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sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Festa do Livro no Palácio de Belém

23 de Setembro de 2017

A Festa do livro de Belém, organizada pela Presidência da República, regressou pela segunda vez aos jardins do Palácio de Belém. Programa diversificado que incluiu debates, muitas editoras representadas em pequenos stands, música, concertos, sessões de autógrafos e comidas.

No dia em que fui, a meio da tarde, estava indecisa entre os petiscos portugueses que iam do camarão da costa aos percebes, de tostas com sapateira aos pregos no pão. Havia opções vegan e piadinas, gelados e sumos naturais. De tudo um pouco. Fiquei-me pelo prego no pão, da espessura de uma fatia grossa de fiambre, acho que nem de vaca era e até sal faltava. Pouco depois, um burburinho à volta, e vejo o PR rodeado de marceletes a treinar selfies. Parece uma romaria. Abraça-se. Abraçam-no. Pega em bebés ao colo.  Baixa-se à altura dos carrinhos de bebés. Baixa-se à altura das crianças. Distribui beijos e sorrisos. Ouve-se: “É o presidente do povo”. Segue para ver as bancas dos livros, compra alguns.

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Ás 5 da tarde começou a conversa sobre o futuro do jornalismo, na cascata. Moderado pelo Carlos Vaz Marques, a discussão teve a participação da Clara Ferreira Alves, Isabel Lucas e Paulo Moura.  A Clara Ferreira Alves (sempre) no seu tom irónico/sarcástico começou por dizer que a resposta a essa pergunta seria: “Não tem futuro e vamos todos embora para casa”. Falou dos tempos de redacção, de como era importante o contacto humano. Mas que as coisas mudaram e está tudo à mão de um e-mail ou de um smartphone. É do tempo do telelex e do satélite. Falou de como os actuais jornalistas das redacções são mal pagos e trabalhadores indiferenciados. Falou do mês que passou nas últimas férias na Birmânia para escrever o próximo livro que será sobre o sudoeste asiático. Falou da culpa da Fox News de termos um Presidente americano anedótico como Donald Trump. E falou que o futuro da literatura e dos livros não está em causa. Caso contrário, não teriam sobrevivido a esta era tecnológica, e já teriam acabado.

A Isabel Lucas falou especialmente da sua experiência pessoal na América da campanha eleitoral. Das terras no meio do nada. E da tecnologia que via nos seus colegas de grandes orgão de comunicação social americanos. E que dependia de wifi grátis do Starbucks para enviar os seus textos.

O Paulo Moura falou da sua experiência como repórter de guerra e freelance. Da quase impossibilidade de se ser reporter de guerra por conta própria sem suporte de uma grande cadeia. Dos custos diários que nunca saõ menos do que 500 euros.

Todos falaram, com um certo toque de nostalgia, do tempo que não regressará.

No meio de nós estava o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, tendo preferido o meio por oposição à primeira fila.

Ainda tive tempo de ouvir os ensaios da Lisbon Poetry Orchestra – Poetas Portugueses de Agora – e Orquestra Académica da Universidade de Lisboa 


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segunda-feira, 11 de setembro de 2017

De Ana Hatherly a Tarkovski

Com Anastasia Lukovnikova, Mariano Marovatto, Matilde Campilho e Tomás Cunha Ferreira na Feira do Livro do Porto, mais precisamente, na Biblioteca Almeida Garrett. Uma sessão, como foi apresentado, com “palavras, imagens e um fio de música”. Foi (bem mais) do que isso.  Palavra dita, imagem, diversidade de idiomas e sotaque, som, música, real e passagem tempo.

Para os apresentar, Anabela Mota Ribeiro, leu o seguinte texto: “Um grande ecrã ao fundo, instrumentos, livros e quatro amigos no palco. Uma conversa de esquina a quatro vozes, um cordel que será desenrolado a oito mãos. Anastasia, Matilde, Mariano e Tomás são poetas, mesmo quando não são. Falarão da revolução e da memória, dos monumentos e do futuro, do silêncio, sem o ferir, e das estórias das ruínas. Com eles: Chris Marker e Chantal Akerman, Leonard Cohen e Susan Sontag, um canto tupi e as câmaras da NASA em direto do cosmos. Copacabana Mon Amour, Meredith Monk, as cores de Pancetti sobre o Tejo, o golo que Maradona marcou com a mão e outras impossibilidades. Maiakovski, James Bond e John Cage. Bashō, Darwin e os habitantes de todas as ilhas. São todos poetas, mesmo os que não são. Estão entre Ana Hatherly e Tarkovski, porque tudo sempre está”.

A primeira imagem (não sei bem se a primeira mas a que me lembro), na grande tela por trás dos quatro foi a de Philippe Petit (que atravessou as torres gémeas do Word Trade Center em 1974) a equilibrar-se num cabo, com a Harbor Bridge como cenário. Petit, o homem que desafiou as vertigens e que disse que nada é impossível. "O fio não tem medo".

De Helio Oiticica, o parangolé, que  Adriana Calcanhotto eternizou numa música como: “um rectângulo de pano de uma cor só/ E é só dançar/ E é só deixar a cor tomar conta do ar/ Verde Rosa/ Branco no branco no preto nu”. Haroldo de Campos referiu-se ao parangolé como uma “asa delta para o êxtase”.

