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quinta-feira, 9 de novembro de 2017

A minha lista de música, hoje

 “Canção do engate”, António Variações. A minha mãe deve ser uma das maiores fãs do António Variações.  Lembro-me do dia da morte dele, no dia 13 de Junho, dia de Santo António. Tinha 5 anos. Acho que foi a primeira vez que soube o significado de morte: nunca mais voltar, para sempre. E a minha pergunta foi: “Como morreu se está a a cantar?”. Admito muito a história de vida deste homem. Um rural de uma aldeia recôndita perto de Braga, chamada Fiscal. Um incompreendido, um excêntrico, um ET que nasceu antes do tempo e numa terra onde não o entendiam. Um menino da província que não aceitou a sua sorte de ser marceneiro “e andar todo sujo, de ter uma vida normal, casar com uma mulher e ter filhos”. Era, também, homossexual e uma uma das primeiras figuras públicas a morrer de SIDA e que a família,  até hoje 33 anos depois da sua morte, insiste em ocultar e/ou desmentir.

“The man who sold the world”, David Bowie. Podia ser qualquer uma do Bowie mas esta é também uma das versões dos Nirvana que foi outra das bandas da minha adolescência.

“It´s no good”, Depeche Mode e “Sub-16”, GNR .Não sei como é que os CDs ainda existem. Foram os que mais ouvi na minha pré/adolescência.

“Miracle of love”, Eurythmics e “Whiter shade of pale”, Annie Lenox.  É a imagem do fecho das matinees no Club 84 em Braga com aquelas bolas gigantes das discotecas nos anos 80/90.

 “Vapor barato”, Gal Costa com Zeca Baleiro. A letra é de Wally Salomão. Consta-se que Wally Salomão disse a Gal (que acrescentou “Graças a Deus”que não estava no poema): “Gal, dinheiro não rima com Deus”.


"Neighborhood #2 (Laika), Arcade Fire. A primeira vez que os vi em palco, com as cabeças cobertas com capacetes a servirem de bateria, nunca esquecerei.

“The greatest”, Cat Power. Esta música foi-me enviada de madrugada por uma das minhas grandes amigas numa altura que eu estava a panicar para uma apresentação oral que faria em Memphis. (Ainda) achava que havia coisas (profissionais)  pelas quais valia a pena chorar. Hoje não acho. Mas esta música ficou-me para sempre. E ainda hoje a ouço quando preciso de força.

“Fix you”, Coldplay. Num hotel em Shanghai com duas das minhas grandes amigas, no escuro do quarto, iluminado apenas pelas luzes da cidade a panicar antes de uma apresentação oral.


“True faith”, New Order. Ouvi-a muito quando era criança e depois levei-a comigo para Houston. A imagem desta música é o campus de Rice University a alta velocidade de bicicleta.

“Grito”, Amália. Uma pessoa com a 3ª classe foi capaz de escrever: “Sou sombra triste encostada a uma parede”. Eu sou daquelas pessoas que dizia que não gosta de Fado, gosta da Amália. Quando fui fazer o meu doutoramento para Houston uma das minhas playlists no ipod era Amália, que incluía a Amália da voz madura, que muitos acham a pior fase dela mas que para mim é que eu mais gosto.


“Unfinished sympathy”, Massive attack A primeira vez que ouvi esta música ao vivo, num dos maiores festivais de música dos Estados Unidos (Austin City Limits Festival), chorei copiosamente. Fui com um colega e mais quatro desconhecidos a esse festival. Foi dos fins de semana mais felizes da minha vida.  “How can I have a day without a night/ You’re the book the book that I have opened/ And now I´ve got to know I’ve got to know much more (…) The curiousness of your potential kiss/ Has got my mind and body aching (…) Like a soul without a mind/ In a body without a heart/ I’m missing every part”.


“Girl, you’ll be a woman soon”, Urge Overkill. Faz parte da banda sonora de um dos filmes que mais gosto do Tarantino. Nesta música é a voz.

“Tribulations”, LCD Soundsystem. Já fui muito feliz ao som desta música.

“Roads”, Portishead, “Into my arms”, Nick Cave e “Hope there’s someone”, Antony and Jonhsons. Quando quero “curtir uma fossa” e sangrar tudo é o que oiço. Depois, tudo passa.

 “Hung up”, Madonna. Foi-me oferecido num Natal. Perdi as vezes que ouvi o disco e as vezes que dancei esta música. “Time goes by so slowly for those who wait”

“Beijo sem” Adriana Calcanhotto. Hoje escolho esta, outro dia seria outra. Mas a música que mais gosto dela, apesar de a letra ser do Antonio Cicero, é “Inverno”. Qualquer lista que fizesse tinha que ter Adriana Calcanhotto. Não pela qualidade vocal. De facto, a voz dela não é o melhor. Interessa-me muito mais o que se aprende com as letras dela e onde nos leva. As descobertas que se fazem, tal como com o Caetano.

“Nessum Dorma”. Quando escrevo faço-o maioriatariamente em silêncio total. Nas raras excepções só consigo ouvir música clássica e ópera. Todas as óperas que assisti fi-lo porque conhecia as árias. E Nessum dorma que é o final de Turandot de Puccini, de todas as árias, é a minha favorita. 

“Oceano” na versão do Caetano. “Longe de ti  tudo parou/ Ninguém sabe o qu sofri/ Amar é seus deserto e seus temores”(...)”Vem me fazer feliz porque eu te amo” (...)“Esqueço que amar é quase uma dor só”.

“Cajuína”, Caetano Veloso. Caetano sempre. Tem uma música para qualquer estado de espírito. Para mim Caetano é o brasileiro. Pensa bem, escreve bem, fala bem, canta bem. Tanta qualidade num homem só. Podia ser qualquer outra mas hoje escolhi esta “Existirmos: a que será que se destina?” , uma versão da pergunta existencial de Heidegger. Convenhamos que um autor que é capaz de fazer uma canção com a pergunta das perguntas não é pouca coisa. A cena da canção remete para o encontro de Caetano Veloso com o pai de Toquato Neto (amigo e parceiro de Caetano na época da Tropicália que se suicidou no dia seguinte ao seu aniversário) em Teresina, capital do Piauí.

