenas a cabeça não é para ele viver. Dois casos semelhantes com atitudes perante a vida tão diferentes.  Mara, não só não desistiu de viver como acha que a vida vale a pena (mesmo só mexendo a cabeça). Desde o acidente não pára mais de se mexer: criou a ONG que ajuda pessoas com dificuldade de mobilidade, candidatou-se a vereadora, foi nomeada secretária municipal e depois deputada federal.


A nossa vida pode mudar de repente, sem aviso prévio, e  radicalmente para pior. Nem todos estamos preparados e nem todos sabemos lidar com isso. Sobretudo, quando esta mudança limita o desempenho físico e actividades quotidianas. Tudo o que aprendemos desde que nascemos deixa de existir. De uma forma minimalista, é disto que se trata esta biografia: reaprender a viver, aceitar e não se revoltar. Ler este livro, não fará mal a ninguém, muito pelo contrário. É um murro no estômago. Depois de lermos este livro não ficamos indiferentes. Fazendo minhas as palavras da Milly, muitos dos relatos deste livro parecem inverosímeis, mas a verdade  “é que a realidade não precisa fazer sentido”.


facebook