Uma foto de Leonard Cohen, ao fundo. O dono daquela voz grave e sussurrada e cujo timbre nos cuidou tantas vezes. Aquele que viveu em Hydra, em Londres e no Chelsea Hotel em NY. Aquele que cantou Marianne e Suzanne. Aquele que disse que a resposta era sempre sim. Aquele que nos ensinou tanto sobre tanta coisa. Que escreveu para os introspectivos, para os amantes platónicos, para os amantes de todos os graus de sofrimento, para os que se autoflagelam, para os traídos, para os que querem chorar e para muitos mais. E eternizou-se, para todo o sempre, enquanto houver som.

Falaram também de Bashô, o famoso poeta japonês, (re)conhecido pelos haicai (poemas de três versos e dezassete sílabas) .

Exibiram a imagem de John Cage a apanhar cogumelos no seu livro Silence. Sobre os cogumelos, de se saber ou não distinguir entre os cogumelos venenosos ou não, “como a vida seria chata sem uma certa incerteza”. 

Foram exibidas imagens em tempo real do espaço, de onde estamos a ser permanentemente observados, à la Orwell.

Leram Tarkovski em russo e em português.

Falaram de nitrogénio (em inglês é nitrogen), que não sei se quiseram dizer em português do Brasil, mas que em português de Portugal é azoto.

Marovatto e Tomás cantaram uma música inédita e outra de Caetano Veloso “Enquanto seu lobo não vem” que cita a Mangueira e a Avenida Presidente Vargas.

A imagem final foi de cruzamento com passadeiras em forma de pentágono, em Tóquio. Tempo real, lá amanhecia.  O tempo no espaço e o instante que passa.

Li algures que a Matilde nunca foi a NY nem aos EUA. “Quem diria por aquilo que escreve? É aqui que ficção se confunde com o real e a imaginação para formar geografias privadas e imaginárias? Quem sabe?

O auditório da Biblioteca Almeida Garrett estava composto, mas não cheio nem a abarrotar, como parece ter sido tendência em todos os eventos da Feira do Livro do Porto. No entanto, parece que o concerto dos Mão Morta & Remix Ensemble roubou parte do público. Eles nunca saberão mas foi o que perderam. O momento que não se repete.

Copyright: Anabela Mota Ribeiro




segunda-feira, 10 de julho de 2017

A última lição

Entra de óculos escuros numa sala totalmente escura. Ninguém percebe a razão. Ao contrário da primeira lição não entra com a capa de Doutora nem parece formal. Vem de t-shirt preta da Faculdade de Letras e o que parecem, ao longe, umas All Star. Nunca em nenhuma das aulas se apresentou tão informal. Quem a acompanha no palco está, igualmente, de negro. Num primeiro momento, pensei haver um significado para a escolha da cor. A representação da tristeza da última lição. O começo da saudade. A aula veio a mostrar-se totalmente diferente das anteriores. Mais curta. Sem intervalo. Mais canções. Menos palavras ditas. Menos preparação. Desta vez, não houve ensaiados e longos agradecimentos, com a pompa dos anteriores. Agradeceu a uma pessoa em particular, responsável pelas sapatilhas personalizava que calçava. Uma pintora que não pintava e que voltou a pintar por causa das suas aulas. Por isso, nas suas palavras, a sua missão já estava cumprida.

Está de luto pela tragédia "das queimadas". "Isso não pode ser pior a cada ano que passa". [O ser humano acha que controla tudo. Que todas as suas acções são inconsequentes. Há (até) um Presidente que considera o aquecimento global uma piada, um mito, uma invenção. E esta tragédia mostra, como tantas outras, que o ser humano nunca ganha uma luta contra a revolta da natureza. Como no Moby Dick, o Homem é sempre o elo mais fraco perante a grandeza do mais forte].

Nesta última lição, Adriana assumiu (mais) o papel de cantora em vez de professora ou leitora. Desta vez o palco era um palco não um estrado. Não havia uma secretaria, um computador ou um candeeiro, três dos objectos que a acompanharam em todas as outras aulas. Mas aquilo que poderia não fazer sentido nenhum, dada a desorganização inata, nas suas palavras, que desta vez foi mesmo visível, correu muito bem. A capacidade de improviso perante a pouca preparação desta aula mostrou uma das suas capacidades maiores. Sem ensaio. Sem treino. Sem preparo. Empírica. "No osso". Simples. E curta, como a vida. E mesmo assim, não desiludiu. Conseguiu prender a atenção das (tão poucas) pessoas que não compunham o TAGV. Maioritariamente brasileiros, claro. Tinha na plateia, nas primeiras filas, a autora da do texto sobre as rosas que se sacrificam pelo vinho. [Na aula anterior lerá um texto sobre como as rosas eram usadas para serem atacadas pelas pragas para que estas não atacassem o vinho].

Esta lição que tinha como tema Trobar Nova era supostamente para abordar poetas e/ou compositores contemporâneos. Começou por António Cicero, que nunca foi esquecido na maioria das aulas. Leu um poema. Tocou na questão da poesia e filosofia de Cicero (que dá nome a um dos livros). E deu a resposta de Cicero à pergunta "o que é ser poeta e filósofo ao mesmo tempo?": "Depende o que você quer dizer ao mesmo tempo".

Seguiram-se os poetas e as suas musas. E do tempo produtivo que tem passado em Coimbra, onde tem composto e musicado algumas músicas. Leu de forma performática, acompanhada pela guitarra de Gabriel Musak, um poema de Adília Lopes e no final arrancou devagar e sofridamente páginas de um livro.


A minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
cantaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou cortar-te a língua
para aprender a cantar

a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra

Contou a história de como reencontrou o músico brasileiro Gabriel Musak em Lisboa. (Cujo nome verdadeiro é Gabriel Homem mas que deixou de usar o sobrenome porque o homem está em baixo). E que quando o questionou sobre o que estava cá a fazer, ele respondeu: "Vim pra ver". Para ela essa frase foi tão inesperada é tão impactante que voltou para o hotel e compôs uma música. De facto, a canção foi conseguida.

Vim pra ver
Quando vi, vim pra ver
Dei por mim
Tava aqui, vim te ver
Faço o que?
Você não sabe o que me cabe
No silêncio, dor
No escuro, dor
No espelho, dor
Doi a felicidade
Mas não repare
Mas não se iluda
É que não se usa
Refrão sem Musa(k)

Seguiu-se a canção medieval do trovador galego Martín Codax:
"Quantas sabedes amar amado

treides comig’a lo mar levado

e banhar-nos-emos nas ondas!"

Falou da recente visita à Bulgária, onde descobriu telenovelas dobradas em búlgaro e onde a palavra música significa o mesmo. Tocou a canção Mentiras com a referência: "as novelas acabam mas as músicas não".

Cantou o poema Mortal loucura de Gregório de Matos, dizem que o maior poeta barroco brasileiro. Um poeta também conhecido como “Boca do Inferno” e que “influenciou muito o mau comportamento de muita gente no Brasil.


Na oração, que desaterra … a terra,

Quer Deus que a quem está o cuidado … dado,
Pregue que a vida é emprestado … estado,
Mistérios mil que desenterra … enterra
.
Quem não cuida de si, que é terra, … erra,
Que o alto Rei, por afamado … amado,
É quem lhe assiste ao desvelado … lado,
Da morte ao ar não desaferra, … aferra.

Quem do mundo a mortal loucura … cura,

A vontade de Deus sagrada … agrada
Firmar-lhe a vida em atadura … dura.

O voz zelosa, que dobrada … brada,

Já sei que a flor da formosura, … usura,
Será no fim dessa jornada … nada.

Seguiu-se Fanatismo de Florbela Espanca musicada e cantada por Fagner e que se tornou um sucesso no Brasil.

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida

Meus olhos andam cegos de te ver !
Não és sequer a razão do meu viver, 
Pois que tu és já toda a minha vida !

Não vejo nada assim enlouquecida ...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida !

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa ..."
Quando me dizem isto, toda a graça 
Duma boca divina fala em mim !

E, olhos postos em ti, digo de rastros :
"Ah ! Podem voar mundos, morrer astros, 
Que tu és como Deus : Princípio e Fim ! ..."

Elogiou a paciência de quem estava naquela sala para a ver e ouvi-la com o dia lindo que estava lá fora. Para último deixou a tradução da canção de Bob Dylan, o Nobel de Literatura, Negro amor. E como a memória lhe falhara e alguém na plateia mostrava saber de cor a música desafiou-o dizendo: “O que você sabe para me ajudar?”.

Desta vez, não houve saudades (ainda) visíveis na despedida, nem choro, nem palavras mais ou menos comovidas. Foi uma despedida como as outras, talvez a mostrar que a Professora/cantora não gosta, de facto, de despedidas. Alguém na plateia falou a capella do significado destas aulas e do quão revolucionárias foram para quem as assistiu e para a Universidade de Coimbra, instituição centenária. Ofereceu-lhe, por fim, uma rosa e um cravo vermelhos.





terça-feira, 21 de março de 2017

When breath becomes air by Paul Kalanithi

Nos últimos tempos, várias pessoas têm-me questionado sobre o meu (suposto) conhecimento literário. Essas pessoas, muito mais das letras, ficam sempre muito surpreendidas com a minha cultura literária e com a quantidade de coisas que já li e leio. Cada vez (mais) acho que os estudos e os graus das pessoas dizem cada vez (menos) sobre elas. As pessoas mais interessantes que conheci e conheço não se distinguem pelos graus académicos. E muito menos lhes dão a importância que os outros (acham que) têm. O que me desperta nelas é o interesse por qualquer coisa específica e, às vezes na generalidade, a vida. Afinal o que é ser interessante? O que é ser inteligente? E a importância que isso tem para a vida de cada um de nós? Mas essas são questões que não vou falar neste texto. 

Hoje vou escrever sobre duas pessoas da minha área de conhecimento. Pessoas  que dedicaram a sua vida à medicina e ciência. E com os quais eu aprendi tanto. Um deles é Siddhartha Mukerjee cientista, médico oncologista, professor, escritor sem ordem alfabética e/ou importância. Ganhou um prémio Pulitzer com o livro que é uma biografia magnífica sobre cancro The emperor of all maladies. E o último livro é, o não menos interessante, Gene. É casado com a grande artista plástica Sarah Sze e considerados o casal (mais) brilhante de NY pela Vogue. Para além disso, é giro e inteligente. Como quase todas as grandes figuras, é tímido. Quando eu estava em NY fui a todos os eventos, conferências, conversas só para o ouvir falar. E vi-o (algumas vezes) à espera do metro na 168 e a sair do metro na W4. Só olhar, discretamente para ele, sem que ele se apercebesse era uma maravilha. Um dia num cocktail, com a coragem dada pelo álcool pedi-lhe entre um copo de vinho, que me assinasse a versão inglesa do livro. Um meses mais tarde, numa conferência sobre cancro, na qual só chegou em cima da hora e saiu mal acabou a sua apresentação, corri para que me assinasse a versão portuguesa. Estas coisas são como os novelos, pega-se na ponta e vamos desenrolando até conhecer (mais, muito mais) mundo. Através dele conheci Primo Levi, do qual comprei e li toda a sua obra. E por causa dele conheci a Emily Dickinson, essa grande poeta que nasceu numa vila recôndita de Nova Inglaterra, da qual nunca saiu, não tinha mundo e daquele cérebro saíram aqueles poemas dos quais os olhos tinham visto tão pouco. Se é verdade que muitos dizem que escrever é autobiográfico, a obra de Dickinson mostra exactamente o contrário. Mukerjee deu-me a conhecer outro grande médico, escritor: Abraham Verghese, autor do livro My own country. Nascido na Etiópia, filho de pais indianos, formou-se em Medicina na India e fez a especialidade numa das cidades da America profunda no estado do Tennessee. Trabalhou dois anos em Boston onde o vírus HIV começava a ser conhecido e a vitimar muita gente, no início dos anos 80. E depois, quando foi regressou a Johnson City viu uma outra realidade de pessoas pouco instruídas e rurais infectadas com HIV. É desta experiência que ele fala no livro que lhe deu popularidade.