"La chanson d´Hélène", Mísia e Iggy Pop. Sou muito susceptível a vozes, para o bem e para o mal. Esta combinação de duas vozes, tão diferentes, o cantar e o dizer, a melodia e a língua francesa.

 “Hallelujah”, Rufus Wainwright. Apesar de o original ser do Leonard Cohen, prefiro a versão do  Rufus Wainwright. No ano passado fiquei chateada pelo prémio Nobel da Literatura ter sido atribuído ao Bob Dylan. Não por não lhe reconhecer valor literário, isso acho que tem muito. Mas acho que teria sido muito mais justo para o Leonard Cohen. (Mas eu tenho um problema de fundo com o Bob Dylan que é a voz. Não consigo, até hoje, ter aprendido a gostar da voz fanhosa, anasalada, com o sotaque arrastado do Minnesota).

“Lisboa que amanhece” Sérgio Godinho com Caetano Veloso. Um portuense escrever tão bem sobre Lisboa só pode ser amor: “..E já tudo pode ser/Tudo aquilo que parece/ Na Lisboa que amanhece/ O Tejo que reflecte o dia à solta...”. Prefiro a versão com o Caetano. Torna ainda a canção mais bonita. Existe cidade mais bonita no mundo?
“Deusa do amor”, Moreno +2. Depois dos livros de Jorge Amado, esta é a imagem que tenho da Bahia.
 “Perfect day”, Lou Reed Embora a história da canção não seja (tão só) um dia em NY é é esta a visão romântica de um dia de outono em NY.

“Dreamer”, Uh Huh Her. Descobri esta banda em NY que vi ao vivo e ouvi as músicas todas em contínuo durante meses.


“Consegui”, Arthur Nogueira com Fafá de Belém. Uma letra do António Cicero dedicada a Wally Salomão. Ouço em loop há semanas. 

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Dessa vez

Tarde amena, sol, céu mais ou menos azul turquesa, leve brisa. Coimbra lá fora e calçadas pisadas por estudantes que carregam as suas pastas e livros, muitos livros nos braços. Nesta cidade dos estudantes e doutores já ninguém está de capa. Agora, o tempo é de estudar porque aqui a fama é de passar (apenas) quem souber.

Só existem os registos da memória de uma tarde de comida baiana que incluiu acarajé, abará e  vatapá regado com Quinta do Carmo branco. Os sabores e ingredientes fortíssimos da Bahia provaram não causar mal nenhum. O som não era baiano. Estes baianos de São Salvador não mostraram saber sambar, nem balançar. Não têm pulseira de ouro. Mas têm fita do Senhor do Bonfim, brinco de ouro, um jeitinho que Deus deu e graça como ninguém.

O cenário será os jardins onde (também) aconteceu uma das mais belas histórias de amor em Portugal (Pedro e Inês). Camões eternizou-a num dos seus cantos d’ Os Lusíadas. E está inscrito junto à Fonte dos Amores, de onde brotam as lágrimas e o sangue de Inês, até que o tempo e a água o apaguem.

A noite cai em Coimbra, tardia como todas perto do solstício. No anfiteatro da Colina de Camões na Quinta das Lágrimas, a lua aparece. Ao fundo, muito ao fundo, vislumbra-se a Universidade iluminada. Hoje não é uma lição. Hoje é apenas um concerto, Dessa vez. A cantora hoje será apenas uma cantora e uma performer. No máximo ousará tocar o seu novo instrumento, cortar o seu mais recente livro com as suas letras reunidas e fará uma leitura de um poema da Adília Lopes. Para minha tristeza, não interpretará Poética do eremita. Mas mostrando a sua generosidade, e que os artistas não estão (apenas) enclausurados no seu mundo, e estão abertos a ele, acederá a um pedido de cantar Seu pensamento (pedidos funcionam “só se eu souber e puder atender”).

não é o conhaque 
nem a lua
mas o vinho
mas as promessas 
que me movem como o diabo
Sarah Cohen

Aparece numa pontualidade britânica, sem o jeitinho brasileiro e português do famoso atraso. Dizem que chega sempre antes da hora. O traje é o mesmo vestido longo de veludo azul marinho Gilda Midani do espectáculo Das Rosas. Neste caso, acrescentou-lhe um cachecol da mesma cor.  Começa e nós ainda não nos sentámos. Na primeira fila está o Ministro da Cultura, o Presidente da Câmara e o Professor João Caraça. Temos um lago, que torna o cenário ainda mais bonito, a separar-nos do palco. A primeira música é Esquadros uma daquelas que toda a gente conhece e que um dia um produtor musical surpreendido pelo título, atreveu-se a perguntar: “Você acha mesmo que uma canção chamada ES-QUA-DROS vai tocar no rádio?”.

No concerto incluiu: Vim pra verFado Tropical, um poema musicado de Martim Codax, cantou D. Dinis e Negro amor. A pedido do Miguel Júdice cantou Nature Boy que termina com os magníficos versos:  "the greatest thing you'll ever learn, is just to love and be loved in return".

Cantou as (quase inéditas): Era pra ser "Era pra ser canção de amor / Era o amor em versos / ... / Era pra poder ficar eternamente no presente / O amor soprou de outro lugar / Pra derrubar o que houvesse pela frente / Tenho que te falar / Essa canção não fala mais da gente" cantada por Maria Bethânia e Não demora.

Para mim, Paramgolé Pamplona, tocado assim fez lembrar-me o primeiro concerto que vi da Adriana há 16 anos.  Desta vez, teve grande ideia de colocar a peça do próprio Hélio Oiticica em palco, o parangolé "que você mesmo faz". Um adolescente vestiu um dos parangolés de cor branca, mas mostrou-se pouco feliz porque foi parco a  mexer-se, quanto mais dançar. Feito este reparo, tudo foi fenomenal. A letra, a música simples, a ideia. “O parangolé pamplona você mesmo faz... Com um retângulo de pano de uma cor só/ E é só dançar/ E é só deixar a cor tomar conta do ar... Para o delírio porta aberta / Pleno ar/ Puro hélio...”.  Actualmente, encontra-se em exibição do Hélio Oitica no Whitney em NY: To organize the delirium (até 1 Outubro). Quem puder não perca.

