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terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Castelo Grinzane Cavour

21 de Outubro de 2018

Este castelo fica aproximadamente a uns 16 Km de Alba. Faz lembrar o Douro, sem rio. Embora a imagem que eu tenha do Douro não seja a da minha memória, porque esqueci as vezes que lá estive, tão tenra era a minha idade. Desde que tenho idade para não esquecer, ou deveria, nunca mais lá fui. Mas digamos que a imagem romântica que eu tenho do Douro Vinhateiro é das imagens e fotografias dos amigos estrangeiros aos quais aconselho. São montes e vales repletos de vinhas muito bem organizados com graus proporcionados de inclinação, com o rio no fundo. Pois bem, a vista que se tem do Castelo Grinzane Cavour  é parecida, talvez com menor inclinação e sem o rio (que só acrescenta beleza). Não visitei o museu do castelo. Vi apenas a cafetaria e a enoteca. Tem um restaurante, cujo chefe já trabalhou no  Louis XV do Alain Ducasse, em Monte Carlo. Muitos adolescentes a ler deitados na relva. Muitos turistas estrangeiros. 

É meio da tarde e eu entro num bar cujos snacks incluem queijos, salames e presunto. E vinhos vendidos a copo de Barbera, Barberesco e Barolo. Está um dia quente. Temperaturas de verão. Mas esta luz triste, amarelada, turva, lembra-me que estamos no outono. Para mim, a pior estação do ano. Acabo a comer um prato de queijos diferentes dos de ontem. Igualmente bons. E com isto lembro-me da Milly Lacombe que diz constantemente que a mãe (italiana) poderia só viver com queijos e vinho. Infelizmente, nunca tive um fígado e uma vesícula biliar irrepreensíveis e sei que vou padecer muito brevemente destes abusos de vinho tinto e queijos.








Ontem à noite, seguindo o conselho de pessoas de Alba, e sendo o Festival da trufa branca, fui a um restaurante chamado Museum, localizado numas ruínas romanas. Queria provar as trufas brancas em Alba. Já havia provado, acho que duas vezes, e não gostei. Mas como não provar esta iguaria na terra natal? E um copo de vinho tinto Barbera, o que me ensinaram ser frutado, ao meu gosto. Barbedesco e Barolo, tenho aprendido neste dias, são demasiado fortes e secos. Trouxeram-me pão caseiro e uma entrada (mimo do chef). E água com gás (que foi o que me salvou). Quando veio a pasta com as trufas era um acumulado do que parecia ser taggliatelli do tamanho da palma de uma mão (pequena) de ovo e manteiga e raspas finas de trufas brancas, muitas. Eu sei que não tinha muita fome, e tavez estes pratos sejam para ser comidos a morrer de fome. O cheiro arrumou-me logo. Para além do mais, o meu grande amigo R. havia-me dito que "não era a cena dele". O meu pai quando não gosta muito de uma comida diz que não aprecia. Eu poderia dizer o mesmo, fosse o caso. Mas detestei mesmo. Não volto a comer nada com trufas brancas. O que salvou a noite foi uma sobremesa. 





Alba, muito concorrida nesta altura do ano, tinha todos os hoteis esgotados há mais de duas semanas. No Booking vi a classificação de um seminário como excelente e decidi arriscar. Muito barato para Itália, e mais barato ainda para esta região de Itália. Cada noite ficou por 50 euros, sem pequeno almoço. Foi uma agradável surpresa, a combinaçao entre o silêncio, a arrumação, a simplicidade de um seminário com a modernidade, as grandes dimensões, a comodidade e a limpeza de um quarto de hotel. Para além do mais, as duas semhoras responsáveis eram de uma simpatia enorme e até me foram buscar à estação de comboio. Melhor não podia ter sido. Neste fim de semana, para além de ser o Festival da Trufa Branca de Alba, juntou-se a feira Medieval. Um mar de gente. Ruas entopidas. Muitos jogos, muitas barracas a vender avelãs torradas, vinhos e doces regionais. Barracas de comida de rua com todo o tipo de churrasco, peixe frito, polenta e hamburguers.