A segunda pessoa que quero falar é de Paul Kalanithi. Este, não conheci pessoalmente. Li uma das suas crónicas How long have I got left?, no The New York Times, na qual assumia a sua condição de doente terminal. Tal como Siddhartha, era médico (a terminar a sua especialidade em Neurocirurgia em Stanford). Tinha um Mestrado em  Literatura Inglesa, era culto, competente, genial, tinha um profundo amor à escrita e era um ávido leitor, tinha um futuro promissor, e falou sobre tudo isso e muito mais, na sua autobiografia de fim de vida que não chegou a terminar. O prefácio foi escrito por Abraham Verghese.

O primeiro capítulo começa com versos de T.S. Eliot e com a descrição da sua confrontação com a imagem da tomografia que mostrava “inúmeros tumores, a coluna vertebral deformada, o fígado completamente obliterado. Cancro amplamente disseminado”. Neste livro descreve a sensação de se ter  tornado doente e a sua vulnerabilidade. Das diferenças abissais entre ser um médico cheio de confiança e um paciente resignado.Os sinais premonitórios do cancro. O cansaço que o derrotava . As dores intoleráveis. O futuro brilhante com que sempre sonhou, que teria como neurocirurgião, evaporou-se num sopro. O marido e o pai presente em que prometeu tornar-se, e cumpriu, mesmo que por tão pouco tempo e em condições tão adversas. Do sonho que sempre teve de ser escritor. Da infância no Arizona. Das ausências do pai médico. De ter lido 1984 de George Orwell. O seu amor pela linguagem. Antes de entrar na universidade já tinha lido Edgar Allan Poe, Gogol, Dickens, Twain, Austen, Sartre, Shakespeare, entre outros. Para um americano criado no interior da América e médico, convenhamos que é invulgar. Durante a adolescência considerou os livros como confidentes, que lhe deram a mais vasta visão do mundo e que lhe abriram horizontes. Anos mais tarde tirou Literatura Inglesa e  Biologia Humana. Queria encontrar a resposta para a pergunta:  O que dá significado à vida? Por esta altura refere T.S. Eliot, Nobokov e Conrad como grandes referências. Quando fez o Mestrado em Literatura Inglesa em Standford, referiu a sorte que teve em estudar com Richard Rorty, o mais importante filósofo à época. A tese de Mestrado foi sobre Walt Whitman. Passou uma temporada em Cambridge, UK estudar História da Medicina, antes de entrar em Medicina em Yale. Foi aluno de Shep Nuland, um reconhecido e reputadíssimo cirurgião-filósofo, autor do livro sobre mortalidade How we die.  

Descreveu em pormenor o primeiro nascimento que foi também primeira morte a que presenciou. Ensinou-me o que é uma cirurgia Whipple (duodenopancreatectomia) uma operação complexa que consiste na remoção da cabeça do pâncreas, uma vez que o pâncreas se encontra na parte anterior e “coberto” por varias estruturas, envolvendo rearranjo da maioria dos orgãos presentes na cavidade abdominal.

