sábado, 25 de fevereiro de 2017

O imiscível

No labiríntico hotel, tentando pela primeira vez não me perder, vou à recepção avisar que deixei a minha mala no quarto. Agora que escrevo é que me dou conta que escusava de ter feito isso in persona. Perderia menos tempo e seria mais eficiente, se telefonasse. Recado dado, nada feito. Tenho que voltar ao quarto para buscar a mochila porque tenho que fazer check out e entregar a chave. Volto para os corredores labirínticos. Mal saio, tenho que parar porque estão duas pessoas a impedir-me a passagem. Um é o senhor que carrega as malas e a outra é ela. Felizmente, estão de costas e como o chão é alcatifado, não dão por mim e eu espero, pacientemente, para retomar o meu passo. Reconhecia-a imediatamente, mesmo de costas. Talvez pelo cabelo muito curto. Aqui, hoje, não é (mais) uma diva. É uma pessoa normal. E como as pessoas normais, está vestida como as pessoas normais a esta hora do dia. Um blazer preto, uma camisa aos quadrados de flanela, jeans apertados e sapatos oxford camel. A única coisa que é (mais) diferente nela é a brancura. Como ela é extremamente branca. Mais branca do que pareceu ser em todas as outras vezes. Talvez pela proximidade. De um branco que reluz. Na mão tem um pequeno saco de compras da Gulbenkian com o que parecem ser um ou dois livros. Ela caminha pelo corredor enorme, vira à esquerda e eu sigo, perdida mas à espera de acertar, em frente, para o meu quarto. Pontualíssima para o evento que começa daí a 15 minutos.Como um dia escreveu Anabela Mota Ribeiro:  "não é uma brasileira do samba, de pele morena, de jeito dengoso. É uma mulher que conjuga o verbo flanar com frequência. Que regressa a casa com as malas cheias de livros. E que gosta de dançar no Lux e de ouvir fado em Alfama. Imensamente requintada, sofisticada. Delicada". Subscrevo na totalidade.

As minhas questões, que não me abandonavam: Quem se lembrou de juntar estas duas pessoas? E a segunda, por consequência era: Como é que ela aceitou o convite? Nunca fui politicamente correcta, para o bem e para o mal.

Se a moderação, os convidados da mesma mesa, e/ou o público não forem adequados, acaba por ser decepcionante. E eu que tinha (quase) a certeza que seria, tive que fazer a prova dos nove. Pagar para ver. Então, juntar uma cantora consagrada, que a maioria conhece (apenas) de cantar mas desconhece as suas outras artes como escrever, compor, desenhar, compilar e o excelso domínio da língua portuguesa.  Um moderador que é praticamente desconhecido, que eu desconfio que ninguém naquela sala conhecia, à excepção do anfitrião (e algumas pessoas que se podiam contar pelos dedos de uma mão). E finalmente,  “o gajo que escreve cenas”, como o próprio se descreve e parece gostar. Quem se define assim já não pode ser alguém cuja qualidade literária é algo muito aprofundado. Ela tira um livro, um ipad, iphone, talvez um caderno e um lápis. Os outros nada. Eu sei que deve haver algum lugar para o improviso. Mas nada? Ela lê talvez dois poemas de amor do Fernando Pessoa.

“O gajo das cenas” é só piadas. Cita uma carta de amor, eleita a melhor de todos os tempos, pelos americanos. O americano comum não é nenhum sinónimo de qualidade. Com um humor tão fácil e tão popular. Tem a mania que é engraçado. Um cita Machado de Assis e outro cita Johnny Cash. Se, pelo menos, citasse Leonard Cohen ou Dylan. A necessidade de fazer rir toda a gente (mesmo que não tenha piada nenhuma, para mim), um palhaço (no mau sentido da palavra). E toda a gente se ri. Serei apenas eu que não tenho vontade de me rir? Será que não tenho sentido de humor? Sou eu apenas que já não me consigo rir do que não é sofisticado? Vende, dizem-me, um número inacreditável de livros por semana. Um best seller, portanto. Mas seja lá o que isso for. Neste país não é preciso grande coisa para se ser best seller. Não me interessa escritores nem livros cujas citações que fazem são de Johnny Cash e das músicas dos Clã e das escritas de Carlos Tê. Percebi hoje, finalmente, o sucesso deste pseudo escritor. Pelo menos tem a noção que é ridículo. "Gosto de ti como de arroz". Usa exemplos de de futebol. Que vergonha, para mim, juntar estas pessoas à mesma mesa. Com tanto de tão bom em Portugal. Mas sala está cheia para o ver. Essa é a verdade. A plateia está cheia de gente muito produzida para esta hora da manhã e para este dia da semana. Dirão que 97% são mulheres e 3% são homens. 

Ela tenta em vão elevar o nível de discussão. Cita um verso de uma música sua, cuja letra foi escrita pelo António Cicero:"Faço longas cartas para ninguém". Nos tempos mortos, em que ouviu mais do que falou, rabiscou e citou Oswald de Andrade: "Amor/ Humor". Termina a dizer que a sua representação do amor é a palavra "revolução". Os exemplos de cartas de amor que citou: as cartas que enviava para a avó quando chegou ao RJ, as cartas que alguém na Central do Brasil quando não se sabe escrever.

Uma das coisas mais bonitas que ouvi, e a melhor intervenção, foi a história de uma senhora que contou a história da avó que era analfabeta e que aprendeu a escrever, já depois dos 40, para escrever cartas de amor para o avô.

O que me chocou foi o politicamente correcto do Luís Osório, que supostamente pertence à elite, e que o elogiou dizendo que gostou muito de o ouvir. Pois eu não. Lamento. E não tem nada que ver com muita gente ler os livros dele e da maioria dos livros dele serem lidos maioritariamente por mulheres. Tem que ver com cuidado, com profundidade, com a forma com que se aborda a temática. Aquilo que se chama estilo. Uma forma de escrever. Eu quando leio estou à espera de aprender, de melhorar, de me surpreender, de admirar. Não quero ler e achar que eu poderia ou saberia fazer melhor. Não me interessa uma literatura acessível, mediana, sem aprofundamento de nada, com um monte de futilidades e banalidades.  Estou farta desta conversa de cosmética e circunstância, do desejo e necessidade que se tem, permanentemente, de se evitar confrontos. 