Não esqueceu os sucessos Metade, Esquadros, Mais feliz, Sem saída e Devolva-me. Ao contrário de nas aulas, neste concerto, o último em Coimbra, não cantou a mais bonita do grande poeta, filósofo (e seiu amigo), António Cicero, Inverno.

Terminou com Vambora. E no encore não se esqueceu de  Fico Assim sem você, com a batida electrónica a lembrar o original de Domenico Lancellotti, e até mostrou que sabe (também) dançar.

E a cantora, desta vez a Professora e Embaixadora da Universidade de Coimbra, despede-se da cidade para a qual foi escolhida e aceitou viver por uns tempos. Sem lágrimas, levando as lições como companhia e o significado de saudade, desta que é a capital do amor em Portugal: “ Não permita Deus que eu morra sem que eu volte para cá”. Como “Foi Coimbra que me escolheu e se Coimbra me quiser...”. Esperemos que volte, sempre.



segunda-feira, 10 de julho de 2017

A última lição

Entra de óculos escuros numa sala totalmente escura. Ninguém percebe a razão. Ao contrário da primeira lição não entra com a capa de Doutora nem parece formal. Vem de t-shirt preta da Faculdade de Letras e o que parecem, ao longe, umas All Star. Nunca em nenhuma das aulas se apresentou tão informal. Quem a acompanha no palco está, igualmente, de negro. Num primeiro momento, pensei haver um significado para a escolha da cor. A representação da tristeza da última lição. O começo da saudade. A aula veio a mostrar-se totalmente diferente das anteriores. Mais curta. Sem intervalo. Mais canções. Menos palavras ditas. Menos preparação. Desta vez, não houve ensaiados e longos agradecimentos, com a pompa dos anteriores. Agradeceu a uma pessoa em particular, responsável pelas sapatilhas personalizava que calçava. Uma pintora que não pintava e que voltou a pintar por causa das suas aulas. Por isso, nas suas palavras, a sua missão já estava cumprida.

Está de luto pela tragédia "das queimadas". "Isso não pode ser pior a cada ano que passa". [O ser humano acha que controla tudo. Que todas as suas acções são inconsequentes. Há (até) um Presidente que considera o aquecimento global uma piada, um mito, uma invenção. E esta tragédia mostra, como tantas outras, que o ser humano nunca ganha uma luta contra a revolta da natureza. Como no Moby Dick, o Homem é sempre o elo mais fraco perante a grandeza do mais forte].

Nesta última lição, Adriana assumiu (mais) o papel de cantora em vez de professora ou leitora. Desta vez o palco era um palco não um estrado. Não havia uma secretaria, um computador ou um candeeiro, três dos objectos que a acompanharam em todas as outras aulas. Mas aquilo que poderia não fazer sentido nenhum, dada a desorganização inata, nas suas palavras, que desta vez foi mesmo visível, correu muito bem. A capacidade de improviso perante a pouca preparação desta aula mostrou uma das suas capacidades maiores. Sem ensaio. Sem treino. Sem preparo. Empírica. "No osso". Simples. E curta, como a vida. E mesmo assim, não desiludiu. Conseguiu prender a atenção das (tão poucas) pessoas que não compunham o TAGV. Maioritariamente brasileiros, claro. Tinha na plateia, nas primeiras filas, a autora da do texto sobre as rosas que se sacrificam pelo vinho. [Na aula anterior lerá um texto sobre como as rosas eram usadas para serem atacadas pelas pragas para que estas não atacassem o vinho].

Esta lição que tinha como tema Trobar Nova era supostamente para abordar poetas e/ou compositores contemporâneos. Começou por António Cicero, que nunca foi esquecido na maioria das aulas. Leu um poema. Tocou na questão da poesia e filosofia de Cicero (que dá nome a um dos livros). E deu a resposta de Cicero à pergunta "o que é ser poeta e filósofo ao mesmo tempo?": "Depende o que você quer dizer ao mesmo tempo".

Seguiram-se os poetas e as suas musas. E do tempo produtivo que tem passado em Coimbra, onde tem composto e musicado algumas músicas. Leu de forma performática, acompanhada pela guitarra de Gabriel Musak, um poema de Adília Lopes e no final arrancou devagar e sofridamente páginas de um livro.


A minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
cantaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou cortar-te a língua
para aprender a cantar

a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra

Contou a história de como reencontrou o músico brasileiro Gabriel Musak em Lisboa. (Cujo nome verdadeiro é Gabriel Homem mas que deixou de usar o sobrenome porque o homem está em baixo). E que quando o questionou sobre o que estava cá a fazer, ele respondeu: "Vim pra ver". Para ela essa frase foi tão inesperada é tão impactante que voltou para o hotel e compôs uma música. De facto, a canção foi conseguida.

Vim pra ver
Quando vi, vim pra ver
Dei por mim
Tava aqui, vim te ver
Faço o que?
Você não sabe o que me cabe
No silêncio, dor
No escuro, dor
No espelho, dor
Doi a felicidade
Mas não repare
Mas não se iluda
É que não se usa
Refrão sem Musa(k)

Seguiu-se a canção medieval do trovador galego Martín Codax:
"Quantas sabedes amar amado

treides comig’a lo mar levado

e banhar-nos-emos nas ondas!"

Falou da recente visita à Bulgária, onde descobriu telenovelas dobradas em búlgaro e onde a palavra música significa o mesmo. Tocou a canção Mentiras com a referência: "as novelas acabam mas as músicas não".

Cantou o poema Mortal loucura de Gregório de Matos, dizem que o maior poeta barroco brasileiro. Um poeta também conhecido como “Boca do Inferno” e que “influenciou muito o mau comportamento de muita gente no Brasil.


Na oração, que desaterra … a terra,

Quer Deus que a quem está o cuidado … dado,
Pregue que a vida é emprestado … estado,
Mistérios mil que desenterra … enterra
.
Quem não cuida de si, que é terra, … erra,
Que o alto Rei, por afamado … amado,
É quem lhe assiste ao desvelado … lado,
Da morte ao ar não desaferra, … aferra.

Quem do mundo a mortal loucura … cura,

A vontade de Deus sagrada … agrada
Firmar-lhe a vida em atadura … dura.