Aprendemos tanto com este livro. Sobretudo sobre vulnerabilidade e humanidade, como andam de mãos juntas. Os médicos vêem as pessoas na sua forma mais vulnerável, assustados e o que há de mais privado neles. Depois, o seu talento para a escrita e as suas referências literárias fazem lembrar-me da grande obra de Tolstoi, Ivan Ilitch, com as devidas diferenças. Tal como em Portugal, nos Estados Unidos, os médicos tendem a escolher as especialidades menos exigentes (Ex. radiologia e dermatologia). No fim do curso de Medicina tendem a focar-se em especialidades que proporcionem uma melhor qualidade de vida, aquelas com menos horas de dedicação, melhores salários e menor pressão. Como 99% das pessoas escolhem o seu trabalho: quanto ganham, ambiente de trabalho e horas de trabalho. Neurocirurgia, como há uns anos o Prof. João Lobo Antunes discutiu em alguns dos seus ensaios sobre a mão, a perfeição do toque, a leveza da mão cirúrgica. Aqui Paul compara-a quase à perfeição. A exigência desta especialidade da Medicina que exige tanta técnica. A necessidade imperativa do treino da mente, das mãos e dos olhos. Da necessidade não só de serem os melhores cirurgiões mas os melhores médicos do hospital. As capacidades cirúrgicas são avaliadas pela técnica e pela velocidade: “Aprende a ser rápido agora. Mais tarde aprenderás a ser bom”. No bloco operatório todos os olhos estão sempre no relógio. Se o tédio é, como argumentou Heidegger, a consciência do tempo a passar, então a cirurgia é o oposto. Do conselho de comerem com a mão esquerda e de terem que aprender a ser ambidestros. Aprendemos pequenas coisas como as funções básicas que o hipotálamo regula: dormir, fome, sede, sexo. A loucura de trabalhar 100 horas por semana durante a especialidade. Viu muito sofrimento. O almoço típico dele, como vi muitas vezes do Presbyterian em NY ou no Methodist em Houston: Diet coke e um gelado. Escreveu sobre o receio que teve de se tornar o estereótipo médico de Tolstoi: apenas preocupado com a forma de tratamento da doença e desleixando a importância da parte humana. A excelência técnica não é tudo. Como neurocirurgião, o seu ideal não era apenas salvar vidas – porque todos acabamos por morrer – mas guiar os doentes e famílias a perceberem a doença e a morte. Todas as grandes doenças transformam os doentes. Deve tentar-se ser preciso, directo e certeiro mas deixar alguma margem para a esperança. Cita Heidegger “a consciência do tempo a passar”. Ensina-nos que a arte de falhar em neurocirurgia define-se por um ou dois milímetros: a ténue diferença entre triunfo e tragédia. A existência de áreas no cérebro que são quase sagradas ou invioláveis. Cita Montaigne: Se eu fosse um escritor iria compilar descrições de várias mortes de homens: deveria ensinar como morrer ao mesmo tempo que ensinaria a viver”. Descreveu ao pormenor as conversas com a médica oncologista, de como não voltaria ao hospital como médico. De como planeou tanto e esteve tão perto de conseguir. De como a oncologista se recusou a discutir com ele as curvas de sobrevivência de Kaplan-Meier. [A curva de Kaplan-Meier é um método estatístico standard que mede a sobrevivência dos pacientes em função do tempo. É a métrica que permite saber o progresso e que podemos perceber a gravidade da doença. Por exemplo,  no caso do glioblastoma a curva desce vertiginosamente até que apenas aproximadamente 5% dos pacientes estão vivos em dois anos].  De como no início da confirmação de diagnóstico quis saber onde se encontravam os melhores oncologistas de cancro do pulmão, das possibilidades do MD Anderson Cancer Center – Houston e o Memorial Sloan Katering Cancer Center – NYC. Seis dias antes do diagnóstico tinha passado 36 horas no bloco. Como tudo muda num instante. Tornou-se um inválido. Os passos seguintes foram prepará-lo, e tudo à sua volta, para a mudança abrupta de condição: de médico para doente. Com o passar dos dias, com a repetição de exames, com a teraputica, até mesmo os médicos, tão profundamente cientes da gravidade da sua condição, permitem-se ter (alguma) esperança. Discute que a palavra hope  combina ao mesmo tempo confiança e desejo. Somente 0.0012 % de pessoas com 36 anos têm cancro de pulmão. Paul tinha planeado uma vida de 40 anos entre ser médico e escritor. Os primeiros 20 como neurocirurgião e os últimos 20 como escritor. Como tudo se precipitou por causa do cancro terminal ele queria saber quanto tempo mais lhe restava para tomar decisões relativamente à sua carreira: “Se tivesse 2 anos de vida, escreveria. Se tivesse 10, voltaria à cirurgia”. Mas vida e morte não são uma ciência exacta. Cita Darwin e Nietzsche. Houve uma melhora após 6 semanas de tratamento com Tarceva. O cancro estabilizou. Voltou a ler literatura: Tolstoi, Kafka, Montaigne, memórias de doentes com cancro, tudo o que tivesse relacionado com mortalidade: “Foi a literatura que me trouxe de volta à vida durante esse tempo”. Cita Hemingway, Beckett. Ainda voltou ao trabalho. Faria uma cirurgia por dia, não acompanharia os doentes fora do bloco e não estaria on call. Ouvia bossa nova Getz/ Gilberto. O primeiro caso foi uma lobectomia temporal, uma das suas cirurgias predilectas. Passou a noite anterior a rever livros de texto de cirurgia e anatomia e todos os passos dessa cirurgia. Descreve com uma beleza única como decorreu o procedimento. Como Lobo Antunes referia repete a “forma mais elegante” de proceder. Para se aguentar tomava antieméticos, Tylenol e anti-inflamatórios não esteróides. “A morte pode ser um evento mas viver com uma doença terminal é um processo... Se soubesse que me restavam 3 meses passava-os com a família. Se fosse 1 ano escreveria um livro. Se me dessem 10 anos, voltaria e trataria doenças. Mas a verdade é que viver um dia de cada vez não ajuda”. Tinham passado 9 meses e operava até tarde ou até de amanhã. Chegava a casa tão cansado que nem conseguia comer. Decidiram ter um filho. Engravidaram por fertilização in vitro.

Repetiu a tomografia 7 meses depois de voltar a operar. Seria a última antes de terminar a especialidade. Antes de ser pai e de o futuro se tornar real. Apareceu um novo tumor, grande. Foi o seu último de no hospital como médico. Começou a quimioterapia. E com ela vieram os efeitos secundários: fadiga, fastio, vómitos, diarreia. Ler era impossível. Obrigava-se a comer. Foi internado para ser hidratado por via intravenosa. As metástases ósseas causavam-lhe muitas dores. Quase morreu quando a filha tinha 38 semanas. Esteve nos cuidados intensivos uma semana. Perdera 20 kgs desde que fora diagnosticado, 7 deles nessa semana horribilis. Cita Graham Green. A filha nasceu. Tinha o desejo de viver tempo suficiente para que a filha se lembrasse dele. O seu desejo não foi cumprido.

