quarta-feira, 5 de abril de 2017

Para aquela que está sentada no escuro à minha espera

Este romance é sobre uma mulher de 78 anos que perde a memória e as suas faculdades progressivamente: "sou uma mulher sozinha a perder a memória e o tino". É uma actriz aposentada que tinha pouco talento e andou por teatros manhosos a declamar patetices que ninguém ia ver". Nasceu em Faro e mudou-se para Lisboa. Teve dois maridos. Não fala. Quando fala, diz frases sem nexo. E vive de recordações do passado. Não se lembra, sobretudo, de acontecimentos recentes. Só a memória antiga permanece, e mais importante, a relação que ela tem com o pai. É isto que é dissecado ao pormenor.

O romance divide-se em três partes: primeiro, segundo e terceiro andamentos. A polifonia, tão característica, mistura-se, neste caso com uma sinfonia não muito desafinada composta de memórias antigas, que se confrontam com a realidade e com a imaginação, e algum desvarios.   “A noite é esquisita (...) as sombras tornam-se coisas verdadeiras e as vossas verdadeiras sombra (...) é noite o astro saudoso rompe a custo o plúmbeo céu (...) há noites em que adormecemos de mão dada e acordamos sempre sozinhos, por muito que não fujamos morreremos sozinhos".

Os personagens principais são a mulher sem memória, a senhora de idade (que cuidava dela e que tem um filho que morre), o sobrinho do marido (que é interesseiro, recebe a pensão e herdará o que é dela., a mãe (mais uma vez autobiográfica, e que tal como a sua, não tem grande instinto maternal e, neste caso, tem ciúmes da cumplicidade e da relação do marido com a filha), o médico e o pai (que é a sua grande ligação afectiva. Uma reunião de mundos que envolve o passado e o presente e pessoas vivas e que já morreram numa convivência paralela. Os personagens, maioritariamente, não têm nome, uma característica livros de ALA. Esta senhora sem memória foi uma actriz com pouco talento que se casou com... e era filha única. Tinha uma relação tocante e muito próxima com o pai. Com a mãe era o oposto. Personagens sempre tristes e deprimidos: "o meu avô no género calado, sem sorrisos, desatento de nós, ao reformar-se ficava de pijama o dia inteiro examinando a barriga" – uma frase tão”António Lobo Antunes (ALA).

Por oposição ao romance anterior, volta ao naperon e à classe média baixa, à falta de dinheiro. Mas os temas como solidão, falta de amor e traição, permanece. Os assuntos sempre abordados por ALA repetem-se: a falta de amor entre casais, a falta de interesse da mulher em relação ao marido, a atracção do médico pela assistente, o director do teatro que usa o seu pequeno poder para se aproveitar de uma actriz sem talento, a mãe que rejeita a filha, a falta de ambição, o marido maltratado pela mulher. O passado,o quotidiano e as suas personagens tão características misturam-se. Neste livro, mais marcante, a abordagem da velhice, da solidão e da angústia que isso causa. Mas sobretudo, a perda de memória: "As palavras não me vinham”. A perda da dignidade es questões existencias: “perder as capacidades em casa ou num lar, o que será melhor?”. Pobreza. Doença. Vergonha. Pudor. A indignidade da velhice: o nosso mal é durarmos demais (...) É assim que se acaba (...) Há alturas em que o desespero sobressalta a meio da noite (...) Afinal estar vivo é isto? Não sei se cosia com as mãos ou com os óculos...”. O tempo e a cruel passagem dele : “Ajudem-me a voltar a ser eu (...)  o tempo anula tudo (...) afasta-se do amor, abandona-o, esquece-o (...) A idade é uma gaita (...) tudo se gasta, é a vida (...) Não tinhas o direito de te tornar horrível (...) Que forma de acabar (...) Nada dura para sempre (...). Sexo, um dos grandes assuntos da humanidade, neste caso abordado do ponto de vista de obrigação e da infelicidade num casal "isto não é fole de ferreiro não te chegou uma dose? (...) diz amor diz (...) o crucifixo a bater contra a cabeceira da cama, primeiro muito ao de leve, depois menos leve, depois com força, depois cada vez com mais força e depois, finalmente, em estrondos tão intensos (...).

E as frases tão bem escritas por ALA: “São iguais às baleias os homens, ainda que morem longe morrem na mesma praia (...) Um dos pés nu e essa solidão do pé comoveu-o (...) A velhice não é roubarem-nos o futuro, é terem-nos roubado o passado (...) os homens gostam de acabar nos nossos braços murmurando-nos o nome normalmente errado, um nome de mulher, não importa qual, torna a eternidade habitável, encara-se em paz o túnel e a lâmpada ao fundo (...) com o peso da solidão do domingo inteiro em cima (...) segurando os músculos da cara para que não lhe víssemos a dor e via-se a dor nas sobrancelhas, via-se a dor nos caninos à mostra (...)o motor do gato já não roçava por mim porque os bichos dão conta, vão-se afastando da gente, acham que deixámos de ser nós, evitam-nos (...) a tragédia, como dizia o outro, não é ser velho, é envelhecer (...).

Um livro perturbador sobre a perda e a falta de memória. E como o nosso fim será igual: só.


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