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sexta-feira, 28 de julho de 2017

Dessa vez

Tarde amena, sol, céu mais ou menos azul turquesa, leve brisa. Coimbra lá fora e calçadas pisadas por estudantes que carregam as suas pastas e livros, muitos livros nos braços. Nesta cidade dos estudantes e doutores já ninguém está de capa. Agora, o tempo é de estudar porque aqui a fama é de passar (apenas) quem souber.

Só existem os registos da memória de uma tarde de comida baiana que incluiu acarajé, abará e  vatapá regado com Quinta do Carmo branco. Os sabores e ingredientes fortíssimos da Bahia provaram não causar mal nenhum. O som não era baiano. Estes baianos de São Salvador não mostraram saber sambar, nem balançar. Não têm pulseira de ouro. Mas têm fita do Senhor do Bonfim, brinco de ouro, um jeitinho que Deus deu e graça como ninguém.

O cenário será os jardins onde (também) aconteceu uma das mais belas histórias de amor em Portugal (Pedro e Inês). Camões eternizou-a num dos seus cantos d’ Os Lusíadas. E está inscrito junto à Fonte dos Amores, de onde brotam as lágrimas e o sangue de Inês, até que o tempo e a água o apaguem.

A noite cai em Coimbra, tardia como todas perto do solstício. No anfiteatro da Colina de Camões na Quinta das Lágrimas, a lua aparece. Ao fundo, muito ao fundo, vislumbra-se a Universidade iluminada. Hoje não é uma lição. Hoje é apenas um concerto, Dessa vez. A cantora hoje será apenas uma cantora e uma performer. No máximo ousará tocar o seu novo instrumento, cortar o seu mais recente livro com as suas letras reunidas e fará uma leitura de um poema da Adília Lopes. Para minha tristeza, não interpretará Poética do eremita. Mas mostrando a sua generosidade, e que os artistas não estão (apenas) enclausurados no seu mundo, e estão abertos a ele, acederá a um pedido de cantar Seu pensamento (pedidos funcionam “só se eu souber e puder atender”).

não é o conhaque 
nem a lua
mas o vinho
mas as promessas 
que me movem como o diabo
Sarah Cohen

Aparece numa pontualidade britânica, sem o jeitinho brasileiro e português do famoso atraso. Dizem que chega sempre antes da hora. O traje é o mesmo vestido longo de veludo azul marinho Gilda Midani do espectáculo Das Rosas. Neste caso, acrescentou-lhe um cachecol da mesma cor.  Começa e nós ainda não nos sentámos. Na primeira fila está o Ministro da Cultura, o Presidente da Câmara e o Professor João Caraça. Temos um lago, que torna o cenário ainda mais bonito, a separar-nos do palco. A primeira música é Esquadros uma daquelas que toda a gente conhece e que um dia um produtor musical surpreendido pelo título, atreveu-se a perguntar: “Você acha mesmo que uma canção chamada ES-QUA-DROS vai tocar no rádio?”.

No concerto incluiu: Vim pra verFado Tropical, um poema musicado de Martim Codax, cantou D. Dinis e Negro amor. A pedido do Miguel Júdice cantou Nature Boy que termina com os magníficos versos:  "the greatest thing you'll ever learn, is just to love and be loved in return".

Cantou as (quase inéditas): Era pra ser "Era pra ser canção de amor / Era o amor em versos / ... / Era pra poder ficar eternamente no presente / O amor soprou de outro lugar / Pra derrubar o que houvesse pela frente / Tenho que te falar / Essa canção não fala mais da gente" cantada por Maria Bethânia e Não demora.

Para mim, Paramgolé Pamplona, tocado assim fez lembrar-me o primeiro concerto que vi da Adriana há 16 anos.  Desta vez, teve grande ideia de colocar a peça do próprio Hélio Oiticica em palco, o parangolé "que você mesmo faz". Um adolescente vestiu um dos parangolés de cor branca, mas mostrou-se pouco feliz porque foi parco a  mexer-se, quanto mais dançar. Feito este reparo, tudo foi fenomenal. A letra, a música simples, a ideia. “O parangolé pamplona você mesmo faz... Com um retângulo de pano de uma cor só/ E é só dançar/ E é só deixar a cor tomar conta do ar... Para o delírio porta aberta / Pleno ar/ Puro hélio...”.  Actualmente, encontra-se em exibição do Hélio Oitica no Whitney em NY: To organize the delirium (até 1 Outubro). Quem puder não perca.

Não esqueceu os sucessos Metade, Esquadros, Mais feliz, Sem saída e Devolva-me. Ao contrário de nas aulas, neste concerto, o último em Coimbra, não cantou a mais bonita do grande poeta, filósofo (e seiu amigo), António Cicero, Inverno.

Terminou com Vambora. E no encore não se esqueceu de  Fico Assim sem você, com a batida electrónica a lembrar o original de Domenico Lancellotti, e até mostrou que sabe (também) dançar.

E a cantora, desta vez a Professora e Embaixadora da Universidade de Coimbra, despede-se da cidade para a qual foi escolhida e aceitou viver por uns tempos. Sem lágrimas, levando as lições como companhia e o significado de saudade, desta que é a capital do amor em Portugal: “ Não permita Deus que eu morra sem que eu volte para cá”. Como “Foi Coimbra que me escolheu e se Coimbra me quiser...”. Esperemos que volte, sempre.



sábado, 18 de março de 2017

A decadência do Hotel Astoria

Quando as expectativas são muitas corremos o risco de (muito) facilmente nos decepcionarmos. Os meus amigos dizem que é isso que vai acontecer quando eu for ao Rio de Janeiro. Essa cidade que eu quero conhecer desde que me entendi como gente e sem razão aparente insisto em adiar. Quando me perguntam o que me falta na vida digo que já podia morrer mas, por favor, não antes de conhecer o Rio de Janeiro. Temos (até) jogo de apostas. Eu sei que vou adorar. Só falta (mesmo) ir.