Morreu 22 meses depois de ter sido diagnosticado com um cancro de pulmão metastizado no estadio IV, aos 37 anos. Não terminou o livro. Não teve tempo nem vida para o terminar. Chorei como uma Maria Madalena. Então no epílogo escrito pela mulher Lucy, desfiz-me. Morreu no hospital 8 meses depois do nascimento da filha rodeado da família.


quinta-feira, 2 de março de 2017

Eu ando pelo mundo, a primeira lição de Adriana Calcanhotto

Uma formação na área dos estudos artísticos, na área dos estudos brasileiros vindo do exterior da Universidade. Muitos dos enchiam a plateia não eram alunos de Letras e nem da Universidade de Coimbra A formação humanística e artística é essencial para a formação integral de qualquer ser humano. O reitor que mais tempo exerceu essa função, durante 31 anos, nasceu no Brasil. A honra de ser tratada por “Professora” pelo Reitor da Universidade de Coimbra.

E ela, não desiludiu. Apresentou-se, cerimoniosamente, de capa de Lente às costas. Começou por agradecer a todos e a cada um pela honra de estar na Universidade de Coimbra, como disse o Magnifíco Reitor  é a “maior Universidade brasileira fora do Brasil”. A primeira aula da “Professora” Adriana Calcanhotto foi a falar sobre ela própria. A aula sobre a sua trajectória que classificou como “a situação mais difícil de toda a minha vida”. Uma coisa que disse não estar habituada, mas para quem a conhece e as suas entrevistas, poucas novidades ou revelações foram ditas.



Nasceu em 65, em plena ditadura no Brasil. Neta, filha e sobrinha de professoras. Não olha para trás. Tem péssima memória, “uma gaffe ambulante”. Nasceu no extremo sul do Brasil, Porto Alegre. Os pais conheceram-se em Buenos Aires e ela nasceu meio ano depois disso. Pais muito curiosos. Os pais ouviam música depois de jantar: pink Floyd, Piazzola, Miles Davis. A mãe ouvia muita música instrumental e o pai o que queria descobrir. Eram muito diferentes. O pai muito calmo e a mãe o oposto, “speed”. Tem um irmão 3 anos mais novo. Ouvia rádio com as “babás”. Ouviam jovem guarda no rádio. Um dia o pai chegou a casa mais cedo e ficou muito zangando, apavorado a achar que a culpa era dele. A música que ela guardou na memória desse tempo foi Devolva-me. Esta foi a primeira das músicas que cantou nessa tarde. Pediu “paciência e compaixão” se acaso não a soubesse tocá-la bem porque ultimamente anda “só lendo”.

Aos 6 anos, a avó ofereceu-lhe um violão de nylon. Quando lhe perguntou o que faria com aquilo a avó respondeu: “aulas”. O professor era apaixonado por João Donato e Tom Jobim, ou seja, apaixonado por piano. “As teclas são outro mundo”. Para a mão de uma criança de 6 anos aquilo era uma tortura. Abandonou o instrumento para mais tarde voltar. Uns anos mais tarde retoma o violão e faz por impulso uma safra de 30 canções expressando a sua infelicidade pela separação dos pais.

Uma tia, professora de língua portuguesa, ofereceu-lhe o livro de Clarice Lispector A mulher que matou os peixes. Este livro mudou-lhe a vida para todo o sempre. Sentiu-se uma leitora e não uma criança. Este livro, por mais que se leia, e por mais vezes que se volte a ele, parecerá a cada vez, novo e diferente. Sempre quis aprender a ler porque achava que essa era a porta para o mundo adulto. Queria ser adulta para não cumprir ordens. Aprendeu a ler sozinha. Acreditava que o mundo dos adultos era diferente do das crianças, para melhor.

Falou da sesta da mãe que era preciosa e da técnica magnífica que desenvolveu para lavar louça, tarefa que adora. Ouvia rádio baixinho. E nesse tempo começou a ouvir outras coisas diferentes das que ouvia com as babás. Vinícius de Moraes, por exemplo. E achou aquilo diferente, não superior, mas diferente e pensou “Eu daria a minha vida para ver isso acontecer”. Nessa época ouviu o poema Traduzir-se de Ferreira Gullar cantado por Fagner. Foi a música que se seguiu. Ferreira Gullar, de quem veio a tornar-se amiga, nasceu em São Luís do Maranhão. Sempre quis ser um poeta do povo, um poeta acessível. Aprendeu unicamente português. Para ele, numa terra longínqua, distante dos grandes centros urbanos, tudo chegava depois, demasiado tarde. E por isso, para ele, a poesia era coisa de poetas mortos. Durante muito tempo ele achou que os poetas não eram pessoa vivas. Augusto de Campos, contemporâneo de Ferreira Gullar, era o oposto. Erudito, tradutor dos grandes clássicos em várias línguas, cosmopolita de São Paulo. Adriana ouviu um poema de John Donne traduzido por Augusto de Campos e musicado por Péricles Cavalcanti na voz de Simone, chamado Elegia (que  cantou à cappella). Esta foi uma época áurea no Brasil onde era possível ouvir alta poesia através da música popular.