Nada tenho contra o pseudo escritor, que eu acharia melhor definir como pessoa que escreve, não sei se livros. Simpatizei com a pessoa. Não o achei pretensioso ou à espera de ser mais do que aquilo que é. Achei-o genuíno e sincero. Sem pretensões.

Agora juntar estas duas pessoas foi um erro, desculpem.

Não parece mais tão tímida como diz ser ou como dizem que é. Tira constantemente os óculos para as fotografias. Ninguém lhe pede nada para assinar. Somente fotos. Ela é toda sorrisos e palavras delicadas. Mesmo cheia de pressa, não diz que não a ninguém. Promete encontro (por aí) de tarde. 

Copyright: Isabel Worm

Copyright: Isabel Worm

Copyright: Isabel Worm

Copyright: Isabel Worm

Copyright: Pierre Aderne




terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Os cagões

Eu sei que vou correr o risco de ser mal interpretada. Mas não resisto a escrever sobre este episódio. 

Gosto sempre de saber mais e mais sobre as coisas que me interessam e sobre as que não me interessam, também. No entanto, chamem-lhe falta de paciência ou qualifiquem como quiserem. Mas há coisas para as quais nunca tive paciência, e com a idade, está a tornar-se pior. Há, de facto, tanta gente desinteressante no mundo.

As pessoas que me conhecem sabem a dificuldade que tenho para interagir com pessoas que não conheço. Tenho vindo a melhorar, é verdade. Sou daquelas pessoas que acham que se aprende sempre com alguém mais culto, mais instruído, mais intelectual. Mas adoro o contrário. Pessoas carregadas de afecto, genuínas, honestas, verdadeiras, independentemente da sua instrução. Acho, na maior parte das vezes, que existe sempre algo a aprender com o ser humano. Morro de amores por histórias de pessoas que eram analfabetas mas ensinaram tanto a tanta gente. Pessoas que eram analfabetas e aprenderam a escrever e a ler para rezar. E outras que eram analfabetas que aprenderam a escrever para poder escrever cartas de amor.

O que eu não suporto e não consigo entender são os (vou chamar-lhes assim): cagões. É sobre eles este texto.
Nas conferências, pelo menos as que eu vou frequentemente, as refeições são sempre volantes. De pé ou sentado mas sem lugar marcado nem mesa posta. Pois bem, ao engano, hoje fui parar a uma mesa de "cagões", ainda por cima, que não conhecia. Num outro texto explicarei porque fui lá parar. Fiz uma pequena descrição destas pessoas a alguns amigos e sugeriram-me este nome, que seria perceptível.  Pois bem, em 10 pessoas não se aproveitava nenhuma. A do meu lado direito devia estar nos 40, que parecia passar dos 50, mas achava que tinha 20. Cheguei à conclusão que não podia ter mais de 50 porque tinha filhos pequenos. Maquilhagem má e roupa que não era coincidente, nem com a idade, nem com tecido adiposo a mais que insiste em aparecer, nos locais menos próprios, com o passar dos anos. Mas esta era a melhor de todos. Desinteressante sim, mas também não era a pior. Um casal na casa dos 20. Tão desinteressante e vazio mas que se achavam os maiores da rua deles. Bronzeados de solário ou de jet bronze. Sei que não passavam dos 20 porque ela ainda tinha acne,muito disfarçada com camadas de maquilhagem, como se fosse aparecer na televisão. A roupa dela, nem consigo descrever para o que é que ela ia vestida aquela hora... Ele tinha um casaco que parecia o Goucha e um penteado que, juntamente, com a cor de cenoura da cara e das mãos e os ténis brancos, fazia lembrar um homem com profissão pouco recomendável. Tinha um anel gigante no indicador e uma aliança dourada na mão direita. O almoço era buffet mas sentado. Então, o “casalinho maravilha”, que se tratava por “mor” (com pronúncia do norte), depois de se ter levantado para ir buscar a comida, achou que as bebidas não seguiam o mesmo trâmite. Era vê-los de mão no ar e gestos muito afectados a chamar pelos funcionários porque queriam beber. Os funcionários, muito educadamente, informaram que as bebidas seguiam as mesmas regras da comida. Self service, sirvam- se do que quiserem, espumante, alvarinho, vinhos do Dão branco e tinto. Águas com gás e sem, por favor. A menina do casal, com tão boas maneiras, não gostou das ervilhas e não tem mais nada melhor a fazer, e nem por um momento se questionou se haveria alguma regra de etiqueta que lhe tivessem ensinado quando criança, e despeja (como se estivesse a limpar o prato para colocar na máquina de lavar louça) o conteúdo do prato no prato do namorado/companheiro/marido (não consegui perceber). Daí a poucos minutos, como queriam comer muito e rápido, não se sentiram constrangidos, e limpam um dos pratos para o outro e empurram-nos, empilhados, para a frente. Palmilhas meninos. Os vosso gestos afectados não adiantaram de nada quando se tem estas maneiras à mesa. [coitadinha de mim que sempre implicavam comigo em criança porque colocava os cotovelos na mesa]. Fiquei sem saber a que classe profissional pertenciam. Estavam muito orgulhosos porque tinham à sua frente um livro autografado, que ainda não tinham lido porque tinham acabado de comprar, de um best seller autor do nosso país (do qual falarei noutro texto). Os do meu lado esquerdo eram os fornecedores do vinho do almoço. Ela quase sempre calada e ele só perguntava “E o vinho, que tal?”. Só me apetecia responder: “Ó pá, eu sei lá, só sei que os meus preferidos são os do Alentejo, alguns do Douro e outros da região de Setúbal e pouquíssimos do Dão”. Mas tu aqui só tens alvarinho, Dão e Bairrada. Pá, demasiadamente ásperos e brutos para o meu palato, mas nada pessoal, pá”. E ele continuava: “Sabem mesmo a uva, não sabem?”. E ele queria que soubessem a quê? Para quê pleonasmos de baixo valor literário? Mas a melhor surpresa estava guardada para o fim. Le grand finale. O casal de criaturas era o que se apelidam de “os verdadeiros”. Cagões em estado puro. A nata da nata do pseudo snobismo. Então vamos lá. Quem  é que a um sábado de manhã, num evento informal ao fim de semana, aparece de blazer azul marinho, camisa branca de punho duplo (daquelas um número abaixo quando o tórax e a proeminente barriga pediam um numero acima), gravata e lencinho na lapela. As calças eram de ganga, na moda, pois claro, ao estilo que encolheram na máquina – acima dos tornozelos (quando se levantava, de tão curtas era de dar dó da figurinha ridícula). Os sapatos, de fivela dupla, eram de cor bege... O cabelo era incrivelmente bem penteado com a ajuda de gel e tinha uma barba que parecia desenhada a régua e esquadro. Eu só imaginava quantas horas aquele homem teria demorado a ficar assim. Acompanhado, claro da sua partner, que era apenas uma figurante ao seu lado e não fez mais nada a não ser sorrir. Limitava-se a afagar  enorme ego dele. Este tinha sido o fulano que colocora minutos antes a brilhante e profunda questão “Não deveríamos escrever cartas de amor a nós próprios?”. Nem vou perder tempo a explicar o grave problema de ego que este homem deve ter, ao estilo de Trump. Ninguém ensinou a este senhor que excesso de ego pode ser uma doença, vá, um distúrbio. Eu mal o vi, mais as suas perguntas e o seu estilo e deduzi logo o que ele seria. O que eu imaginei é que ele não era mais do que estes empreendedorzitos, que agora estão muito na moda, que se ocupam a fazer negócio e aproveitarem-se daquilo que ninguém se lembraria. Coisas sem jeito nenhum para crianças, ensinar velhotes a fazer qualquer coisa, ensinar gente com poucas apetências sociais a serem os palhaços lá da rua... Para melhor se visualizar, um gajo semelhante aquele fulano que um dia o Relvas escolheu através do youtube. O gajo que em plena crise disse que enquanto uns choravam ele fazia os lenços para se assoarem...