Pois bem, sou uma pessoa de hábitos, de frequentar o que gosto, onde me tratam bem, faz-me sentir em casa. É, talvez, um conforto. Quem sabe, talvez, sentir-me em casa para quem já tantas vezes mudou e que se sentiu (algumas) vezes a sensação de não saber o lugar ao qual pertence. Ultimamente, desafiando os meus hábitos e gostos, tenho dado comigo a experimentar o novo. Novos restaurantes, hotéis, lojas, cidades. Não repetir. E sentir isso. Nos últimos tempos tenho ido com muita frequência a Coimbra. E de todas as vezes que tenho ido fico num hotel diferente. Desta vez decidi-me pelo mítico Hotel Astoria. Um hotel imponente, lindíssimo que faz parte da imagem, que sobrevive ao tempo da baixa de Coimbra, em frente ao Mondego. Dos mesmos donos do Curia e do Bussaco. Uma desilusão. Um hotel que deve ter vivido momento áureos mas que neste momento vive (apenas) do passado que não existe (mais). O aspecto exterior do edifício e a vista que dele se tem é o máximo do melhor que se vai encontrar. Tudo o resto, nem sei como classificar. Começa na recepção. O atendimento é sem graça, mediano, apenas cumpridor. Apenas o necessário, poucas palavras, desanimado. Entregam-me a chave do quarto e é mesmo uma chave. Naquele instante achei peculiar, único. Já não se encontram lugares assim, pensei eu no meu excelso optimismo. Elevador antigo, com o que sobra do luxo de outros tempos, com um sofá de veludo cor de vinho, umas fotografias desbotadas e maltratadas pelo tempo dos outros irmãos (Bussaco e Curia). Se a ideia era apelar à visita, por favor, retirem estas fotos. A vontade sincera é de, apesar da curiosidade, a julgar por este, será outra (grande) desilusão. Vamos ao quarto. Eu nem tirei fotografias para não me acusarem, algum dia, de estar ao serviço (pago) da concorrência. Parou no tempo. E parar no tempo poderia ser bom mas não é. Alcatifa a precisar de substituição urgente. O cortinado pesado deve ser uma acumulação de pó e tudo o que de pior há. A mobília é constituída por duas mesinhas de cabeceira e uma cama de casal a precisar de manutenção urgente. O resto é um armário e uma cómoda. Não existe nem uma cadeira nem uma secretaria. A casa de banho é talvez o mal menor. Antiga mas limpa. As roupas eram igualmente limpas. Mas somente. Não havia tomadas livres. Os candeeiros estavam arranjados com fita. Tudo parou no tempo e o que se faz não é uma boa manutenção mas pequenos arranjos sem qualquer classe ao nível do que já foi este hotel. A televisão é daquelas que havia nas cozinhas há 20 anos atrás e não tem (sequer) mais de quatro canais. Internet, apesar de dizerem que existe, não tem sinal. Aproveitei para ler e dar um avanço às minhas leituras. A vista é a única coisa a aplaudir. Estou no quarto andar e os telhados e a vista da alta de Coimbra lá fora. Gosto sempre da parte dos pequenos almoços embora não o varie. É sempre o mesmo: pão com manteiga e café com leite, aqui ou em Shangai. Às vezes vá, talvez um croissant. O pequeno almoço, pelo menos para mim, é o melhor para tudo o que é mau. Variado, vários pães, croissants, bolos, iogurtes, ovos, frutas, compotas... E felizmente, o leite e o café são à moda antiga. Já que o hotel congelou no tempo, o leite e o café estão em recipientes que os mantém quentes. As mesas estão postas com chávenas e talheres. Mas as toalhas, meu Deus, as toalhas! Feias como a morte. De um tecido sintético florido em tons de rosa velho. Não seria melhor umas tolhas simples, brancas de algodão? Chego facilmente à resposta. Não, porque implicaria serem mudadas porque a sujidade seria visível. Assim disfarça-se como se pode. A sala que deveria ser uma coisa fantástica nos grandes tempos tem ar de abandono e falta de classe. As cadeiras que deveriam ser de uma beleza única foram reparadas com os piores materiais. Cobriram-nas com um pano de veludo fraco preto às riscas brancas. E como eu sou perita em encontros imediatos de terceiro grau tinha que encontrar alguém. Então quem são as únicas pessoas na sala: eu e uma mesa em que está um casal é uma bebé que deve ter um ano. Ela fala alto , diz que gosta muito de pequenos almoços de hotel, está de calças de fato de treino justas e uns óculos gigantes de sol. O homem que a acompanha parece mais novo e saído de uma qualquer programa desses trogloditas da tv. A voz é-me familiar. Tento puxar pela minha memória auditiva, tento confrontá-la com a imagem real que vejo. Após alguns minutos chego lá: Joana Amaral Dias. Sim, aquela do Bloco de Esquerda que depois foi mandatária da campanha de Mário Soares à PR, e que parece ter caído no esquecimento depois do mediatismo de ter aparecido grávida e nua numa revista de uma apresentadora de tv com um tom de voz muito agudo. Conclusão, o preço final da estadia foi de 57 euros. Há outros hotéis mais simpáticos, prestáveis, adequados, melhores e mais baratos. Conselho: não deixem morrer estas preciosidades da história.  Nada (sobre)vive do que já foi um dia.
copyright: Booking




quinta-feira, 2 de março de 2017

Eu ando pelo mundo, a primeira lição de Adriana Calcanhotto

Uma formação na área dos estudos artísticos, na área dos estudos brasileiros vindo do exterior da Universidade. Muitos dos enchiam a plateia não eram alunos de Letras e nem da Universidade de Coimbra A formação humanística e artística é essencial para a formação integral de qualquer ser humano. O reitor que mais tempo exerceu essa função, durante 31 anos, nasceu no Brasil. A honra de ser tratada por “Professora” pelo Reitor da Universidade de Coimbra.

E ela, não desiludiu. Apresentou-se, cerimoniosamente, de capa de Lente às costas. Começou por agradecer a todos e a cada um pela honra de estar na Universidade de Coimbra, como disse o Magnifíco Reitor  é a “maior Universidade brasileira fora do Brasil”. A primeira aula da “Professora” Adriana Calcanhotto foi a falar sobre ela própria. A aula sobre a sua trajectória que classificou como “a situação mais difícil de toda a minha vida”. Uma coisa que disse não estar habituada, mas para quem a conhece e as suas entrevistas, poucas novidades ou revelações foram ditas.



Nasceu em 65, em plena ditadura no Brasil. Neta, filha e sobrinha de professoras. Não olha para trás. Tem péssima memória, “uma gaffe ambulante”. Nasceu no extremo sul do Brasil, Porto Alegre. Os pais conheceram-se em Buenos Aires e ela nasceu meio ano depois disso. Pais muito curiosos. Os pais ouviam música depois de jantar: pink Floyd, Piazzola, Miles Davis. A mãe ouvia muita música instrumental e o pai o que queria descobrir. Eram muito diferentes. O pai muito calmo e a mãe o oposto, “speed”. Tem um irmão 3 anos mais novo. Ouvia rádio com as “babás”. Ouviam jovem guarda no rádio. Um dia o pai chegou a casa mais cedo e ficou muito zangando, apavorado a achar que a culpa era dele. A música que ela guardou na memória desse tempo foi Devolva-me. Esta foi a primeira das músicas que cantou nessa tarde. Pediu “paciência e compaixão” se acaso não a soubesse tocá-la bem porque ultimamente anda “só lendo”.