O voz zelosa, que dobrada … brada,

Já sei que a flor da formosura, … usura,
Será no fim dessa jornada … nada.

Seguiu-se Fanatismo de Florbela Espanca musicada e cantada por Fagner e que se tornou um sucesso no Brasil.

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida

Meus olhos andam cegos de te ver !
Não és sequer a razão do meu viver, 
Pois que tu és já toda a minha vida !

Não vejo nada assim enlouquecida ...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida !

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa ..."
Quando me dizem isto, toda a graça 
Duma boca divina fala em mim !

E, olhos postos em ti, digo de rastros :
"Ah ! Podem voar mundos, morrer astros, 
Que tu és como Deus : Princípio e Fim ! ..."

Elogiou a paciência de quem estava naquela sala para a ver e ouvi-la com o dia lindo que estava lá fora. Para último deixou a tradução da canção de Bob Dylan, o Nobel de Literatura, Negro amor. E como a memória lhe falhara e alguém na plateia mostrava saber de cor a música desafiou-o dizendo: “O que você sabe para me ajudar?”.

Desta vez, não houve saudades (ainda) visíveis na despedida, nem choro, nem palavras mais ou menos comovidas. Foi uma despedida como as outras, talvez a mostrar que a Professora/cantora não gosta, de facto, de despedidas. Alguém na plateia falou a capella do significado destas aulas e do quão revolucionárias foram para quem as assistiu e para a Universidade de Coimbra, instituição centenária. Ofereceu-lhe, por fim, uma rosa e um cravo vermelhos.





sexta-feira, 24 de março de 2017

Mísia e as palavras – Poetas e cantautores

Mísia elegantemente vestida com um vestido preto. Sobe ao palco e senta-se numa mesa. Cabelo impecavelmente penteado. Os anos parecem não passar por ela. Começa por agradecer à directora do Museu do Fado pelo convite para esta residência artística. Apelida-a de conversas com o público, com pessoas que não a conheciam ou para pessoas que acompanham o trabalho mas que querem conhecê-la melhor. Enaltece a plateia, o público, como lhe chama. Esse público, e essa interacção é que fazem que cada concerto seja diferente. Realça que nesta conversa não falará sobre a história nem sobre a evolução do fado. Considera que há gente muito mais preparada, muitos musicólogos e muitas fadistas, como por exemplo, a Aldina Duarte que dominam o assunto. Neste fim de tarde foi convidada  “para falar de mim” o que é “estranho e constrangedor” nas palavras da própria.

Nestes 25 anos de carreira profissional considera que o corpo principal do seu trabalho foi a colaboração e interacção directa com os escritores, poetas e compositores. Considera um privilégio ter poemas que foram e são escritos especialmente para a sua voz. Contou a experiência de, antes de cantar profissionalmente, ter tido 4 anos de aprendizagem numa casa de fado onde cantava a Beatriz da Conceição – “a melhor professora que podia ter, cantava com uma verticalidade, aquelas costas eram um fio de azeite... foi um grande exemplo para mim, como ela tratava as letras, uma pessoa que não teve grande instrução académica, tinha uma dicção inteligente, não fazia voltinhas, não se tratava de fazer circo, nem performance, tratava-se de pôr cá fora o que estava a sentir”.

Quando começou em 1991 o fado não estava na moda, não tinha grande prestígio cultural nem comercial e não vendia. A excepção, segundo Mísia, era a grande Amália – “a maior fadista de todos os tempos, para mim”. Concordo absolutamente que Amália foi e é a maior de todas. Não só fadista mas também intérprete e poetisa. Mas não nos podemos esquecer como Amália após a revolução de Abril foi (quase) esquecida e ostracizada. Honra seja feita a Mário Soares que a homenageou nos finais dos anos 80 nos apoteóticos concertos do Coliseu. Isso devia ter sido um grande bálsamo para ela que como dizia “nasceu para ser triste” e que no fado Grito de despedida escreveu: “...que ao fim do além da vida/ do que já fui tenho sede/ sou sombra triste/ encostada a uma parede...”.  O fado, em geral, estava ainda com a marca do estigma do Estado Novo. No início dos anos 90, quando Mísia dizia que queria cantar fado com aquela imagem cosmopolita – de mini-saia, argolas enorme e cabelo à Beatriz Costa – as pessoas diziam-lhe para cantar outra coisa. Mas ela foi perseverante e teimosa e achou que o segredo era ter grandes nomes da literatura portuguesa a escreverem para o fado. Sem falsas modésticas (porque a modéstia fica para quem dela precisa) referiu que foi a primeira pessoa que convidou Jorge Palma, Sérgio Godinho, Vitorino , entre outros, a escreverem para fado. Aos grandes poetas, escritores e compositores deve o repertório que tem. Tem como privilégio e uma das maiores satisfações pessoais ter um poema, o único poema que se conhece, de Agustina Bessa Luís – “essa grande escritora do norte” [e que tão mal tem sido tratada pela sua editora que resolveu tirar os seus livros de catálogo e rescindir o contrato por falta de vendas. É no que dá quando a arte deixa de ser um gosto e um prazer e passa a ser números. O capitalismo no seu melhor. Agustina, pelo que foi, pelo que é, não merecia um tratamento assim. Mas este país tem uma memória tão curta]. Mísia, antes de cantar o poema de Agustina, desculpa-se pela “bruta laringite”. Disse que não seria perfeito mas que seria muito sentido. Que beleza tamanha. Mísia a cantar é de uma verticalidade impressionante, como a “mestre” Beatriz da Conceição. Recta, hirta, com a cabeça a apontar para o alto, olhos fechados, parece (até) mais alta. Tem uma voz segura, imponente mesmo estando doente. Se não dissesse que estava com uma laringite eu não adivinharia.