Educadamente, pedi licença, despedi-me, saí da mesa e pensei para mim que nunca mais me sentaria numa mesa assim. Melhor ficar sem comer do que passar a tarde a pensar em quão rarefeitos e vestigiais eram aqueles cérebros feitos de nada ou apenas daquilo que queriam mostrar aos outros.  Gente tão cheia de si.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Das rosas

São pessoas como Adriana e Nestrovsky, e todos os grandes nomes da música brasileira, que dão a mais valiosa e sagrada imagem do Brasil no mundo. Um Brasil culto, informado, moderno, dos grandes escritores e poetas, que domina a língua portuguesa, que pensa, que tem opinião e (sobretudo) que não tem medo.

Já que as pessoas gostam tanto de classificar, este espectáculo é um recital em forma de lição de Adriana Calcanhotto com Arthur Nestrovsky, construído a partir da apresentação única feita na Biblioteca Joanina em Dezembro de 2015, aquando da comemoração dos 725 anos da Universidade de Coimbra. Nesse dia, para uma plateia de somente 100 pessoas, que só incluía convidados, Calcanhotto ainda tinha o cabelo comprido, ainda usava brincos compridos de filigrana da alta joelharia portuguesa, aguentou um frio daqueles, usou o mesmo vestido de veludo comprido preto e foi feita Embaixadora da Universidade de Coimbra.

Em Lisboa, os mesmos estão (sempre) presentes na plateia. Mísia, não foi esquecida nos elogios. Esta amiga é para Calcanhotto a “professora de fado e pastéis de bacalhau, entre muitas outras coisas”. O amigo David, que Adriana, achava por bem lá estar, e ele não falhou, foi tratado por “meu amor” e também foi lembrado pelo envio das manchetes da época sobre “o escândalo, o disparate e a heresia de Amália a cantar Camões”.  Mas “Amália é Amália e ela pode tudo”. Ana Vidigal estava ao meu lado, na segunda fila. Passaram por mim a quase brasileira e a especialista em Brasil, Alexandra Lucas Coelho, e o temido crítico de música do Público, Nuno Pacheco. Avistei ao longe Anabela Mota Ribeiro, Pilar del Rio, Eduardo Lourenço, Mísia, António Barreto, José António Pinto Ribeiro...
Adriana, entra a sorrir sob palmas ruidosas. Coloca cuidadosamente o violão a tiracolo. 

O cenário é minimalista. Uma mesa com uma jarra de rosas vermelhas, uma partitura onde tem o iPAD e os óculos, dois amplificadores, o banco e o microfone de Arthur Nestrovsky, que permanecerá vazio até à décima música. Adriana “de vestido de veludo de seda preto, largo, mangas compridas justas, decote em barco, aquele cabelo curtíssimo que lhe dá um ar antigo e mostra a linha do crânio, impressiona. Graciosa, cultivada, acompanhada pelo Arthur Nestrovsky, outro ser que irradia luz”. Estas últimas palavras são da Fernanda Mira Barros que descreveu em pouco o que eu não vou conseguir dizer com muito.


Copyright: Rita Burmester

O espectáculo começa com Tive um coração perdi-o cujos versos são de Amália. Adriana fala que conhecia os versos de Amália, tem até um livro, mas que nunca tinha prestado muita atenção “tanto quanto, quando”ouviu os versos na voz de Mísia. Para mim, que conheço as duas versões, esta versão em forma de balada sussurrada, não tanto de fado, ficou perfeita.