A mãe ofereceu-lhe uma assinatura mensal do “O círculo do livro” e através disso conheceu Oswald de Andrade, o poeta modernista brasileiro da geração de 22. Um poeta irónico, antropofágico, irrequieto, que não usava pontuação, que queria romper com as convenções, que não gostava da ideia do Brasil ser uma colónia mas deslumbrado por Paris. Falou de uma música de Caetano, Pulsar, do disco Velô que se aproximava ao rap. Descobre Maria Bethânia dizendo Fernando Pessoa.

Na juventude, no auge do movimento punk no Brasil, havia os Secos e Molhados no palco. “Quando o movimento punk chegou ao Brasil já nem havia punk em Inglaterra”. “Todo o mundo era punk”. Pessoas loucas, maquilhadas, estranhas. Andava com as roupas estranhas na rua que os outros usavam no palco, “um bicho muito estranho”. Gostava da ideia e da possibilidade “eu não sei fazer música mas faço”. Por volta dos 18 anos, depois de repetir o mesmo ano quatro vezes, depois de não assistir às aulas, vivia de noite e dormia de dia, a mãe fez-lhe um ultimato: “Então você sai da minha casa”. Da necessidade de arranjar um trabalho, num restaurante por baixo de casa, o dono pergunta-lhe: “O que você faz?” e ela “Eu não podia dizer que era estudante... então disse... sou cantora”. Assim “nasce” a sua carreira na noite de Porto Alegre onde fazia cover de outros artistas. Mas o interesse de Adriana não estava em “copiar” exactamente a versão de determinado cantor, ela estava muito mais interessada em apropriar-se daquela música, em fazer à sua maneira. A voz não era o interesse principal mas a performance. Gal Costa cantava com uma panela na cabeça para ouvir a própria voz “Óbvio, se eu tivesse aquela voz também faria o mesmo”.  Para ela continuava a não fazer sentido a questão da alta cultura versus baixa cultura. Aí foi procurar um director de teatro. E falou da questão de que se todas as artes desaparecerem, haverá sempre teatro. Trabalhou com um director de teatro de vanguarda. Do seu gosto por provocar vaias. Experiências loucas e liberdade extrema reunidas. Todos os dias mudava. Sem querer agradar. Falou da coincidência de ser contemporânea de outras cantoras: naquela época ela estava em Porto Alegre, Marisa Monte no Rio de Janeiro e Zélia Duncan em Brasília. Sem internet e sem saberem da existência umas das outras. Cada uma fazendo à sua maneira mas com 50% do repertório igual. Começou a levar o espectáculo para o circuito de vanguarda de São Paulo. Provocou muitas vaias e tinha como objectivo não ser belo, nem ser agradável. Chegou a cantar para uma pessoa, um crítico da revista Veja: “fato de xadrês inglês, gravata borboleta, óculos de tartaruga e bengala. E fiz o show como se estivesse cantando para 10 mil pessoas”. Foi aí que contou o episódio que a Rita Lee descreve na sua autobiografia sobre ela ter ficado nua para uma plateia, entre muitas gargalhadas. A Rita Lee convidou-a para assistir à passagem de som. E a Rita Lee falou que quando apresentava a banda de meninos, as meninas da plateia gritavam de alegria e ela queria agradar também aos meninos. “Na hora que eu faço o Miss Brasil 2000 gostava de apresentar uma menina que entrasse no palco só com uma capa. Você conhece alguém que possa fazer isso?” ao que Adriana respondeu “Você se importa que seja eu?”. Quando chegou a hora, Rita Lee apresentou-a, e ela que na altura não era assim tão famosa mas conhecida o suficiente para as pessoas acharem que ia entrar com um violão. Então ela entrou de saltos altos, nua só com uma capa, vai até à marcação no centro do palco, abre a capa virada para o público, espera uns segundos, ficou com pena dos músicos e deu uma canja para eles, fecha a capa e sai.

Maria Lucia Dahl, actriz e cronista do Jornal do Brasil, vê uma das suas actuações em que ela cantava uma versão de Caminhoneiro e oferece-se para ajudá-la no Rio de Janeiro. Fez uma série de concertos no Mistura Fina (que a elite carioca frequentava). Toda a gente desde a mãe, pai, família, professora de canto, ao director de teatro tentaram dissuadi-la de ir: “Não vá, você não está pronta”. Ela foi, mesmo assim. Aquilo foi um sucesso de concertos esgotados. Caiu nas graças da elite carioca. Aí recebeu um convite de uma gravadora para ser a “Marisa Monte” daquela gravadora. Naquela altura ela continuava interessada na performance, na ironia, em provocar vaias. “Caí numa cilada. Fazer um disco sem desejo de fazer um disco não vale a pena. Não façam nunca isso em nenhuma situação”. Saiu um disco todo errado. Uma série de mal entendidos. Não transmitia a ironia do palco. “Mas eu aprendi logo. A imprensa acabou com a minha vida”.  Ninguém queria produzir o disco depois disso. A Folha de São Paulo escreveu: “Há uma lacuna na música popular brasileira que só será preenchida quando Adriana Calcanhotto voltar para o Rio Grande do Sul e desistir de cantar”. Falou das dúvidas de empresários sobre a possibilidade de músicas chamadas Esquadros e Mentiras fazerem sucesso e tocarem na rádio. Como estas três horas eram para ser uma aula, Adriana relatou factos. “Eu vim aqui mostrar como é difícil”. Citando Fernanda Montenegro quando a questionaram sobre se é verdade que o começo é muito difícil: “Os dez primeiros anos são muito difíceis, depois só piora”.