Voltou, uma vez mais, a enaltecer a importância e a generosidade dos “seus” poetas, escritores e compositores em usar as palavras deles. Falou de um episódio, numa tournée nos EUA, quando estava a dar uma série de entrevistas e era difícil explicar-lhes a importância dos grandes escreverem para o fado: “Era como se o Hemingway escrevesse para country music”. Nomeou, individualmente, cada autor que para ela escreveu: Agustina, Lídia Jorge, Hélia Correia, José Luís Peixoto, Vasco Graça Moura, Paulo José Miranda, Mário Cláudio e Saramago (acho que se esqueceu do Tiago Torres da Silva). Explicou que cantou António Lobo Antunes mas que este não escreveu especificamente para ela, mas para Vitorino. Os poemas que não entraram no trabalho de Vitorino foram cantados por Mísia. É esta a verdade da história. “Saramago é uma pessoa à parte. Gostava muito dele como pessoa e como escritor. Ia começar a trabalhar com ele num projecto muito muito importante, que quero ainda algum dia fazer. Na altura em que nos deixou e o projecto ficou orfão”. Todas essas pessoas não tiveram medo de emprestar as suas palavras para uma fadista, como a própria de autointitula, outsider, alternativa, na margem. Vasco Graça Moura fez 90% das letras de um disco que era inspirado nas músicas de Carlos Paredes. Nos anos em que esteve a viver em Barcelona, ouvia Amália e Carlos Paredes. “Não deixava qualquer dúvida que eu era mesmo daqui. Mesmo sendo filha de mãe espanhola. Tinha mesmo que voltar”. Vasco Graça Moura tinha uma grande intuição, erudição, ele sabia música, sabia muito bem onde deviam estar as tónicas das palavras.

Outra das poetisas a quem recorreu foi Amália Rodrigues, um caso raro de muitos talentos reunidos na mesma pessoa. Uma inteligência a cantar. Não apenas a voz miraculada. “A voz é uma coisa que se nasce com ela. O que se faz com ela é que é importante. Imaginem a Celine Dion” – disse entre risos.  Referiu também a Amélia Muge, tendo sido a primeira pessoa a pedir-lhe uma música. E a partir daí tornou-se uma figura incontornável do fado. Não se esqueceu do episódio de o Vitorino aceitar escrever “para uma louca” após ter saído da EMI-Valentim de Carvalho. O facto de ter tido sempre grandes autores associados à sua música fez muitas vezes pessoas quererem aprender português e conhecer os poetas que ela canta. “Metade Almodovar e metade Manuel de Oliveira”. A participação de todos estes autores no repertório de Mísia elevou o nível do seu trabalho.

Cantou Ciúmes de um coração operário um poema que Vitorino escreveu em 1992 que era o verdadeiro “novo fado”. E depois o poema de Fernando Pessoa Autopsicografia com o fado Meia-noite. Apresentou os músicos “que tornam possível que este momento esteja a acontecer”: André Dias na guitarra portuguesa (um músico da nova geração que “tem as pestanas mais bonitas que já vi”), Didi na viola e Luís Cunha no violino. Na primeira fila estava Mário Pacheco e Sandra Correia. Alguns amigos que vêm de fora ainda os leva ao Clube do Fado

Perguntou à plateia as horas e às 7:45, au point, senta-se sempre. Arrancou mais gargalhadas. “Estava preocupada por não ter aqui um relógio e ia passar a hora de eu me sentar”. No início quando actuava, cantava e ia embora e perguntava aos amigos “Notou-se muito que sou filha de mãe espanhola?”. Somente pelo pânico de acharem que não era uma verdadeira fadista. Hoje, não se preocupa mais, porque quem não a acha uma verdadeira fadista não importa o que ela faça.

O melhor deixa-se para o fim. Apresentou a convidada como sendo do seu coração. Convidada especial, também, do Artur (um dos gatos de Mísia). Já colaboraram muito. Já escreveu um poema para um dos discos da Mísia. Será a convidada no espectáculo de Mísia no CCB no dia 19 de Maio. “É com imenso carinho, ternura e admiração que eu peço à Adriana Calcanhotto para se juntar a nós”. Adriana que assistia na primeira fila, subiu ao palco casual chic de óculos, com um casacão de lã cinzento, calças de ganga, sapatos oxford camel e camisa aos quadrados de flanela cor de vinho e branco. Sentou-se. A viola não parecia ser a dela. Ou pelo menos, não é a que tem usado nos últimos concertos ou em Coimbra. Usou a piada do costume “passamos metade do tempo a afinar o instrumento e a outra metade a tocar com ele desafinado”. Usou o iphone para o afinar. Enquanto afinava foi explicando que não tem tocado e que adorou o convite para tocar. Disse que aprendeu “horrores com esta mulher” sobre fado e sobre a possibilidade de pegar num fado tradicional e colocar outro poema. Falou de ter ficado escandalizada quando há uns tempos atrás lhe disseram que quando Amália cantou Camões foi um escândalo. Mas considera que isso faz sentido, quando ainda há quem fique escandalizado pelo Bob Dylan ter ganho o Nobel da Literatura. “Apesar de a poesia existir antes da escrita”, citando o exemplo da Ilíada de Homero que seria para ser transmitida oralmente. Depois, falou do poeta com o qual "tem mais intimidade, não o que gosta mais" - Mário de Sá-Carneiro. E cantou a lindíssima Senhora dos olhos lindos (que para mim é um fado). 

Quando Adriana se juntou a Mísia na mesa foi recebida com um “Agora é um momento muito importante”: um prato de bolinhos de bacalhau. E Adriana às gargalhadas juntamente com o público. A Adriana em todos os concertos que sabe que a Mísia está ou quando lhe perguntam como conheceu a Mísia ela conta esta história. “Conta você. Eu gosto quando ela conta me imitando”. A Mísia tinha um namorado que era “um erro de casting” e por causa dele conheceu a Adriana. Quando chegou a Portugal fez o que todos os brasileiros fazem quando chegam ao hotel: ligar a tv ("fazia", corrigiu imediatamente Adriana, pretérito imperfeito, não mais). E viu um grande close up da Mísia a dizer "coisas insensatas". Ficou impressionadíssima com aquilo. E aí perguntou ao “erro de casting” quem era aquela cantora. E uma das características do erro de casting é que ele nunca assumia nada e disse apenas “Ah, eu conheço” (não disse que era namorado da Mísia). E aí combinaram ir ao Clube de Fado e a Mísia cantou para a Adriana. Como não se lembra nunca de almoçar ou jantar e como não tinha jantado pediu dois bolinhos de bacalhau porque era uma coisa fácil de comer. Aí comeu um bolinho de bacalhau e foi cantar. Quando regressou à mesa comeu o outro e a Adriana disse: “O segundo ela mereceu”. Esta conversa mostrou o humor e a cumplicidade destas duas amigas que são também grandes artistas mas que aqui estavam como em casa. “Quando ela canta me faz chorar e quando não está cantando faz-me chorar de rir”.