Segue-se Negro amor popularizada na voz de Gal Costa, um hit radiofónico no Brasil. É uma uma versão para português de Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti da canção  It’s all over now baby blue de Bob Dylan, o “nosso Nobel da Literatura”. Adriana sente-se escandalizada por acharem um escândalo Dylan ter sido galardoado com o Nobel. Aquela história chata de sempre de se poder achar que letra de música é menos de que poesia. A voz, nesta canção não atinge, de todo, a perfeição. Mas nesta, o verdadeiramente importante não é a versão mas a mensagem e o significado.

O outro de Mário de Sá-Carneiro que Adriana musicou “se é que se pode chamar isso de musicado”. A descoberta de Mário de Sá-Carneiro deu-lhe a oportunidade, para além de “o conhecer a ele mesmo, de conhecer pessoas muito interessantes que também gostam muito dele". E uma das pessoa mais interessantes que ela destaca é a “Professora Cleonice Bernardinelli que é uma amante e especialista em língua portuguesa. Fizeram alguns saraus juntas “ela fingindo que lê porque ela tem uma memória maior que toda essa sala aqui reunida”.  Cantou em forma de fado  Senhora dos olhos lindos, que Cleonice Bernadinelli lhe pediu, especialmente, para musicar. Genialmente tocada e inesquecível versão. Na sequência, explica que Cleonice Bernardinelli não quer ser chamada de Professora nem de Dona mas apenas de Cleo “para ficar mais próxima da gente, ela tem 101 anos, eu entendo perfeitamente”. Destacou que têm muitos interesses em comum: nasceram as duas no século passado, gostam de Mário de Sá-Carneiro, de ovos moles de Aveiro e gostam muito de Dom Dinis. Na ocasião do concerto na Biblioteca Joanina, dentro da Universidade de Coimbra, “tinha que cantar Dom Dinis, claro”. Relata que quando voltou para o Brasil, ligou para ela e disse: “Cleo, eu cantei Dom Dinis na Biblioteca Joanina em português arcaico” ao que ela respondeu: “Pra quê isso menina? Eu passei isso tudo para português moderno em 1953”. A coincidência improvável é que exactamente o poema O que vos nunca cuidei dizer (cantiga de amor), pelo qual Adriana se interessou, não estava traduzido para português moderno.  “Então, por culpa exclusiva da Professora Doutora Honoris Causa por Coimbra, Cleonice Serôa da Motta Bernardinelli, serei obrigada a cantar a primeira estrofe de uma cantiga de Dom Dinis em português arcaico, me perdoem”.

Depois seguiu-se a canção a cappella do trovador provençal Arnaud Daniel Canso do ill mot son plan e prim traduzida em português por Augusto de Campos Canção de amor cantar eu vim. Adriana chamou-lhe o “Bob Dylan do séc XII”. Mas ao contrário de Bob Dylan, Arnaut Daniel era “muito rarefeito, de um artesanato poético incrível. Ele fazia um tipo de trobar clus. Um trobar muito refinado, muito sofisticado. Foi o inventor forma poética sextina” [sestilha -estrofe de 6 versos de 7 sílabas e rimas simples). “Foi recuperado por Dante na Divina Comédia onde é a única criatura que fala na sua língua nativa (provençal). Mais tarde, Pound, recupera-o de novo. Lança a semente da alta poesia moderna europeia. Nas iluminuras, os trovadores aparecem fazendo gestos. E cada gesto, cada ângulo de cotovelo, cada quebrada de punho tem um significado”. E Arnaut Daniel aparece sempre como “olha como eu sou maravilhoso, olha como eu sou rarefeito, olha como sou incrível”.
Seguiu-se a Poética do eremita de Fiama Hasse Pais Brandão pelo qual Adriana se apaixonou à primeira vista. Referiu a sua dificuldade de entrar nessa poesia tão densa e tão hermética. Esta foi esquecida em Coimbra.


Copyright: Márcia Lessa

Copyright: Márcia Lessa
Adriana terminou a actuação solo com uma versão de Com que voz de Camões eternizada na voz de Amália. Há algum tempo atrás, Adriana soube do escândalo (através do amigo David de Lisboa que lhe mandou as manchetes da época) que foi Amália cantar Camões. Assim como o escândalo de Bob Dylan ter sido galardoado com o Nobel da literatura. “Eu fico escandalizada por alguém se escandalizar com isso”. As manchetes da época classificavam: “Isso é um escândalo. Isso é um disparate. Isso é uma heresia. É Camões. Ela não tem direito de fazer isso”. E o outro lado dizia: “Ela é Amália, pode fazer tudo o que quiser”. Juntos, Amália, Alain Oulman e Camões fizeram Com que voz. Que balada linda ficou a versão de Adriana.

“Não é possível disfarçar para vocês que não preciso mais dos óculos”. Assim começa a segunda parte, em que Adriana lê o poema Mortal loucura de Gregório de Matos no iPAD e entra Arthur Nestrovsky que faz o eco (final de cada verso que era a última parte da palavra anterior), na versão musicada de Zé Miguel Wisnik. O domínio do violão de Nestrovsky é do nível académico. Gregório de Matos nasceu em Salvador mas “era de nacionalidade portuguesa, como todos os que nasciam no Brasil no séc XVII. Estavamos até pensando nisso, em recuperar isso, devíamos todos voltar para cá do jeito que as coisas vão no Brasil”. Cantava os seus versos pelo Recôncavo baiano com uma violinha de cabaça.

Depois fizeram um salto de três séculos e passaram para Vínicius de Moraes, “um extraordinário poeta de livros que viria a tornar-se um extraordinário letrista de canções e também compositor”. Adriana diz (de cor) Soneto de Corifeu, tão lindo.