Continua sem gostar de classificações e pretende continuar inclassificável. Coerente, portanto, com o que diz há muitos anos. Há uns 15  anos fiz-lhe a seguinte pergunta: “Apesar das sucessivas comparações a que tem sido sujeita, principalmente com Elis Regina, eu diria que a sua trajectória como excelente compositora assemelha-se muito mais a Vinícius de Moraes pela erudição do vocabulário, pela forma extraordinária como escreve poesia em língua portuguesa e pelo veículo das palavras ser a música. Será que daqui a alguns anos a Adriana será definida como uma grande poeta que fez canções maravilhosas? Era assim que gostaria de ser definida?” Ao que ela respondeu: “Ana, eu detesto comparações (como qualquer artista).  Mas considero um grande elogio a analogia que você faz com Vinícius, a quem amo muito. Na verdade, eu gostaria de ser indefinível, inclassificável, hoje ou daqui a alguns anos”.

Fez um intervalo “ninguém é de ferro a começar por  mim” e propôs-se a falar um pouco sobre a sua experiência de fazer discos para crianças. Começou, após o intervalo, a falar sobre o lançamento das obras completas do Mário de Sá Carneiro no Brasil, como isso se deu, e como ela se aproximou desse universo. A partir daí começa a ser conhecida a sua ligação à poesia e a ser convidada, cada vez mais, para eventos relacionados com isso. Começou a conhecer pessoas conhecedoras dessas obras. Musicou poemas de outros poetas portugueses como Fiama Hasse Pais Brandão. Falou, também, dos trabalhos Olhos de Onda a convite da Culturgest, Loucura a convite da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Das Rosas a convite da Universidade de Coimbra. Falou também de como se cria de forma milagrosa um hit. Cantou Metade e Esquadros.

Seguiu-se a parte das perguntas, que ela se sente particularmente apavorada quando feitas por crianças. Sentou-se. Começou por responder sobre a razão da produção para crianças. Foi uma ideia que foi amadurecendo aos poucos. Existia uma tradição no Brasil de grandes autores escreverem especificamente para crianças (ex. Manuel Bandeira, Cecília Meireles) com a mesma qualidade. Falou da novidade de ter usado samples na altura da Fábrica do poema. De quando convidou Hermeto Pascoal para participar numa música e de como ele fez música com uns coelhinhos e uns baldes. E aquilo deu-lhe um click. Aquilo coincidiu com o assalto ao apartamento dela em que todos os discos foram furtados. Como seria fazer música sem ter memória do som? E essa Canção por acaso com o Hermeto Pascoal fala disso: “Sem ordem/sem harmonia/ sem belo/ sem passado...”. A partir daí começou a anotar canções e a pensar num projecto para crianças. Começou a perceber que as crianças gostavam das músicas de Carlinhos Brown, por exemplo. Deixou essa ideia amadurecer e decantar. E pensou na ideia de um heterónimo. Levou essa ideia para a editora e achou que eles adorariam a ideia. Mas não: “Você não tem um programa de televisão”. Falou do fenómeno de Fico assim sem você que as crianças chamam de Avião sem asa. Achou que era apenas um fenómeno no Brasil porque coincidiu com a morte de um dos integrantes da dupla e só por esse acaso é que ouviu essa música na rádio que era ouvinte. As crianças adoravam-no porque ele tinha cara de boneco. Aí "a música alavancou o disco e as crianças começaram a pedir o concerto". Mencionou que é possível que Partimpim apareça a qualquer momento “que ela sai da caixa”.

Um estudante, que não teria mais do que 20 anos, falou de ter ouvido Metade numa novela quando era criança. E que não teria contacto com a sua música se não fosse por causa das novelas.
A outra pergunta fez lembrar-me uma cena do documentário José e Pilar de Miguel Gonçalves Mendes em que Saramago estava numa Feira do Livro no Brasil e um dos seus admiradores está tão nervoso para que Saramago lhe assine Viagem de Elefante e pede-lhe: "Saramago, me desenha um hipopótamo?". Neste caso uma estudante brasileira pergunta: "Na sua obra Partimpim você fala muito na sua relação com os gatos e eu vejo que as crianças têm muito mais relação com os cachorros e eu queria saber se você vai fazer alguma música sobre cachorros...". Adriana bem tentou disfarçar e controlar o riso, como toda a gente na plateia, e respondeu muito educada e diplomaticamente: "Ah sim, eu prefiro os gatos".

Terminou a falar que pretende aprofundar a relação do Brasil com a Universidade de Coimbra, considerando que a instituição portuguesa pode ajudar o seu país na educação, que está a viver "uma tragédia anunciada. "Nós precisamos da Universidade de Coimbra, talvez, como nunca". O mais interessante desta experiência, para ela “é contactar com os professores, assistir e dar aulas, e sobretudo, frequentar as bibliotecas”. Cantou O outro (a pedido de uma estudante brasileira) e Fico assim sem você (para fazer chorar).

No seu estilo cool, (não) punk, como um dia um crítico a classificou, talvez a definição que mais aprecia “apesar de detestar classificações” e ser “inclassificável”. Para quem diz que é tímida e que o seu maior talento não é falar, esta primeira lição foi uma maravilha, um deslumbramento. Tivessem (todos) os professores este dom da palavra, este humor e esta capacidade de cativar. Estivessem (todas) as aulas repletas como esta e tudo seria melhor. Os professores, sim, têm muito a aprender.

Adriana doce, culta, apaixonada por livros e que (ainda) compra discos. E prefere os gatos.

Promete para as outras aulas, ainda mais entusiasmo, já que abordará assuntos que gosta de falar e estudar.

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