Mísia, ao contrário do que aparenta não é distante nem altiva. Tem um humor fenomenal. Tem em comum com  Adriana o humor, a paixão pelos animais e o gosto pela polenta frita de Porto Alegre. Adriana referiu que grandes poetas partilham deste gosto pelos animais, por ex, Alexandre O’Neill, “poeta fetiche de Amalia”- como lhe chamou, que escreveu sobre a pobreza da condição humana a partir dos animais. MÍísia pediu a Adriana para cantar outro tema, do mesmo Mário de Sá-Carneiro. Falou do restaurante Petit Riche que frequentava em Paris, do qual era assíduo. Adriana aproveitou para falar que Mário de Sá-Carneiro estudou Direito em Coimbra, obrigado pelo pai. Nesses 3 meses ele viveu num quarto (que deveria ser uma pensão e não um hotel). Adriana conta que quando foi convidada para passar o semestre em Coimbra pediu: E se eu ficasse no quarto do Mário de Sá-Carneiro?”. E que toda a gente a desaconselhou vivamente e a demoveram daquela ideia. “Podemos levá-la lá para ver o quarto mas ficar lá não pode”. E ela continuava “Mas porque não pode?”. “Porque aquele hotel paga-se por hora!”. Terminou com chave de ouro com O outro.

Soube a tão pouco. Não se percebeu a passagem do tempo. A plateia estava cheia. E atrás de mim estava o temido Nuno Pacheco, crítico de música do Público. Para quem for de Lisboa estas conversas são imperdíveis. Vale por tudo. Vale pela inteligência, pelo humor, pela conversa, pelas histórias por contar da persona Mísia. A diva, essa, voltaremos em breve a protagonizar Geosefine no TAGV e a interpretar os seus poetas no palco do CCB.

Copyright: Mariola Landowska

Copyright: Mariola Landowska

 P.S. Eu sei que as fotos não são o melhor mas foram as únicas que encontrei. Não tirei fotografias. Acho que a memória deve guardar tudo para sempre. A Adriana costuma dizer que "as pessoas fotografam mais quando gostam mais da música". Eu não, lamento, não consigo fazer (bem) duas coisas ao mesmo tempo. Perderia o momento único da interpretação e a fotografia ficaria, com certeza, péssima. 

quinta-feira, 2 de março de 2017

Eu ando pelo mundo, a primeira lição de Adriana Calcanhotto

Uma formação na área dos estudos artísticos, na área dos estudos brasileiros vindo do exterior da Universidade. Muitos dos enchiam a plateia não eram alunos de Letras e nem da Universidade de Coimbra A formação humanística e artística é essencial para a formação integral de qualquer ser humano. O reitor que mais tempo exerceu essa função, durante 31 anos, nasceu no Brasil. A honra de ser tratada por “Professora” pelo Reitor da Universidade de Coimbra.

E ela, não desiludiu. Apresentou-se, cerimoniosamente, de capa de Lente às costas. Começou por agradecer a todos e a cada um pela honra de estar na Universidade de Coimbra, como disse o Magnifíco Reitor  é a “maior Universidade brasileira fora do Brasil”. A primeira aula da “Professora” Adriana Calcanhotto foi a falar sobre ela própria. A aula sobre a sua trajectória que classificou como “a situação mais difícil de toda a minha vida”. Uma coisa que disse não estar habituada, mas para quem a conhece e as suas entrevistas, poucas novidades ou revelações foram ditas.



Nasceu em 65, em plena ditadura no Brasil. Neta, filha e sobrinha de professoras. Não olha para trás. Tem péssima memória, “uma gaffe ambulante”. Nasceu no extremo sul do Brasil, Porto Alegre. Os pais conheceram-se em Buenos Aires e ela nasceu meio ano depois disso. Pais muito curiosos. Os pais ouviam música depois de jantar: pink Floyd, Piazzola, Miles Davis. A mãe ouvia muita música instrumental e o pai o que queria descobrir. Eram muito diferentes. O pai muito calmo e a mãe o oposto, “speed”. Tem um irmão 3 anos mais novo. Ouvia rádio com as “babás”. Ouviam jovem guarda no rádio. Um dia o pai chegou a casa mais cedo e ficou muito zangando, apavorado a achar que a culpa era dele. A música que ela guardou na memória desse tempo foi Devolva-me. Esta foi a primeira das músicas que cantou nessa tarde. Pediu “paciência e compaixão” se acaso não a soubesse tocá-la bem porque ultimamente anda “só lendo”.

Aos 6 anos, a avó ofereceu-lhe um violão de nylon. Quando lhe perguntou o que faria com aquilo a avó respondeu: “aulas”. O professor era apaixonado por João Donato e Tom Jobim, ou seja, apaixonado por piano. “As teclas são outro mundo”. Para a mão de uma criança de 6 anos aquilo era uma tortura. Abandonou o instrumento para mais tarde voltar. Uns anos mais tarde retoma o violão e faz por impulso uma safra de 30 canções expressando a sua infelicidade pela separação dos pais.

Uma tia, professora de língua portuguesa, ofereceu-lhe o livro de Clarice Lispector A mulher que matou os peixes. Este livro mudou-lhe a vida para todo o sempre. Sentiu-se uma leitora e não uma criança. Este livro, por mais que se leia, e por mais vezes que se volte a ele, parecerá a cada vez, novo e diferente. Sempre quis aprender a ler porque achava que essa era a porta para o mundo adulto. Queria ser adulta para não cumprir ordens. Aprendeu a ler sozinha. Acreditava que o mundo dos adultos era diferente do das crianças, para melhor.