E a seguir cantou Valsa de Eurídice, letra e composição musical de Vinícius  que a escreveu como presente de aniversário de 15 anos da filha Susana (mulher de Adriana Calcanhotto, falecida em 2015). Esta canção termina, também, com a palavra saudade: “Pensa que a saudade/ mais do que a própria morte/ Pode matar-me/ Adeus”. Para além de ser um letrista maravilhoso que compôs meia dúzia de canções incontornáveis do cancioneiro popular brasileiro. No entanto existe alguma controvérsia: “Susana andou fazendo uns cálculos e descobriu que quando a música foi feita ela já tinha 16...”. Esta valsa foi incorporada anos depois no musical Orfeu da Conceição. Vínicius  teve a primeira ideia da junção da tragédia grega com a cultura negra do povo do morro do Rio de Janeiro. Numa noite, perto do Carnaval, teve uma inspiração fulgurante e passou a noite a escrever praticamente o texto inteiro que viria a ser o Orfeu da Conceição. E para musicar o texto ele procurou um arranjador que estava a começar e tinha muito talento, António Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. Seguiu-se outra canção de Vinícius de Moraes compositor, Medo de amar: “...Porém, não se surpreenda se uma outra mulher/ Nascer de mim, como do deserto uma flor/ E compreender que o ciúme é o perfume do amor”.

Seguiu-se a belíssima Noite de São João de Alberto Caeiro musicada por Fred Martins. Para mim, um dos momentos mais bonitos da noite. Mais uma vez, como as flores que deram o nome a esta lição, Adriana leu um poema sobre rosas, As rosas com bolores de Adília Lopes. E Segue o teu destino de Ricardo Reis e musicada por Suely Costa.


Copyright: Márcia Lessa

Há uns anos, a Universidade de Coimbra decidiu atribuir o título de Doutor Honoris Causa ao Reitor da Universidade Federal da Bahia, à época, Edgardo Santos. Esse foi um homem extraordinário que coincidiu com um momento extraordinário da história do Brasil. Foi um período realmente muito curto de florescimentyo da cultura brasileira, de cerca de 10 anos que incluiu: invenção da Bossa Nova, movimento de educação pública, desenvolvimento da arquitectura moderna brasileira, a nova capital do Brasil- Brasília, o cinema novo, o Brasil foi bicampeão de futebol com Pelé. Uma época em que Juscelino Kusbichek começa o seu mandato em 56 até à implementação da ditadura militar em 64, interregno democrático, de marcado crescimento económico e cultural promoveu o supra descrito. Então o Edgardo Santos, Reitor da UFBA, considerado um cosmopolita levou muitos investigadores convidados de fora para a universidade, incluíndo Walter Smetak, um músico suiço com o qual estudaram Caetano Veloso, Tom Zé e Gilberto Gil. Então aquando da vinda de Edgardo Santos, foi convidado também Assis Chateaubriand, o magnata das comunicações, uma espécie de Citizen Kane brasileiro. Como ele não pode vir, convidou Dorival Caymi o representasse, representando a Bahia. Então Caymi veio pela primeira vez a Portugal com a cantora Doris Monteiro. Passou alguns dias aqui e teve alguns encontros, alguns deles memoráveis, incluíndo o encontro com Amália. Diz-se que ali ocorreu “o casamento entre o samba e o fado”. Se o casamento foi ou não consumado, não se sabe. Quando Caymi estava a caminho de Coimbra para a cerimonia, parou nas Caldas da Raínha e existe uma fotografia muito bonita dele junto de um roseiral na estrada. A partir dessa experiência, Caymmi compôs a canção que deu o nome a este espectáculo Das rosas, que eu achava que viesse do Milagre das Rosas da Raínha Santa Isabel (mulher de Dom Dinis).
Sem nenhuma palavra a apresentá-la a seguinte foi a lindíssima Cajuína de Caetano,cantada em dueto,com uma letra tão enigmática que Arthur Nestrovsky explicou:

Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina


Aqui Nestrovsky dá-nos uma verdadeira aula de metafísica filosófica, com perguntas sem resposta e os seus significados. “Existirmos: a que será que se destina?”. Convenhamos que um autor que é capaz de fazer uma canção com a pergunta das perguntas não é pouca coisa. Esta é uma versão da pergunta existencial do filósofo alemão Martin Heidegger (cujo livro, Nestrovky em Coimbra, citou em alemão, uma vez que nas próprias palavras, a plateia devia ser unanimemente constituída por académicos) "por que existe afinal ente e não antes nada?". Existe outra formulação dessa pergunta num conto Manuelzão e Miguilim de Guimarães Rosa, na cena final, em que o menino Miguilim questiona a mãe: “Mãe, mas por que é, então, para que é, que acontece tudo?”. Heidegger pergunta isso na terceira pessoa, a voz do pai fazendo a pergunta de fora; Guimarães pergunta do ponto de vista do menino confrontado com o mistério da existência; e Caetano faz essa pergunta de um modo muito diferente. Existir, neste caso, é ao mesmo tempo substantivo e verbo. A cena da canção remete para o encontro de Caetano Veloso com o pai de Toquatto Neto (amigo e parceiro de Caetano na época da Tropicália que se suicidou no dia do próprio aniversário) em Teresina, capital do Piauí: “A flor já é um presente em si, é uma dádiva, não é uma coisa que vai durar, que vai permanecer. O que permanecerá é o gesto do presente.