A viagem de comboio para Alba é muito bonita e incluiu a mudança de comboio em Torino. Mesmo quem como eu não morre de amores por naturezas bucólicas, aconselho esta viagem porque combina paisagens diferentes, arquitectura diferente do habitual em Itália com a gastronomia e o vinho, que também são cultura.

terça-feira, 23 de outubro de 2018

Lectio Magistralis

Entro no Teatro Sociale  Giorgio Busca a poucos minutos da hora marcada. Sala bonita, parecida com o Teatro Nacional S. João. A plateia está cheia e como só restam lugares longe do palco opto por um dos camarotes. Muitos intelectuais, muitos jovens, muitos adolescentes. A mulher está sentada na segunda fila.

No palco está apenas uma cadeira e uma pequena mesa. António Lobo Antunes (ALA) entrará daí a poucos minutos para iniciar a Lectio Magistralis do prémio Bottari Lattes do qual foi o vencedor de 2018. A cerimónia de entrega será no dia seguinte no Castelo Grinzane Cavour, Património Mundial da Unesco.

Quem apresenta António Lobo Antunes descreve-o como "muito conhecido em Itália, na Europa e no mundo". O teatro repleto numa cidade pequena como Alba é o exemplo disso. Continua com a introdução da biografia de ALA, destacando a sua formação como médico psiquiatra, principalmente a sua experiência como médico na guerra em Angola "o Vietname português". Seguiu-se a bibliografia, com o apresentador a mostrar-se um conhecedor da obra, sem necessitar de ler para destacar cada um dos livros traduzidos. Elogia a ligação de ALA à literatura e ao cinema italiano e a narrativa inovadora. Destaca a imaginação de ALA, e os cenários dos seus livros, Lisboa e África ficcionadas, realidades que não existem. Há também uma pequena leitura do livro "Não é meia-noite quem quer", o último livro traduzido em Itália. 

António Lobo Antunes entra no palco debaixo de estrondosas palmas. Andar arrastado. Os anos têm visivelmente passado por ele e deixado marcas, fisicamente. Começa a falar com uma voz inaudível em português. Tem tradução simultânea. 

Começa por dizer que não fará nenhuma Lectio Magistralis. E o monólogo inicia-se pela sua relação com os livros aos 3/4 anos. Aprendeu a ler muito cedo. Divaga entre a morte, tratada como desconhecida, e os livros que começou a ler, desde Oscar Wilde a livros franceses. Fala dos irmãos, de como eram todos bons alunos, o contrário dele. Não estudava. Só lhe interessava escrever e ler e o hóquei. Passa para a relação com o pai que quando leu as primeiras coisas que escreveu foi muito encorajador: "Isto não presta para nada". Mas ele próprio tinha a certeza que ia escrever coisas extraordinárias. Aos 14/ 15 anos era hiperdotado e começou a enviar os textos, sob pseudónimo, para o jornal. Escrevia de tudo poesia, conto, novela. Estava convencido que era um génio. E como queria ser escritor, quando o pai perguntou qual o curso para o qual queria entrar, pensou em Letras. E o pai, como era muito democrata, disse: "Estás matriculado em Medicina". Então, mais precoce que a maioria, aos 16 anos entrou em Medicina. Nunca tinha visto um cadáver. Mas tudo nos primeiros anos envolvia cadáveres. Tinha medo. Essas aulas imensas de 4 horas provocavam-lhe terror. Mas continuou sempre a escrever e enviava coisas para a Casa dos Estudantes do Império (que defendia a libertação das colónias). E foi chamado à Polícia política. Como era um Lobo Antunes disseram-lhe: "O menino vá para casa e veja se não reincide de andar com comunistas". 

Fala da divisão social que existia na ditadura entre ricos e pobres. Das quatro ou cinco empregadas que tinham em casa. Das diferenças sociais que existiam. A missa das empregadas às 7 da manhã separada da missa dos patrões ao meio-dia, com direito a homilias mais longas é um dos exemplos dados. A igreja católica não é poupada, destacando os grandes almoços que havia em casa com padres e bispos que comiam e comiam: "essas santas criaturas".A ditadura também não é poupada. A existência da polícia política agressiva e temível, muito mais para os amigos do que para ele, que era um privilegiado.

Fala da sua viagem a Pádua de carro, ainda criança, e o pai a querer parar em todos os museus dos países por onde passavam. O pai queria ver todos os Tintoretto e ele achava uma chatice e que "gostava dos escarradores". Conta o episódio do escritor que perante As meninas de Velasquez no Prado ficou a olhá-lo muito tempo, calado e quando lhe perguntaram o que achava respondeu: "Onde está o quadro?", a mais bela crítica de arte q ouviu.