Aos 6 anos, a avó ofereceu-lhe um violão de nylon. Quando lhe perguntou o que faria com aquilo a avó respondeu: “aulas”. O professor era apaixonado por João Donato e Tom Jobim, ou seja, apaixonado por piano. “As teclas são outro mundo”. Para a mão de uma criança de 6 anos aquilo era uma tortura. Abandonou o instrumento para mais tarde voltar. Uns anos mais tarde retoma o violão e faz por impulso uma safra de 30 canções expressando a sua infelicidade pela separação dos pais.

Uma tia, professora de língua portuguesa, ofereceu-lhe o livro de Clarice Lispector A mulher que matou os peixes. Este livro mudou-lhe a vida para todo o sempre. Sentiu-se uma leitora e não uma criança. Este livro, por mais que se leia, e por mais vezes que se volte a ele, parecerá a cada vez, novo e diferente. Sempre quis aprender a ler porque achava que essa era a porta para o mundo adulto. Queria ser adulta para não cumprir ordens. Aprendeu a ler sozinha. Acreditava que o mundo dos adultos era diferente do das crianças, para melhor.

Falou da sesta da mãe que era preciosa e da técnica magnífica que desenvolveu para lavar louça, tarefa que adora. Ouvia rádio baixinho. E nesse tempo começou a ouvir outras coisas diferentes das que ouvia com as babás. Vinícius de Moraes, por exemplo. E achou aquilo diferente, não superior, mas diferente e pensou “Eu daria a minha vida para ver isso acontecer”. Nessa época ouviu o poema Traduzir-se de Ferreira Gullar cantado por Fagner. Foi a música que se seguiu. Ferreira Gullar, de quem veio a tornar-se amiga, nasceu em São Luís do Maranhão. Sempre quis ser um poeta do povo, um poeta acessível. Aprendeu unicamente português. Para ele, numa terra longínqua, distante dos grandes centros urbanos, tudo chegava depois, demasiado tarde. E por isso, para ele, a poesia era coisa de poetas mortos. Durante muito tempo ele achou que os poetas não eram pessoa vivas. Augusto de Campos, contemporâneo de Ferreira Gullar, era o oposto. Erudito, tradutor dos grandes clássicos em várias línguas, cosmopolita de São Paulo. Adriana ouviu um poema de John Donne traduzido por Augusto de Campos e musicado por Péricles Cavalcanti na voz de Simone, chamado Elegia (que  cantou à cappella). Esta foi uma época áurea no Brasil onde era possível ouvir alta poesia através da música popular.

A mãe ofereceu-lhe uma assinatura mensal do “O círculo do livro” e através disso conheceu Oswald de Andrade, o poeta modernista brasileiro da geração de 22. Um poeta irónico, antropofágico, irrequieto, que não usava pontuação, que queria romper com as convenções, que não gostava da ideia do Brasil ser uma colónia mas deslumbrado por Paris. Falou de uma música de Caetano, Pulsar, do disco Velô que se aproximava ao rap. Descobre Maria Bethânia dizendo Fernando Pessoa.

Na juventude, no auge do movimento punk no Brasil, havia os Secos e Molhados no palco. “Quando o movimento punk chegou ao Brasil já nem havia punk em Inglaterra”. “Todo o mundo era punk”. Pessoas loucas, maquilhadas, estranhas. Andava com as roupas estranhas na rua que os outros usavam no palco, “um bicho muito estranho”. Gostava da ideia e da possibilidade “eu não sei fazer música mas faço”. Por volta dos 18 anos, depois de repetir o mesmo ano quatro vezes, depois de não assistir às aulas, vivia de noite e dormia de dia, a mãe fez-lhe um ultimato: “Então você sai da minha casa”. Da necessidade de arranjar um trabalho, num restaurante por baixo de casa, o dono pergunta-lhe: “O que você faz?” e ela “Eu não podia dizer que era estudante... então disse... sou cantora”. Assim “nasce” a sua carreira na noite de Porto Alegre onde fazia cover de outros artistas. Mas o interesse de Adriana não estava em “copiar” exactamente a versão de determinado cantor, ela estava muito mais interessada em apropriar-se daquela música, em fazer à sua maneira. A voz não era o interesse principal mas a performance. Gal Costa cantava com uma panela na cabeça para ouvir a própria voz “Óbvio, se eu tivesse aquela voz também faria o mesmo”.  Para ela continuava a não fazer sentido a questão da alta cultura versus baixa cultura. Aí foi procurar um director de teatro. E falou da questão de que se todas as artes desaparecerem, haverá sempre teatro. Trabalhou com um director de teatro de vanguarda. Do seu gosto por provocar vaias. Experiências loucas e liberdade extrema reunidas. Todos os dias mudava. Sem querer agradar. Falou da coincidência de ser contemporânea de outras cantoras: naquela época ela estava em Porto Alegre, Marisa Monte no Rio de Janeiro e Zélia Duncan em Brasília. Sem internet e sem saberem da existência umas das outras. Cada uma fazendo à sua maneira mas com 50% do repertório igual. Começou a levar o espectáculo para o circuito de vanguarda de São Paulo. Provocou muitas vaias e tinha como objectivo não ser belo, nem ser agradável. Chegou a cantar para uma pessoa, um crítico da revista Veja: “fato de xadrês inglês, gravata borboleta, óculos de tartaruga e bengala. E fiz o show como se estivesse cantando para 10 mil pessoas”. Foi aí que contou o episódio que a Rita Lee descreve na sua autobiografia sobre ela ter ficado nua para uma plateia, entre muitas gargalhadas. A Rita Lee convidou-a para assistir à passagem de som. E a Rita Lee falou que quando apresentava a banda de meninos, as meninas da plateia gritavam de alegria e ela queria agradar também aos meninos. “Na hora que eu faço o Miss Brasil 2000 gostava de apresentar uma menina que entrasse no palco só com uma capa. Você conhece alguém que possa fazer isso?” ao que Adriana respondeu “Você se importa que seja eu?”. Quando chegou a hora, Rita Lee apresentou-a, e ela que na altura não era assim tão famosa mas conhecida o suficiente para as pessoas acharem que ia entrar com um violão. Então ela entrou de saltos altos, nua só com uma capa, vai até à marcação no centro do palco, abre a capa virada para o público, espera uns segundos, ficou com pena dos músicos e deu uma canja para eles, fecha a capa e sai.