Falou da sesta da mãe que era preciosa e da técnica magnífica que desenvolveu para lavar louça, tarefa que adora. Ouvia rádio baixinho. E nesse tempo começou a ouvir outras coisas diferentes das que ouvia com as babás. Vinícius de Moraes, por exemplo. E achou aquilo diferente, não superior, mas diferente e pensou “Eu daria a minha vida para ver isso acontecer”. Nessa época ouviu o poema Traduzir-se de Ferreira Gullar cantado por Fagner. Foi a música que se seguiu. Ferreira Gullar, de quem veio a tornar-se amiga, nasceu em São Luís do Maranhão. Sempre quis ser um poeta do povo, um poeta acessível. Aprendeu unicamente português. Para ele, numa terra longínqua, distante dos grandes centros urbanos, tudo chegava depois, demasiado tarde. E por isso, para ele, a poesia era coisa de poetas mortos. Durante muito tempo ele achou que os poetas não eram pessoa vivas. Augusto de Campos, contemporâneo de Ferreira Gullar, era o oposto. Erudito, tradutor dos grandes clássicos em várias línguas, cosmopolita de São Paulo. Adriana ouviu um poema de John Donne traduzido por Augusto de Campos e musicado por Péricles Cavalcanti na voz de Simone, chamado Elegia (que  cantou à cappella). Esta foi uma época áurea no Brasil onde era possível ouvir alta poesia através da música popular.

A mãe ofereceu-lhe uma assinatura mensal do “O círculo do livro” e através disso conheceu Oswald de Andrade, o poeta modernista brasileiro da geração de 22. Um poeta irónico, antropofágico, irrequieto, que não usava pontuação, que queria romper com as convenções, que não gostava da ideia do Brasil ser uma colónia mas deslumbrado por Paris. Falou de uma música de Caetano, Pulsar, do disco Velô que se aproximava ao rap. Descobre Maria Bethânia dizendo Fernando Pessoa.

Na juventude, no auge do movimento punk no Brasil, havia os Secos e Molhados no palco. “Quando o movimento punk chegou ao Brasil já nem havia punk em Inglaterra”. “Todo o mundo era punk”. Pessoas loucas, maquilhadas, estranhas. Andava com as roupas estranhas na rua que os outros usavam no palco, “um bicho muito estranho”. Gostava da ideia e da possibilidade “eu não sei fazer música mas faço”. Por volta dos 18 anos, depois de repetir o mesmo ano quatro vezes, depois de não assistir às aulas, vivia de noite e dormia de dia, a mãe fez-lhe um ultimato: “Então você sai da minha casa”. Da necessidade de arranjar um trabalho, num restaurante por baixo de casa, o dono pergunta-lhe: “O que você faz?” e ela “Eu não podia dizer que era estudante... então disse... sou cantora”. Assim “nasce” a sua carreira na noite de Porto Alegre onde fazia cover de outros artistas. Mas o interesse de Adriana não estava em “copiar” exactamente a versão de determinado cantor, ela estava muito mais interessada em apropriar-se daquela música, em fazer à sua maneira. A voz não era o interesse principal mas a performance. Gal Costa cantava com uma panela na cabeça para ouvir a própria voz “Óbvio, se eu tivesse aquela voz também faria o mesmo”.  Para ela continuava a não fazer sentido a questão da alta cultura versus baixa cultura. Aí foi procurar um director de teatro. E falou da questão de que se todas as artes desaparecerem, haverá sempre teatro. Trabalhou com um director de teatro de vanguarda. Do seu gosto por provocar vaias. Experiências loucas e liberdade extrema reunidas. Todos os dias mudava. Sem querer agradar. Falou da coincidência de ser contemporânea de outras cantoras: naquela época ela estava em Porto Alegre, Marisa Monte no Rio de Janeiro e Zélia Duncan em Brasília. Sem internet e sem saberem da existência umas das outras. Cada uma fazendo à sua maneira mas com 50% do repertório igual. Começou a levar o espectáculo para o circuito de vanguarda de São Paulo. Provocou muitas vaias e tinha como objectivo não ser belo, nem ser agradável. Chegou a cantar para uma pessoa, um crítico da revista Veja: “fato de xadrês inglês, gravata borboleta, óculos de tartaruga e bengala. E fiz o show como se estivesse cantando para 10 mil pessoas”. Foi aí que contou o episódio que a Rita Lee descreve na sua autobiografia sobre ela ter ficado nua para uma plateia, entre muitas gargalhadas. A Rita Lee convidou-a para assistir à passagem de som. E a Rita Lee falou que quando apresentava a banda de meninos, as meninas da plateia gritavam de alegria e ela queria agradar também aos meninos. “Na hora que eu faço o Miss Brasil 2000 gostava de apresentar uma menina que entrasse no palco só com uma capa. Você conhece alguém que possa fazer isso?” ao que Adriana respondeu “Você se importa que seja eu?”. Quando chegou a hora, Rita Lee apresentou-a, e ela que na altura não era assim tão famosa mas conhecida o suficiente para as pessoas acharem que ia entrar com um violão. Então ela entrou de saltos altos, nua só com uma capa, vai até à marcação no centro do palco, abre a capa virada para o público, espera uns segundos, ficou com pena dos músicos e deu uma canja para eles, fecha a capa e sai.

Maria Lucia Dahl, actriz e cronista do Jornal do Brasil, vê uma das suas actuações em que ela cantava uma versão de Caminhoneiro e oferece-se para ajudá-la no Rio de Janeiro. Fez uma série de concertos no Mistura Fina (que a elite carioca frequentava). Toda a gente desde a mãe, pai, família, professora de canto, ao director de teatro tentaram dissuadi-la de ir: “Não vá, você não está pronta”. Ela foi, mesmo assim. Aquilo foi um sucesso de concertos esgotados. Caiu nas graças da elite carioca. Aí recebeu um convite de uma gravadora para ser a “Marisa Monte” daquela gravadora. Naquela altura ela continuava interessada na performance, na ironia, em provocar vaias. “Caí numa cilada. Fazer um disco sem desejo de fazer um disco não vale a pena. Não façam nunca isso em nenhuma situação”. Saiu um disco todo errado. Uma série de mal entendidos. Não transmitia a ironia do palco. “Mas eu aprendi logo. A imprensa acabou com a minha vida”.  Ninguém queria produzir o disco depois disso. A Folha de São Paulo escreveu: “Há uma lacuna na música popular brasileira que só será preenchida quando Adriana Calcanhotto voltar para o Rio Grande do Sul e desistir de cantar”. Falou das dúvidas de empresários sobre a possibilidade de músicas chamadas Esquadros e Mentiras fazerem sucesso e tocarem na rádio. Como estas três horas eram para ser uma aula, Adriana relatou factos. “Eu vim aqui mostrar como é difícil”. Citando Fernanda Montenegro quando a questionaram sobre se é verdade que o começo é muito difícil: “Os dez primeiros anos são muito difíceis, depois só piora”.

