Já
morriam às centenas, aos milhares, no anonimato do mar e da guerra. A Itália e
a Grécia há muito que eram “invadidas” por pessoas que não esperavam muito mais
do que escapar à morte. Até que um dia surge aquela imagem chocante de uma
criança que saiu do anonimato e tem um nome: Aylan Kurdi. Quando vi, pela primeira
vez, a imagem pensei que fosse uma montagem ou um boneco. A criança, apesar de
morta, não tinha os braços pendentes. O que mostra que morrera há algum tempo,
o que se chama em ciência rigor mortis.
Durante noites seguidas sonhei com esta imagem. Essa imagem acordou o mundo. Se
existe algo na vida que tente justificar uma morte em vão ou se existe algum
sentido para a vida e para a morte, esta morte, serviu para acordar-nos. Não é
que o mundo ou, especificamente a Europa, tenha mudado muito de atitude em
termos políticos. Mas a sociedade civil mobilizou-se. E isso, faz-me ter um
sopro de esperança na humanidade. Mas com os exemplos de humanidade, arrasta-se
aquilo que só os humanos são capazes de ter:
fobia e ódio. Quando leio e ouço argumentos
que devíamos era tratar bem os nossos pobres, desempregados e sem-abrigo em vez
de acolher estas pessoas que fogem da guerra... Tenho lido cada argumento
absurdo: fazer referendos na Europa se sim ou não à aceitação de refugiados
(esta gente nem deve perceber o mínimo de leis quanto ao estatuto de refugiado
ou de asilado) que devíamos era trazer os sem-abrigo para dentro de casa (como
se a situação fosse comparável); que os terroristas estão infiltrados no meio
dos refugiados ( como se os terroristas se sujeitassem a andar dias e dias a
pé, debaixo de sol e chuva, a atravessar o mar em “cascas de banana”, quando de
facto podem apanhar um avião); os refugiados são todos terroristas (como se a
maioria dos atentados ocorridos no mundo fossem efectuados por estrangeiros...
a maioria dos atentados foram feitos por cidadãos do próprio país do atentado).
A Hungria construiu um muro à la Berlim em pleno séc XXI. Um país
europeu dentro da União Europeia (UE). Como é possível terem permitido isto? Não
percebo como é que a UE permite sem haver sanções. Não percebo a razão de
fecharem uma fronteira que é apenas de passagem porque ninguém quer ficar num
país xenófobo e racista. E ainda por cima ameaçam “castigar” quem dê abrigo a
refugiados dentro das próprias casas e aprovaram leis que permitem disparar
contra os refugiados caso a situação se proporcione. Relembro a migração dos
húngaros no final dos anos 50 e em 89 quando a cortina de ferro estava prestes
a cair. A memória da humanidade é tão curta...
Os países que votaram contra o plano de
distribuição voluntária de refugiados são aqueles que já passaram pelo mesmo e
que não aprenderam nada com isso: Eslováquia, Roménia, República Checa e
Hungria... Pena que a UE não tenha coragem de sancionar estes países...
A UE mostra não ter qualquer poder para fazer cumprir os acordos. As Nações
Unidas fecham-se num manto de silêncio, não fora o Alto-Comissário para os
Refugiados, que tem sido a voz mais activa a defender atitudes e soluções por
parte da Europa.
E depois, para mostrar que o mundo se pode
mudar devagarinho, surgem acções da sociedade civil que nos comovem: Aylan Kurdi Caravan. Muitos voluntários responderam ao apelo e
juntaram-se para preparar toneladas de comida, medicamentos, roupa que foram
organizados durante alguns dias e transportados até à Croácia por 3 camiões.
Soube desta iniciativa da sociedade civil por intermédio da Graça Fonseca,
Vereadora da Câmara Minicipal de Lisboa, que também apoiou a iniciativa. Num
tempo de campanha eleitoral em que os candidatos falam em números e
estatísticas, como tem de ser, o que distingue muitas vezes as candidaturas são
as pessoas que delas fazem parte. Com pessoas assim na política activa, a sociedade,
e consequentemente, o mundo, seria melhor.
Eu, que na minha inocência utópica achava não
mais ser possível uma xenofobia ao nível da Segunda guerra Mundial ou da Guerra
dos Balcãs, assisto impotente a esta fobia pelos refugiados. Aconselho a todos (as)
a leitura da obra do Primo Levi para perceber que a qualquer altura poderemos
ser o alvo a abater. Seja qual for a nossa cor, raça, formação ou
nacionalidade. Só entenderemos isso quando aquela máxima “put yourself in our
shoes” nos tocar. Até lá, não seremos “nós” mas apenas “os outros”.
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