Maria Lucia Dahl, actriz e cronista do Jornal do Brasil, vê uma das suas actuações em que ela cantava uma versão de Caminhoneiro e oferece-se para ajudá-la no Rio de Janeiro. Fez uma série de concertos no Mistura Fina (que a elite carioca frequentava). Toda a gente desde a mãe, pai, família, professora de canto, ao director de teatro tentaram dissuadi-la de ir: “Não vá, você não está pronta”. Ela foi, mesmo assim. Aquilo foi um sucesso de concertos esgotados. Caiu nas graças da elite carioca. Aí recebeu um convite de uma gravadora para ser a “Marisa Monte” daquela gravadora. Naquela altura ela continuava interessada na performance, na ironia, em provocar vaias. “Caí numa cilada. Fazer um disco sem desejo de fazer um disco não vale a pena. Não façam nunca isso em nenhuma situação”. Saiu um disco todo errado. Uma série de mal entendidos. Não transmitia a ironia do palco. “Mas eu aprendi logo. A imprensa acabou com a minha vida”.  Ninguém queria produzir o disco depois disso. A Folha de São Paulo escreveu: “Há uma lacuna na música popular brasileira que só será preenchida quando Adriana Calcanhotto voltar para o Rio Grande do Sul e desistir de cantar”. Falou das dúvidas de empresários sobre a possibilidade de músicas chamadas Esquadros e Mentiras fazerem sucesso e tocarem na rádio. Como estas três horas eram para ser uma aula, Adriana relatou factos. “Eu vim aqui mostrar como é difícil”. Citando Fernanda Montenegro quando a questionaram sobre se é verdade que o começo é muito difícil: “Os dez primeiros anos são muito difíceis, depois só piora”.

Continua sem gostar de classificações e pretende continuar inclassificável. Coerente, portanto, com o que diz há muitos anos. Há uns 15  anos fiz-lhe a seguinte pergunta: “Apesar das sucessivas comparações a que tem sido sujeita, principalmente com Elis Regina, eu diria que a sua trajectória como excelente compositora assemelha-se muito mais a Vinícius de Moraes pela erudição do vocabulário, pela forma extraordinária como escreve poesia em língua portuguesa e pelo veículo das palavras ser a música. Será que daqui a alguns anos a Adriana será definida como uma grande poeta que fez canções maravilhosas? Era assim que gostaria de ser definida?” Ao que ela respondeu: “Ana, eu detesto comparações (como qualquer artista).  Mas considero um grande elogio a analogia que você faz com Vinícius, a quem amo muito. Na verdade, eu gostaria de ser indefinível, inclassificável, hoje ou daqui a alguns anos”.

Fez um intervalo “ninguém é de ferro a começar por  mim” e propôs-se a falar um pouco sobre a sua experiência de fazer discos para crianças. Começou, após o intervalo, a falar sobre o lançamento das obras completas do Mário de Sá Carneiro no Brasil, como isso se deu, e como ela se aproximou desse universo. A partir daí começa a ser conhecida a sua ligação à poesia e a ser convidada, cada vez mais, para eventos relacionados com isso. Começou a conhecer pessoas conhecedoras dessas obras. Musicou poemas de outros poetas portugueses como Fiama Hasse Pais Brandão. Falou, também, dos trabalhos Olhos de Onda a convite da Culturgest, Loucura a convite da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Das Rosas a convite da Universidade de Coimbra. Falou também de como se cria de forma milagrosa um hit. Cantou Metade e Esquadros.

Seguiu-se a parte das perguntas, que ela se sente particularmente apavorada quando feitas por crianças. Sentou-se. Começou por responder sobre a razão da produção para crianças. Foi uma ideia que foi amadurecendo aos poucos. Existia uma tradição no Brasil de grandes autores escreverem especificamente para crianças (ex. Manuel Bandeira, Cecília Meireles) com a mesma qualidade. Falou da novidade de ter usado samples na altura da Fábrica do poema. De quando convidou Hermeto Pascoal para participar numa música e de como ele fez música com uns coelhinhos e uns baldes. E aquilo deu-lhe um click. Aquilo coincidiu com o assalto ao apartamento dela em que todos os discos foram furtados. Como seria fazer música sem ter memória do som? E essa Canção por acaso com o Hermeto Pascoal fala disso: “Sem ordem/sem harmonia/ sem belo/ sem passado...”. A partir daí começou a anotar canções e a pensar num projecto para crianças. Começou a perceber que as crianças gostavam das músicas de Carlinhos Brown, por exemplo. Deixou essa ideia amadurecer e decantar. E pensou na ideia de um heterónimo. Levou essa ideia para a editora e achou que eles adorariam a ideia. Mas não: “Você não tem um programa de televisão”. Falou do fenómeno de Fico assim sem você que as crianças chamam de Avião sem asa. Achou que era apenas um fenómeno no Brasil porque coincidiu com a morte de um dos integrantes da dupla e só por esse acaso é que ouviu essa música na rádio que era ouvinte. As crianças adoravam-no porque ele tinha cara de boneco. Aí "a música alavancou o disco e as crianças começaram a pedir o concerto". Mencionou que é possível que Partimpim apareça a qualquer momento “que ela sai da caixa”.

Um estudante, que não teria mais do que 20 anos, falou de ter ouvido Metade numa novela quando era criança. E que não teria contacto com a sua música se não fosse por causa das novelas.
A outra pergunta fez lembrar-me uma cena do documentário José e Pilar de Miguel Gonçalves Mendes em que Saramago estava numa Feira do Livro no Brasil e um dos seus admiradores está tão nervoso para que Saramago lhe assine Viagem de Elefante e pede-lhe: "Saramago, me desenha um hipopótamo?". Neste caso uma estudante brasileira pergunta: "Na sua obra Partimpim você fala muito na sua relação com os gatos e eu vejo que as crianças têm muito mais relação com os cachorros e eu queria saber se você vai fazer alguma música sobre cachorros...". Adriana bem tentou disfarçar e controlar o riso, como toda a gente na plateia, e respondeu muito educada e diplomaticamente: "Ah sim, eu prefiro os gatos".

Terminou a falar que pretende aprofundar a relação do Brasil com a Universidade de Coimbra, considerando que a instituição portuguesa pode ajudar o seu país na educação, que está a viver "uma tragédia anunciada. "Nós precisamos da Universidade de Coimbra, talvez, como nunca". O mais interessante desta experiência, para ela “é contactar com os professores, assistir e dar aulas, e sobretudo, frequentar as bibliotecas”. Cantou O outro (a pedido de uma estudante brasileira) e Fico assim sem você (para fazer chorar).