Já a rumar para o final, canta Morro dois irmãos de Chico Buarque, que fez parte do repertório do seu disco A fábrica do Poema. Lê depois o poema do Canção do exílio de Gonçalves Dias: “Minha terra tem palmeiras,/ Onde canta o Sabiá;/ As aves, que aqui gorjeiam,/ Não gorjeiam como lá. A penúltima canção foi Sabiá. Com versos de Chico Buarque aos 24 anos e música de Tom Jobim. Esta canção é uma espécie de Canção do exílio. A canção Sabia ganhou o festival da canção no Maracanazinho sob os apupos da plateia porque não perceberam o significado da canção. É sobre um lugar imaginário, um lugar que não existe ou que não existe mais. O sabiá na palmeira não canta, eu que sou bióloga, aprendi isso com um músico). Arthur não esquece de referir que não se cumpriu esse desejo do Brasil, um país que ainda não se cumpriu, e que ainda há pouco perdeu uma grande oportunidade. Sempre velado, nunca directo, foi o mais claro que conseguiu ser na crítica política à situação do Brasil actual. Não se ouviu, como nos concertos de Caetano, “Fora Temer”. Não sei se porque as pessoas estão demasiado desanimadas ou se não eram politizadas... Fica a pergunta por responder.

Termina em apoteose com o pout porri com Coimbra e Chega de saudade com sotaque brasileiro e com melodia de bossa nova, que termina com toque e gesto de Carmen Miranda, e a palavra saudade com sotaque português.

No encore do Porto, Adriana disse que era a primeira vez de Arthur Nestrovsky no Porto: “Eu avisei a ele”. E que também disse: Esta sala parece um pouco fria”. Ao que ela respondeu: “Espera”.Confidenciou que na primeira vez que esteve no Porto com Dé Palmeira e que se lembra que era numa sala com cortina e que ele disse enquanto a corina fechava e olhava para ela: “Isso não é uma platéia, é família”. Como no decorrer do espectáculo faltou o que eles chamaram de “maior compositor gaúcho”, Lupicinio Rodrigues: Nunca e
Voltou para um segundo encore: “Em que é que posso ser útil?” e só em Lisboa terminou com duas músicas: Esquadros e Inverno. Em Coimbra e Porto ficou-se, apenas, pela primeira. O Porto, ah o Porto, acompanhou baixinho.
Comentei com a Anabela Mota Ribeiro o quanto este espectáculo/concerto/recital mais parecia uma aula. A Ana Vidigal classificou-o no seu blog como “lição”. Essa é a verdadeira palavra, a que me faltava. Uma verdadeira lição de literatura e de história da cultura e música brasileira, principalmente dos últimos 50 anos. Este modelo não é totalmente desconhecido nem inovador. Assisti por duas vezes ao que Maria Bethânia denomina de “recital” Palavras. A diferença é que as histórias, referência e notas de rodapé não são tão profundas nem extensas. Ao contrário de Nuno Pacheco, que classificou  de “extensos enquadramentos, explicações e contextualizações” e aconselha que esta é uma “jóia por lapidar, onde a música e a poesia só terão a ganhar com um corte drástico no didactismo”, eu acho que foi magistral. A outra crítica que faz é à voz de Adriana: “a sua voz não esteve nos melhores momentos”. Esta é a diferença entre um crítico e uma leiga. Um crítico é imparcial e uma leiga gosta ou não gosta. E este não era um espectáculo de canção. E Adriana não é uma interprete virtuosa como Gal, Bethânia ou Elis. Então, qual o problema da voz?

Quando se sai do espectáculo quase não se sabe o que fazer com tanta informação. Sai-se de coração cheio. Depois da ovação catártica em Coimbra, quando Calcanhotto, surgiu no palco para o encore com a capa de Lente, ela que é actualmente Professora Convidada da Universidade de Coimbra onde leccionará neste segundo semestre na Faculdade de Letras, a fasquia para o Porto ficou muito alta. Mas o Porto, com as suas gentes tão sinceras e espontâneas, não desiludiu, mais uma vez.


Para a minha querida amiga Luisinha (em forma de carta)

A primeira vez que vi a chef Luisinha foi na inauguração do City Sandwich e no Portugal Day no Central Park (em que estava com a Catarina Portas e o Tiago Mexia). O sorriso da Luisinha é a marca da sua personalidade. Quando a vemos, tão pequenina, não imaginamos o mundo que tem lá dentro. Semanas depois fomos ao Robert beber um cocktail. De conhece-la apenas de vista, a conhecê-la mesmo, foi nesse dia que começou a nossa amizade. Senti-me em casa, em família, aquilo que mais falta nos faz em NY: o conforto de uma família. Nunca mais me esqueço que nesse dia nos presenteou com uma panna cotta e bambolinis. Depois desse dia, muitos jantares se seguiram. Ofereceu-nos tanta coisa sem preço. Tratou-nos tão bem. Levei lá toda a gente que conhecia, recomendei muita gente e inclusive o Ruben Alves ainda hoje me fala do jantar memorável que lá teve.

A chef Luisinha é o exemplo que nenhum sonho é impossível. Quando nos faltarem as forças, lembremo-nos dela. Foi enfermeira chefe muitos anos, perdeu um grande amor, e há mais de 10 anos reformou-se e veio para NY lutar pela sua outra paixão: a cozinha. Começar uma vida de novo, depois do meio século de vida, longe de casa, do outro lado do Atlântico, não é fácil, nem é para todos! [Ainda hoje me lembro da história da “morte do Bono!!!]. Não são só sorrisos nem alegrias. Mas a força da Luisinha venceu tudo e tornou-se uma chef reconhecidíssima.

Não me esqueço de todas as histórias fenomenais que a Luisinha contava do hospital, de muitas aventuras de NY, do jantar que tivemos no LOURO (em que a Luisinha pagou a maior parte porque nós, coitadinhos, éramos investigadores - nas palavras dela), dos jantares memoráveis no Robert em que a Luisinha se sentava à nossa mesa e bebia apenas uma água com gás, de como éramos tratados com verdadeiras honras.

A Luisinha, apesar de ter viajado muito, antes de ter mudado para NY nunca aqui tinha estado. Sempre disse que quando viesse a primeira vez ficaria aqui para sempre. É de perder a conta quantas pessoas ajudou. E este exemplo da Luisinha é fundamental, também, para percebermos como a cozinha é uma forma de arte. Para além disso, adora flores como ninguém. E tem a neta uma das suas maiores admiradoras.Tal como a avó, ama NY intensamente.[ Queria há uns anos ter uma banca na Quinta Avenida].