Continua sem gostar de classificações e pretende continuar inclassificável. Coerente, portanto, com o que diz há muitos anos. Há uns 15  anos fiz-lhe a seguinte pergunta: “Apesar das sucessivas comparações a que tem sido sujeita, principalmente com Elis Regina, eu diria que a sua trajectória como excelente compositora assemelha-se muito mais a Vinícius de Moraes pela erudição do vocabulário, pela forma extraordinária como escreve poesia em língua portuguesa e pelo veículo das palavras ser a música. Será que daqui a alguns anos a Adriana será definida como uma grande poeta que fez canções maravilhosas? Era assim que gostaria de ser definida?” Ao que ela respondeu: “Ana, eu detesto comparações (como qualquer artista).  Mas considero um grande elogio a analogia que você faz com Vinícius, a quem amo muito. Na verdade, eu gostaria de ser indefinível, inclassificável, hoje ou daqui a alguns anos”.

Fez um intervalo “ninguém é de ferro a começar por  mim” e propôs-se a falar um pouco sobre a sua experiência de fazer discos para crianças. Começou, após o intervalo, a falar sobre o lançamento das obras completas do Mário de Sá Carneiro no Brasil, como isso se deu, e como ela se aproximou desse universo. A partir daí começa a ser conhecida a sua ligação à poesia e a ser convidada, cada vez mais, para eventos relacionados com isso. Começou a conhecer pessoas conhecedoras dessas obras. Musicou poemas de outros poetas portugueses como Fiama Hasse Pais Brandão. Falou, também, dos trabalhos Olhos de Onda a convite da Culturgest, Loucura a convite da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Das Rosas a convite da Universidade de Coimbra. Falou também de como se cria de forma milagrosa um hit. Cantou Metade e Esquadros.

Seguiu-se a parte das perguntas, que ela se sente particularmente apavorada quando feitas por crianças. Sentou-se. Começou por responder sobre a razão da produção para crianças. Foi uma ideia que foi amadurecendo aos poucos. Existia uma tradição no Brasil de grandes autores escreverem especificamente para crianças (ex. Manuel Bandeira, Cecília Meireles) com a mesma qualidade. Falou da novidade de ter usado samples na altura da Fábrica do poema. De quando convidou Hermeto Pascoal para participar numa música e de como ele fez música com uns coelhinhos e uns baldes. E aquilo deu-lhe um click. Aquilo coincidiu com o assalto ao apartamento dela em que todos os discos foram furtados. Como seria fazer música sem ter memória do som? E essa Canção por acaso com o Hermeto Pascoal fala disso: “Sem ordem/sem harmonia/ sem belo/ sem passado...”. A partir daí começou a anotar canções e a pensar num projecto para crianças. Começou a perceber que as crianças gostavam das músicas de Carlinhos Brown, por exemplo. Deixou essa ideia amadurecer e decantar. E pensou na ideia de um heterónimo. Levou essa ideia para a editora e achou que eles adorariam a ideia. Mas não: “Você não tem um programa de televisão”. Falou do fenómeno de Fico assim sem você que as crianças chamam de Avião sem asa. Achou que era apenas um fenómeno no Brasil porque coincidiu com a morte de um dos integrantes da dupla e só por esse acaso é que ouviu essa música na rádio que era ouvinte. As crianças adoravam-no porque ele tinha cara de boneco. Aí "a música alavancou o disco e as crianças começaram a pedir o concerto". Mencionou que é possível que Partimpim apareça a qualquer momento “que ela sai da caixa”.

Um estudante, que não teria mais do que 20 anos, falou de ter ouvido Metade numa novela quando era criança. E que não teria contacto com a sua música se não fosse por causa das novelas.
A outra pergunta fez lembrar-me uma cena do documentário José e Pilar de Miguel Gonçalves Mendes em que Saramago estava numa Feira do Livro no Brasil e um dos seus admiradores está tão nervoso para que Saramago lhe assine Viagem de Elefante e pede-lhe: "Saramago, me desenha um hipopótamo?". Neste caso uma estudante brasileira pergunta: "Na sua obra Partimpim você fala muito na sua relação com os gatos e eu vejo que as crianças têm muito mais relação com os cachorros e eu queria saber se você vai fazer alguma música sobre cachorros...". Adriana bem tentou disfarçar e controlar o riso, como toda a gente na plateia, e respondeu muito educada e diplomaticamente: "Ah sim, eu prefiro os gatos".

Terminou a falar que pretende aprofundar a relação do Brasil com a Universidade de Coimbra, considerando que a instituição portuguesa pode ajudar o seu país na educação, que está a viver "uma tragédia anunciada. "Nós precisamos da Universidade de Coimbra, talvez, como nunca". O mais interessante desta experiência, para ela “é contactar com os professores, assistir e dar aulas, e sobretudo, frequentar as bibliotecas”. Cantou O outro (a pedido de uma estudante brasileira) e Fico assim sem você (para fazer chorar).

No seu estilo cool, (não) punk, como um dia um crítico a classificou, talvez a definição que mais aprecia “apesar de detestar classificações” e ser “inclassificável”. Para quem diz que é tímida e que o seu maior talento não é falar, esta primeira lição foi uma maravilha, um deslumbramento. Tivessem (todos) os professores este dom da palavra, este humor e esta capacidade de cativar. Estivessem (todas) as aulas repletas como esta e tudo seria melhor. Os professores, sim, têm muito a aprender.

Adriana doce, culta, apaixonada por livros e que (ainda) compra discos. E prefere os gatos.

Promete para as outras aulas, ainda mais entusiasmo, já que abordará assuntos que gosta de falar e estudar.

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