No seu estilo cool, (não) punk, como um dia um crítico a classificou, talvez a definição que mais aprecia “apesar de detestar classificações” e ser “inclassificável”. Para quem diz que é tímida e que o seu maior talento não é falar, esta primeira lição foi uma maravilha, um deslumbramento. Tivessem (todos) os professores este dom da palavra, este humor e esta capacidade de cativar. Estivessem (todas) as aulas repletas como esta e tudo seria melhor. Os professores, sim, têm muito a aprender.

Adriana doce, culta, apaixonada por livros e que (ainda) compra discos. E prefere os gatos.

Promete para as outras aulas, ainda mais entusiasmo, já que abordará assuntos que gosta de falar e estudar.

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sábado, 25 de fevereiro de 2017

O imiscível

No labiríntico hotel, tentando pela primeira vez não me perder, vou à recepção avisar que deixei a minha mala no quarto. Agora que escrevo é que me dou conta que escusava de ter feito isso in persona. Perderia menos tempo e seria mais eficiente, se telefonasse. Recado dado, nada feito. Tenho que voltar ao quarto para buscar a mochila porque tenho que fazer check out e entregar a chave. Volto para os corredores labirínticos. Mal saio, tenho que parar porque estão duas pessoas a impedir-me a passagem. Um é o senhor que carrega as malas e a outra é ela. Felizmente, estão de costas e como o chão é alcatifado, não dão por mim e eu espero, pacientemente, para retomar o meu passo. Reconhecia-a imediatamente, mesmo de costas. Talvez pelo cabelo muito curto. Aqui, hoje, não é (mais) uma diva. É uma pessoa normal. E como as pessoas normais, está vestida como as pessoas normais a esta hora do dia. Um blazer preto, uma camisa aos quadrados de flanela, jeans apertados e sapatos oxford camel. A única coisa que é (mais) diferente nela é a brancura. Como ela é extremamente branca. Mais branca do que pareceu ser em todas as outras vezes. Talvez pela proximidade. De um branco que reluz. Na mão tem um pequeno saco de compras da Gulbenkian com o que parecem ser um ou dois livros. Ela caminha pelo corredor enorme, vira à esquerda e eu sigo, perdida mas à espera de acertar, em frente, para o meu quarto. Pontualíssima para o evento que começa daí a 15 minutos.Como um dia escreveu Anabela Mota Ribeiro:  "não é uma brasileira do samba, de pele morena, de jeito dengoso. É uma mulher que conjuga o verbo flanar com frequência. Que regressa a casa com as malas cheias de livros. E que gosta de dançar no Lux e de ouvir fado em Alfama. Imensamente requintada, sofisticada. Delicada". Subscrevo na totalidade.

As minhas questões, que não me abandonavam: Quem se lembrou de juntar estas duas pessoas? E a segunda, por consequência era: Como é que ela aceitou o convite? Nunca fui politicamente correcta, para o bem e para o mal.

Se a moderação, os convidados da mesma mesa, e/ou o público não forem adequados, acaba por ser decepcionante. E eu que tinha (quase) a certeza que seria, tive que fazer a prova dos nove. Pagar para ver. Então, juntar uma cantora consagrada, que a maioria conhece (apenas) de cantar mas desconhece as suas outras artes como escrever, compor, desenhar, compilar e o excelso domínio da língua portuguesa.  Um moderador que é praticamente desconhecido, que eu desconfio que ninguém naquela sala conhecia, à excepção do anfitrião (e algumas pessoas que se podiam contar pelos dedos de uma mão). E finalmente,  “o gajo que escreve cenas”, como o próprio se descreve e parece gostar. Quem se define assim já não pode ser alguém cuja qualidade literária é algo muito aprofundado. Ela tira um livro, um ipad, iphone, talvez um caderno e um lápis. Os outros nada. Eu sei que deve haver algum lugar para o improviso. Mas nada? Ela lê talvez dois poemas de amor do Fernando Pessoa.

“O gajo das cenas” é só piadas. Cita uma carta de amor, eleita a melhor de todos os tempos, pelos americanos. O americano comum não é nenhum sinónimo de qualidade. Com um humor tão fácil e tão popular. Tem a mania que é engraçado. Um cita Machado de Assis e outro cita Johnny Cash. Se, pelo menos, citasse Leonard Cohen ou Dylan. A necessidade de fazer rir toda a gente (mesmo que não tenha piada nenhuma, para mim), um palhaço (no mau sentido da palavra). E toda a gente se ri. Serei apenas eu que não tenho vontade de me rir? Será que não tenho sentido de humor? Sou eu apenas que já não me consigo rir do que não é sofisticado? Vende, dizem-me, um número inacreditável de livros por semana. Um best seller, portanto. Mas seja lá o que isso for. Neste país não é preciso grande coisa para se ser best seller. Não me interessa escritores nem livros cujas citações que fazem são de Johnny Cash e das músicas dos Clã e das escritas de Carlos Tê. Percebi hoje, finalmente, o sucesso deste pseudo escritor. Pelo menos tem a noção que é ridículo. "Gosto de ti como de arroz". Usa exemplos de de futebol. Que vergonha, para mim, juntar estas pessoas à mesma mesa. Com tanto de tão bom em Portugal. Mas sala está cheia para o ver. Essa é a verdade. A plateia está cheia de gente muito produzida para esta hora da manhã e para este dia da semana. Dirão que 97% são mulheres e 3% são homens. 

Ela tenta em vão elevar o nível de discussão. Cita um verso de uma música sua, cuja letra foi escrita pelo António Cicero:"Faço longas cartas para ninguém". Nos tempos mortos, em que ouviu mais do que falou, rabiscou e citou Oswald de Andrade: "Amor/ Humor". Termina a dizer que a sua representação do amor é a palavra "revolução". Os exemplos de cartas de amor que citou: as cartas que enviava para a avó quando chegou ao RJ, as cartas que alguém na Central do Brasil quando não se sabe escrever.

Uma das coisas mais bonitas que ouvi, e a melhor intervenção, foi a história de uma senhora que contou a história da avó que era analfabeta e que aprendeu a escrever, já depois dos 40, para escrever cartas de amor para o avô.