PAPS, Portuguese Circle, principalmente em cidades difíceis como NY, continuem com este excelente trabalho de aproximar os portugueses. Usem sempre o exemplo da Luisinha e nunca estarão sós.
Luisinha, até muito breve, pessoalmente. A vida sorri sempre a pessoas tão boas e com o coração tão grande. Muito obrigada por nos fazer sentir tão perto de casa e por nos ter mimado tanto.
Com um beijo meu,

A. (M)








sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A minha lista de 10 (sobre cultura geral)

Medicina era o objectivo desde sempre. Mas não tive o comprometimento e dedicação exclusiva que as notas necessárias para a entrada no curso, à época, exigiam. Então, no secundário, percebi, muito cedo, que não seria uma candidata à altura. E em vez de me tornar uma sonhadora frustrada, desisti à partida e não à chegada. Fiquei sem segundo plano. E tornei-me uma aluna universitária medíocre. Com a permanente ideia de desistir. Entrei no que deu. E ao contrário de muitos, apesar das constantes ideias de desistência, consegui terminar o curso. Deve ser algo genético a capacidade de não ter desistido. Não atribuo a qualquer mérito meu, que dependesse da minha acção voluntária. Então, entre ser médica, ou qualquer outra profissão que incluísse os meus gostos pessoais, sobravam coisas que não davam para viver nem ter qualquer profissão que os pais sonham para os filhos. Esses gostos incluíam muita coisa, de temáticas muito diferentes umas das outras, muitas vezes até indefiníveis e até pouco coincidentes entre si. Então como isso não dava dinheiro, tornei-me cientista (que é uma profissão que inclui segurança, emprego para a vida e total realização pessoal... Not). Tornei-me cientista por obra total do acaso. Por causa apenas de um professor, do seu entusiasmo, da sua juventude e do seu grupo de investigação, e a uma das poucas aulas teóricas a que fui assistir numa tarde de sexta feira (manhãs não eram para mim). Descobri no decorrer destes anos que em vez de me ter tornado numa pessoa frustrada, aprendi o lado bom da investigação. Permitiu-me viajar, conhecer pessoas incríveis, mundos novos, pessoas que tratam de pessoas, doentes que são curados, outros que morrem mas não em vão, museus, restaurantes, arquitectura, paisagens, livros, escritores, cientistas, comidas, artistas, prémios Nobel, malucos, nerds, e as melhores universidades do mundo. Baseado no supra referido, segue-se a minha lista (por ordem cronológica):

1- Lisboa, a cidade mais bonita do mundo. Apaixonei-me por esta cidade quando a visitei pela primeira vez aos 3 anos. Nunca mais me esqueci de como tudo era alto e grande. Foi o impacto da diferença entre Lisboa e Braga (cidade onde nasci) à época. O sol não brilha em nenhuma cidade do mundo como aqui. A luz e as cores de Lisboa dos telhados e janelas dos quadros de Maluda. O clima perfeito. O Tejo, com dimensão de mar. As colinas. A baixa pombalina. As avenidas novas. A Gulbenkian. A cidade do meu querido António Lobo Antunes. Dos caracóis. Da bica. Do Lux. Das intermináveis e loucas noites do Bairro Alto. De Belém, de onde os portugueses saíram à descoberta do novo mundo.

2 - Na adolescência li a obra completa do Eça de Queirós, à qual volto repetidamente de tempos a tempos, e que continua a ser um dos escritores da minha vida.

3 - Amália intérprete/letrista/poeta dos seus poemas e dos grandes poetas de língua portuguesa (Camões, O’Neill, Homem de Melo, Mourão Ferreira, Régio). Amália é talvez a pessoa que mais lamento não ter conhecido pessoalmente. Talvez a mais importante figura da cultura pop  portuguesa do séc XX e mais conhecida no mundo (esta sim, verdadeiramente, em todos os lugares por onde passei). Sou fascinada pela vida dela. Uma menina que nasceu pobre, que não passou da 3ª classe, que tinha um dom “que Deus lhe deu”, que se alimentava das palmas do público, que se instruiu, que ousou cantar grandes poetas, apreciadora de arte, que escolheu um dia morrer em NY (como uma diva, e bem ao jeito da catarse da tragédia grega, felizmente arrependeu-se a tempo), que amava flores (como a minha mãe). Verdadeira autodidacta.

4 - Clara Ferreira Alves que leio desde 95 no Expresso. Com ela tive verdadeiras aulas de cultura geral. Descobri e apaixonei-me por Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Susan Sontag, Graham Green. Fascinei-me pelo Médio Oriente e por desertos. Interessei-me por política e por muitas outras coisas que não cabem nestas linhas. Faz-me sentir que nunca conseguirei ler à velocidade do que (ainda) gostaria de ler e reler. Mas faz-me ter essa meta e, sobretudo, não desistir.

5 - Maria de Sousa, talvez das poucas pessoas que não conheço pessoalmente, mas que mudou a minha vida. Ela que é uma médica que se tornou bióloga e eu que sou uma bióloga que queria ser médica (mas a vida não é tão fácil assim e não deu, lamento). Com ela aprendi que é possível ser-se cientista e gostar de coisas que não têm nada que ver com ciência. Senti-me muito menos só no mundo quando soube que ela gostava de poesia, de tocar piano, de escrever na parte de trás das folhas em que só um lado estava usado. Através dela cheguei a Garcia de Orta, Abel Salazar, António Damásio, Espinoza, Auden, Cummings e por aí vai.