Fez o curso com várias reprovações mas no fim apaixonou-se pela Medicina. Escolheu Psiquiatria porque achava que dava menos trabalho. Foi para Londres fazer um estágio e quando volta é chamado para a guerra. Pensou em fugir. "A esquerda ia fazer a revolução para os cafés de Paris e voltava a votar na direita". Mas como podia fugir se escrevia em português? Tinha que estar em Portugal. E achava que a ditadura, que tinha começado em 1926, nunca iria acabar.

Exalta os militares, os seus soldados. Alguns deles nunca tinham visto o mar: "Que rio é este tão largo e com tanta espuma?". A maior parte dos soldados era muito pobre. Contou outro episódio que se passou há uns anos, no Porto, num sítio muito chique e os "seus" soldados apareceram para a apresentação do livro e o professor responsável pela apresentação disse: "O António gosta muito de pessoas humildes". Ao que ele respondeu, indignado: "Os meus soldados não são gente humilde. São príncipes. Está a ouvir? São príncipes!". E a partir daí começaram a aparecer com cartazes "Os príncipes de António Lobo Antunes. Quanto à guerra. propriamente, só falará de um dos intervenientes da revolução, Ernesto Melo Antunes, que no meio de um tiroteio à noite andava desprotegido e com uma lanterna: "Sabes, é que às vezes apetece-me morrer". Recordará a única vez que chorou na vida quando recebeu um telegrama a dizer que tinha uma filha. Foi chorar imenso tempo e outro oficial colocou-lhe a mão no ombro, sem dizer nada. E essa mão silenciosa e a sua importância, nunca mais esqueceu.

Recordou a dificuldade de voltar à vida real depois da guerra. E também a dificuldade de publicar o primeiro livro. Deu o manuscrito a ler a dois amigos: "um disse-me que devia tirar a primeira parte e o outro disse-me que devia tirar a segunda...". O livro foi recusado por todas as editoras em Portugal. Depois foi publicado por uma pequena editora e na sessão de lançamento "estava eu, o editor e a empregada da editora". E foi um acontecimento. Vendeu muito. O irmão Miguel até lhe disse: "Tens que tirar a fotografia da conta-capa porque ouvi dizer "deve ser uma porcaria mas ele é tão bonito". 

Falou do imenso orgulho que foi conseguir um agente em NY e ter sido publicado pela Random House e de ter boas críticas no The New York Times e todos os mais importantes jornais americanos. De como largou a Medicina para se dedicar em exclusivo à escrita. Continua a fazer o mesmo horário. Escreve das 8:30 até à uma e depois das 2:30 às 8 e depois mais um bocado à noite. Porque escrever, segundo ALA, é sobretudo trabalho.

Tem andado a reler Dickens. Cita de memória sobre um filho que vai ver a mãe que está muito doente:
"- Tens dores, mãezinha?
-  Tenho a impressão que há uma dor aqui no quarto mas não sei se sou eu que a tenho".
Deu este exemplo para explicar o quanto é preciso de trabalho e sofrimento para chegar a uma frase destas. 

Não se esqueceu de destacar o quanto estava orgulhoso por ver publicada toda a sua obra na colecção Pléiade, o único português, a par com Fernando Pessoa, a integrar esta lista. E junta-se aos 3 escritores vivos a integrá-la. 

Um monólogo, com argumento conhecido, sem qualquer novidade para os que acompanham de perto os poucos eventos públicos que aceita, usado como guião da sua Lectio Magistralis. Despediu-se com: "Só entre os homens e por  eles vale a pena viver".

O público não teve direito a perguntas mas os seus admiradores tiveram a oportunidade de ver os livros autografados. Teve direito a uma pausa para fazer desaparecer dois cigarros. Filas desorganizadas de mais novos e mais velhos, com a predominância dos mais novos. Auxiliado pela tradutora nos recados que os seus admiradores faziam questão que entendesse, parava de escrever, olhava-os nos olhos, com o sorriso lindo, apesar de contido e tímido. Quase não se lhe vêem os dentes,e aquele segundo de atenção com um sorriso inocente de quem não está a entender o que se lhe está a dizer, mais por causa da surdez do que outra coisa. E responde, delicadamente, com a mão estendida: "Grazie".









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