O que me chocou foi o politicamente correcto do Luís Osório, que supostamente pertence à elite, e que o elogiou dizendo que gostou muito de o ouvir. Pois eu não. Lamento. E não tem nada que ver com muita gente ler os livros dele e da maioria dos livros dele serem lidos maioritariamente por mulheres. Tem que ver com cuidado, com profundidade, com a forma com que se aborda a temática. Aquilo que se chama estilo. Uma forma de escrever. Eu quando leio estou à espera de aprender, de melhorar, de me surpreender, de admirar. Não quero ler e achar que eu poderia ou saberia fazer melhor. Não me interessa uma literatura acessível, mediana, sem aprofundamento de nada, com um monte de futilidades e banalidades.  Estou farta desta conversa de cosmética e circunstância, do desejo e necessidade que se tem, permanentemente, de se evitar confrontos. 

Nada tenho contra o pseudo escritor, que eu acharia melhor definir como pessoa que escreve, não sei se livros. Simpatizei com a pessoa. Não o achei pretensioso ou à espera de ser mais do que aquilo que é. Achei-o genuíno e sincero. Sem pretensões.

Agora juntar estas duas pessoas foi um erro, desculpem.

Não parece mais tão tímida como diz ser ou como dizem que é. Tira constantemente os óculos para as fotografias. Ninguém lhe pede nada para assinar. Somente fotos. Ela é toda sorrisos e palavras delicadas. Mesmo cheia de pressa, não diz que não a ninguém. Promete encontro (por aí) de tarde. 

Copyright: Isabel Worm

Copyright: Isabel Worm

Copyright: Isabel Worm

Copyright: Isabel Worm

Copyright: Pierre Aderne




sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Das rosas

São pessoas como Adriana e Nestrovsky, e todos os grandes nomes da música brasileira, que dão a mais valiosa e sagrada imagem do Brasil no mundo. Um Brasil culto, informado, moderno, dos grandes escritores e poetas, que domina a língua portuguesa, que pensa, que tem opinião e (sobretudo) que não tem medo.

Já que as pessoas gostam tanto de classificar, este espectáculo é um recital em forma de lição de Adriana Calcanhotto com Arthur Nestrovsky, construído a partir da apresentação única feita na Biblioteca Joanina em Dezembro de 2015, aquando da comemoração dos 725 anos da Universidade de Coimbra. Nesse dia, para uma plateia de somente 100 pessoas, que só incluía convidados, Calcanhotto ainda tinha o cabelo comprido, ainda usava brincos compridos de filigrana da alta joelharia portuguesa, aguentou um frio daqueles, usou o mesmo vestido de veludo comprido preto e foi feita Embaixadora da Universidade de Coimbra.

Em Lisboa, os mesmos estão (sempre) presentes na plateia. Mísia, não foi esquecida nos elogios. Esta amiga é para Calcanhotto a “professora de fado e pastéis de bacalhau, entre muitas outras coisas”. O amigo David, que Adriana, achava por bem lá estar, e ele não falhou, foi tratado por “meu amor” e também foi lembrado pelo envio das manchetes da época sobre “o escândalo, o disparate e a heresia de Amália a cantar Camões”.  Mas “Amália é Amália e ela pode tudo”. Ana Vidigal estava ao meu lado, na segunda fila. Passaram por mim a quase brasileira e a especialista em Brasil, Alexandra Lucas Coelho, e o temido crítico de música do Público, Nuno Pacheco. Avistei ao longe Anabela Mota Ribeiro, Pilar del Rio, Eduardo Lourenço, Mísia, António Barreto, José António Pinto Ribeiro...
Adriana, entra a sorrir sob palmas ruidosas. Coloca cuidadosamente o violão a tiracolo. 

O cenário é minimalista. Uma mesa com uma jarra de rosas vermelhas, uma partitura onde tem o iPAD e os óculos, dois amplificadores, o banco e o microfone de Arthur Nestrovsky, que permanecerá vazio até à décima música. Adriana “de vestido de veludo de seda preto, largo, mangas compridas justas, decote em barco, aquele cabelo curtíssimo que lhe dá um ar antigo e mostra a linha do crânio, impressiona. Graciosa, cultivada, acompanhada pelo Arthur Nestrovsky, outro ser que irradia luz”. Estas últimas palavras são da Fernanda Mira Barros que descreveu em pouco o que eu não vou conseguir dizer com muito.


Copyright: Rita Burmester

O espectáculo começa com Tive um coração perdi-o cujos versos são de Amália. Adriana fala que conhecia os versos de Amália, tem até um livro, mas que nunca tinha prestado muita atenção “tanto quanto, quando”ouviu os versos na voz de Mísia. Para mim, que conheço as duas versões, esta versão em forma de balada sussurrada, não tanto de fado, ficou perfeita.

Segue-se Negro amor popularizada na voz de Gal Costa, um hit radiofónico no Brasil. É uma uma versão para português de Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti da canção  It’s all over now baby blue de Bob Dylan, o “nosso Nobel da Literatura”. Adriana sente-se escandalizada por acharem um escândalo Dylan ter sido galardoado com o Nobel. Aquela história chata de sempre de se poder achar que letra de música é menos de que poesia. A voz, nesta canção não atinge, de todo, a perfeição. Mas nesta, o verdadeiramente importante não é a versão mas a mensagem e o significado.

O outro de Mário de Sá-Carneiro que Adriana musicou “se é que se pode chamar isso de musicado”. A descoberta de Mário de Sá-Carneiro deu-lhe a oportunidade, para além de “o conhecer a ele mesmo, de conhecer pessoas muito interessantes que também gostam muito dele". E uma das pessoa mais interessantes que ela destaca é a “Professora Cleonice Bernardinelli que é uma amante e especialista em língua portuguesa. Fizeram alguns saraus juntas “ela fingindo que lê porque ela tem uma memória maior que toda essa sala aqui reunida”.  Cantou em forma de fado  Senhora dos olhos lindos, que Cleonice Bernadinelli lhe pediu, especialmente, para musicar. Genialmente tocada e inesquecível versão. Na sequência, explica que Cleonice Bernardinelli não quer ser chamada de Professora nem de Dona mas apenas de Cleo “para ficar mais próxima da gente, ela tem 101 anos, eu entendo perfeitamente”. Destacou que têm muitos interesses em comum: nasceram as duas no século passado, gostam de Mário de Sá-Carneiro, de ovos moles de Aveiro e gostam muito de Dom Dinis. Na ocasião do concerto na Biblioteca Joanina, dentro da Universidade de Coimbra, “tinha que cantar Dom Dinis, claro”. Relata que quando voltou para o Brasil, ligou para ela e disse: “Cleo, eu cantei Dom Dinis na Biblioteca Joanina em português arcaico” ao que ela respondeu: “Pra quê isso menina? Eu passei isso tudo para português moderno em 1953”. A coincidência improvável é que exactamente o poema O que vos nunca cuidei dizer (cantiga de amor), pelo qual Adriana se interessou, não estava traduzido para português moderno.  “Então, por culpa exclusiva da Professora Doutora Honoris Causa por Coimbra, Cleonice Serôa da Motta Bernardinelli, serei obrigada a cantar a primeira estrofe de uma cantiga de Dom Dinis em português arcaico, me perdoem”.