6 – Adriana Calcanhotto – Quase não oiço música porque não consigo fazer mais do que uma coisa ao mesmo tempo. Mas tal como Vinícius e Caetano, Adriana, é muito mais do que uma intérprete. Preferi dá-la como exemplo por ser uma mulher e a mais nova dos três, mais perto, portanto, da minha geração. O que não quer dizer que me interesse menos pelos outros dois. A autobiografia de Caetano é um livro que já li 4 vezes. Aprendi muito sobre o Brasil, sobre a cultura brasileira e sobre o tropicalismo. Quem mais do que Caetano teria a bagagem cultural, o dom e a capacidade para escrever uma canção como Alexandre?”. Uma autêntica lição sobre o Rei da Grécia Antiga.
Adriana, reúne muitos talentos. É uma autodidacta, curiosa, conhecedora, intelectual, moderna e sofisticada. É uma artista multifacetada que desenha e pinta bem, escreve, fala e canta melhor, e dizem que toca bem mais do que melhor. Depois, partilha o mesmo interesse que eu por livros e livrarias.Tal como outros antes, incluíndo Amália, pegou em grandes nomes da poesia brasileira e portuguesa, musicou os seus poemas e deu-os a conhecer através da música (Drummond de Andrade, Ferreira Gullar, Bandeira, António Cicero, Mário de Sá-Carneiro, entre outros). Musicou até uma resposta de Joaquim Pedro de Andrade ao Liberation à pergunta Pourquoi filmez-vous? Há uns anos fiz-lhe a seguinte pergunta: “Apesar das sucessivas comparações a que tem sido sujeita, principalmente com Elis Regina, eu diria que a sua trajectória como excelente compositora assemelha-se muito mais a Vinícius de Moraes pela erudição do vocabulário, pela forma extraordinária como escreve poesia em língua portuguesa e pelo veículo das palavras ser a música. Será que daqui a alguns anos a Adriana será definida como uma grande poeta que fez canções maravilhosas? Era assim que gostaria de ser definida?” Ao que ela respondeu: “Ana, eu detesto comparações (como qualquer artista).  Mas considero um grande elogio a analogia que você faz com Vinícius, a quem amo muito. Na verdade, eu gostaria de ser indefinível, inclassificável, hoje ou daqui a alguns anos”. Interessa-me muito mais o que ela tem a dizer e o que o que escreve do que a melodia das canções, que quase nada entendo. Talvez por achar que a música seja o tipo de arte que menos me interessa.

7 - Houston, a cidade onde fiz quase toda a minha investigação de doutoramento. A cidade improvável. No sul dos Estados Unidos. Perto do México, recheada de mexicanos ilegais, republicana convicta, conservadora, perto da praia mais feia do mundo (Galveston), do centro espacial da NASA onde nasceu a frase "Houston, we have a problem", do maior centro médico do mundo, do mais importante hospital para o tratamento de cancro do mundo (MD Anderson Cancer Center), onde tudo é gigante (principalmente as distâncias e as doses de comida) e onde é impossível andar a pé. No entanto, foi a maior e mais feliz surpresa da minha vida. Andei kms de bicicleta que era o meu meio de transporte, apesar de ter arriscado a vida muitas vezes. E foi lá pela primeira vez que descobri o verdadeiro significado de saudade. Percebi e dei valor a coisas que até aí relativizava: que gostar de flores e apreciar comida bem feita são também formas de arte. Estas duas aprendi com a minha mãe e só à distância é que as compreendi. Descobri a Rothko Chapel e o The crab do Calder. Para atirar mais lenha para a fogueira, descobri o bairro de Montrose, o denominado bairro estranho, um verdadeiro oásis naquela cidade, onde tudo é possível e onde tudo pode acontecer. Durante quase estes 2 anos, a música do ipod e a bicicleta foram as minhas mais presentes companhias. O grande exemplo de como é possível ser-se muito feliz numa cidade feia e com um calor infernal.

8 - Nova Iorque, a cidade que eu escolhi para viver. A cidade onde se pode fazer tudo. A cidade onde tudo é possível. A melhor cidade do mundo para se andar a pé. Onde realizei os sonhos inimagináveis de ver Black Swan pela New York City Ballet, de ver Placido Domingo como maestro de Madama Butterfly no Metropolitan Opera e os vitrais de Chagall. Onde vi a exposição inesquecível Savage Beauty de Alexander Mcqueen  e o quadro The great wave de Hokusai no The Met Museum of Art, onde morei a poucos metros da primeira casa de Susan Sontag e frequentei os lugares que ela frequentou, onde fui ao lançamento de Just Kids e Banga de Patti Smith, onde eu li muito no metro, do maior numero de livrarias por metro quadrado, das inúmeras galerias em Chelsea. Dos fabulosos estúdios do Soho. Ia a Times Square quando me sentia sozinha. Onde vi quase todos os quadros que tinha visto nos livros, onde me apaixonei mais ainda por Hopper. Onde vi as fotos de Annie Leibovitz. E onde assisti duas vezes a Wit, o monólogo magnificamente interpretado por Cinthia Nixon sobre uma professora de literatura inglesa, especialista em Donne, que está com um cancro terminal. Aqui também li quase todas as biografias que encontrei de Marie Curie, a cientista que ganhou dois prémios Nobel de Física (pela descoberta da radiação) e Química (pela descoberta dos elementos químicos radio e polónio) e que se apaixonou por um discípulo que era casado e foi um escândalo. Da tardia descoberta de Brooklyn.

9 - Um eléctrico chamado desejo no Teatro Nacional D. Maria II, encenado por Diogo Infante com a brilhante interpretação de Alexandra Lencastre (de volta ao teatro tantos anos depois) no papel de Blanche DuBois (a mais bela representação desta personagem, de todas as que vi) e Albano Jerónimo no papel de Stanley.

10 – Fundação de Serralves – Não sou grande admiradora do Porto como cidade. Não gosto da cor (permanente) cinza nem da temperatura. Não gosto do interminável síndrome de inferioridade, do bairrismo da cidade pequena e/ou das sucessivas comparações com a capital. No entanto, acho que uma cidade que tem um museu como Serralves e viu nascer Sophia, não precisa de mais nada. Já valeria a pena só por isto.

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