Depois seguiu-se a canção a cappella do trovador provençal Arnaud Daniel Canso do ill mot son plan e prim traduzida em português por Augusto de Campos Canção de amor cantar eu vim. Adriana chamou-lhe o “Bob Dylan do séc XII”. Mas ao contrário de Bob Dylan, Arnaut Daniel era “muito rarefeito, de um artesanato poético incrível. Ele fazia um tipo de trobar clus. Um trobar muito refinado, muito sofisticado. Foi o inventor forma poética sextina” [sestilha -estrofe de 6 versos de 7 sílabas e rimas simples). “Foi recuperado por Dante na Divina Comédia onde é a única criatura que fala na sua língua nativa (provençal). Mais tarde, Pound, recupera-o de novo. Lança a semente da alta poesia moderna europeia. Nas iluminuras, os trovadores aparecem fazendo gestos. E cada gesto, cada ângulo de cotovelo, cada quebrada de punho tem um significado”. E Arnaut Daniel aparece sempre como “olha como eu sou maravilhoso, olha como eu sou rarefeito, olha como sou incrível”.
Seguiu-se a Poética do eremita de Fiama Hasse Pais Brandão pelo qual Adriana se apaixonou à primeira vista. Referiu a sua dificuldade de entrar nessa poesia tão densa e tão hermética. Esta foi esquecida em Coimbra.


Copyright: Márcia Lessa

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Adriana terminou a actuação solo com uma versão de Com que voz de Camões eternizada na voz de Amália. Há algum tempo atrás, Adriana soube do escândalo (através do amigo David de Lisboa que lhe mandou as manchetes da época) que foi Amália cantar Camões. Assim como o escândalo de Bob Dylan ter sido galardoado com o Nobel da literatura. “Eu fico escandalizada por alguém se escandalizar com isso”. As manchetes da época classificavam: “Isso é um escândalo. Isso é um disparate. Isso é uma heresia. É Camões. Ela não tem direito de fazer isso”. E o outro lado dizia: “Ela é Amália, pode fazer tudo o que quiser”. Juntos, Amália, Alain Oulman e Camões fizeram Com que voz. Que balada linda ficou a versão de Adriana.

“Não é possível disfarçar para vocês que não preciso mais dos óculos”. Assim começa a segunda parte, em que Adriana lê o poema Mortal loucura de Gregório de Matos no iPAD e entra Arthur Nestrovsky que faz o eco (final de cada verso que era a última parte da palavra anterior), na versão musicada de Zé Miguel Wisnik. O domínio do violão de Nestrovsky é do nível académico. Gregório de Matos nasceu em Salvador mas “era de nacionalidade portuguesa, como todos os que nasciam no Brasil no séc XVII. Estavamos até pensando nisso, em recuperar isso, devíamos todos voltar para cá do jeito que as coisas vão no Brasil”. Cantava os seus versos pelo Recôncavo baiano com uma violinha de cabaça.

Depois fizeram um salto de três séculos e passaram para Vínicius de Moraes, “um extraordinário poeta de livros que viria a tornar-se um extraordinário letrista de canções e também compositor”. Adriana diz (de cor) Soneto de Corifeu, tão lindo.

E a seguir cantou Valsa de Eurídice, letra e composição musical de Vinícius  que a escreveu como presente de aniversário de 15 anos da filha Susana (mulher de Adriana Calcanhotto, falecida em 2015). Esta canção termina, também, com a palavra saudade: “Pensa que a saudade/ mais do que a própria morte/ Pode matar-me/ Adeus”. Para além de ser um letrista maravilhoso que compôs meia dúzia de canções incontornáveis do cancioneiro popular brasileiro. No entanto existe alguma controvérsia: “Susana andou fazendo uns cálculos e descobriu que quando a música foi feita ela já tinha 16...”. Esta valsa foi incorporada anos depois no musical Orfeu da Conceição. Vínicius  teve a primeira ideia da junção da tragédia grega com a cultura negra do povo do morro do Rio de Janeiro. Numa noite, perto do Carnaval, teve uma inspiração fulgurante e passou a noite a escrever praticamente o texto inteiro que viria a ser o Orfeu da Conceição. E para musicar o texto ele procurou um arranjador que estava a começar e tinha muito talento, António Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. Seguiu-se outra canção de Vinícius de Moraes compositor, Medo de amar: “...Porém, não se surpreenda se uma outra mulher/ Nascer de mim, como do deserto uma flor/ E compreender que o ciúme é o perfume do amor”.

Seguiu-se a belíssima Noite de São João de Alberto Caeiro musicada por Fred Martins. Para mim, um dos momentos mais bonitos da noite. Mais uma vez, como as flores que deram o nome a esta lição, Adriana leu um poema sobre rosas, As rosas com bolores de Adília Lopes. E Segue o teu destino de Ricardo Reis e musicada por Suely Costa.


Copyright: Márcia Lessa

Há uns anos, a Universidade de Coimbra decidiu atribuir o título de Doutor Honoris Causa ao Reitor da Universidade Federal da Bahia, à época, Edgardo Santos. Esse foi um homem extraordinário que coincidiu com um momento extraordinário da história do Brasil. Foi um período realmente muito curto de florescimentyo da cultura brasileira, de cerca de 10 anos que incluiu: invenção da Bossa Nova, movimento de educação pública, desenvolvimento da arquitectura moderna brasileira, a nova capital do Brasil- Brasília, o cinema novo, o Brasil foi bicampeão de futebol com Pelé. Uma época em que Juscelino Kusbichek começa o seu mandato em 56 até à implementação da ditadura militar em 64, interregno democrático, de marcado crescimento económico e cultural promoveu o supra descrito. Então o Edgardo Santos, Reitor da UFBA, considerado um cosmopolita levou muitos investigadores convidados de fora para a universidade, incluíndo Walter Smetak, um músico suiço com o qual estudaram Caetano Veloso, Tom Zé e Gilberto Gil. Então aquando da vinda de Edgardo Santos, foi convidado também Assis Chateaubriand, o magnata das comunicações, uma espécie de Citizen Kane brasileiro. Como ele não pode vir, convidou Dorival Caymi o representasse, representando a Bahia. Então Caymi veio pela primeira vez a Portugal com a cantora Doris Monteiro. Passou alguns dias aqui e teve alguns encontros, alguns deles memoráveis, incluíndo o encontro com Amália. Diz-se que ali ocorreu “o casamento entre o samba e o fado”. Se o casamento foi ou não consumado, não se sabe. Quando Caymi estava a caminho de Coimbra para a cerimonia, parou nas Caldas da Raínha e existe uma fotografia muito bonita dele junto de um roseiral na estrada. A partir dessa experiência, Caymmi compôs a canção que deu o nome a este espectáculo Das rosas, que eu achava que viesse do Milagre das Rosas da Raínha Santa Isabel (mulher de Dom Dinis).
Sem nenhuma palavra a apresentá-la a seguinte foi a lindíssima Cajuína de Caetano,cantada em dueto,com uma letra tão enigmática que Arthur Nestrovsky explicou:

Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina


Aqui Nestrovsky dá-nos uma verdadeira aula de metafísica filosófica, com perguntas sem resposta e os seus significados. “Existirmos: a que será que se destina?”. Convenhamos que um autor que é capaz de fazer uma canção com a pergunta das perguntas não é pouca coisa. Esta é uma versão da pergunta existencial do filósofo alemão Martin Heidegger (cujo livro, Nestrovky em Coimbra, citou em alemão, uma vez que nas próprias palavras, a plateia devia ser unanimemente constituída por académicos) "por que existe afinal ente e não antes nada?". Existe outra formulação dessa pergunta num conto Manuelzão e Miguilim de Guimarães Rosa, na cena final, em que o menino Miguilim questiona a mãe: “Mãe, mas por que é, então, para que é, que acontece tudo?”. Heidegger pergunta isso na terceira pessoa, a voz do pai fazendo a pergunta de fora; Guimarães pergunta do ponto de vista do menino confrontado com o mistério da existência; e Caetano faz essa pergunta de um modo muito diferente. Existir, neste caso, é ao mesmo tempo substantivo e verbo. A cena da canção remete para o encontro de Caetano Veloso com o pai de Toquatto Neto (amigo e parceiro de Caetano na época da Tropicália que se suicidou no dia do próprio aniversário) em Teresina, capital do Piauí: “A flor já é um presente em si, é uma dádiva, não é uma coisa que vai durar, que vai permanecer. O que permanecerá é o gesto do presente.

Já a rumar para o final, canta Morro dois irmãos de Chico Buarque, que fez parte do repertório do seu disco A fábrica do Poema. Lê depois o poema do Canção do exílio de Gonçalves Dias: “Minha terra tem palmeiras,/ Onde canta o Sabiá;/ As aves, que aqui gorjeiam,/ Não gorjeiam como lá. A penúltima canção foi Sabiá. Com versos de Chico Buarque aos 24 anos e música de Tom Jobim. Esta canção é uma espécie de Canção do exílio. A canção Sabia ganhou o festival da canção no Maracanazinho sob os apupos da plateia porque não perceberam o significado da canção. É sobre um lugar imaginário, um lugar que não existe ou que não existe mais. O sabiá na palmeira não canta, eu que sou bióloga, aprendi isso com um músico). Arthur não esquece de referir que não se cumpriu esse desejo do Brasil, um país que ainda não se cumpriu, e que ainda há pouco perdeu uma grande oportunidade. Sempre velado, nunca directo, foi o mais claro que conseguiu ser na crítica política à situação do Brasil actual. Não se ouviu, como nos concertos de Caetano, “Fora Temer”. Não sei se porque as pessoas estão demasiado desanimadas ou se não eram politizadas... Fica a pergunta por responder.

Termina em apoteose com o pout porri com Coimbra e Chega de saudade com sotaque brasileiro e com melodia de bossa nova, que termina com toque e gesto de Carmen Miranda, e a palavra saudade com sotaque português.

No encore do Porto, Adriana disse que era a primeira vez de Arthur Nestrovsky no Porto: “Eu avisei a ele”. E que também disse: Esta sala parece um pouco fria”. Ao que ela respondeu: “Espera”.Confidenciou que na primeira vez que esteve no Porto com Dé Palmeira e que se lembra que era numa sala com cortina e que ele disse enquanto a corina fechava e olhava para ela: “Isso não é uma platéia, é família”. Como no decorrer do espectáculo faltou o que eles chamaram de “maior compositor gaúcho”, Lupicinio Rodrigues: Nunca e
Voltou para um segundo encore: “Em que é que posso ser útil?” e só em Lisboa terminou com duas músicas: Esquadros e Inverno. Em Coimbra e Porto ficou-se, apenas, pela primeira. O Porto, ah o Porto, acompanhou baixinho.
Comentei com a Anabela Mota Ribeiro o quanto este espectáculo/concerto/recital mais parecia uma aula. A Ana Vidigal classificou-o no seu blog como “lição”. Essa é a verdadeira palavra, a que me faltava. Uma verdadeira lição de literatura e de história da cultura e música brasileira, principalmente dos últimos 50 anos. Este modelo não é totalmente desconhecido nem inovador. Assisti por duas vezes ao que Maria Bethânia denomina de “recital” Palavras. A diferença é que as histórias, referência e notas de rodapé não são tão profundas nem extensas. Ao contrário de Nuno Pacheco, que classificou  de “extensos enquadramentos, explicações e contextualizações” e aconselha que esta é uma “jóia por lapidar, onde a música e a poesia só terão a ganhar com um corte drástico no didactismo”, eu acho que foi magistral. A outra crítica que faz é à voz de Adriana: “a sua voz não esteve nos melhores momentos”. Esta é a diferença entre um crítico e uma leiga. Um crítico é imparcial e uma leiga gosta ou não gosta. E este não era um espectáculo de canção. E Adriana não é uma interprete virtuosa como Gal, Bethânia ou Elis. Então, qual o problema da voz?

Quando se sai do espectáculo quase não se sabe o que fazer com tanta informação. Sai-se de coração cheio. Depois da ovação catártica em Coimbra, quando Calcanhotto, surgiu no palco para o encore com a capa de Lente, ela que é actualmente Professora Convidada da Universidade de Coimbra onde leccionará neste segundo semestre na Faculdade de Letras, a fasquia para o Porto ficou muito alta. Mas o Porto, com as suas gentes tão sinceras e espontâneas, não desiludiu, mais uma vez.


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