Viagem de 5 horas pela frente. Duas mudanças de comboio. Dia escaldante. Verão (quase) tropical. Tudo brilha de tão húmido. Passa pouco das 8 da manhã e já tudo parece derreter. No comboio para Milão, quase cheio, são sobretudo turistas. A temperatura é quase glacial e obriga-me a vestir uma camisola. Ao meu lado está um senhor, que parece meu avô, impecavelmente vestido. Lê o jornal "La Repubblica" e tem uma pasta. Em frente e ao lado dele estão duas mulheres que falam espanhol. Não lhes presto muita atenção mas uma delas tem uma voz linda. Grave, quase rouca. Quando a vejo levantar, para dar lugar a outra pessoa, reparo como é alta. Num olhar mais atento reparo no excesso de silicone na cara e no nariz cirurgicamente desenhado. Tem umas mãos lindas, grandes e magras e uns dedos compridos, proporcionais ao seu tamanho. Milão, mudança de comboio para Verona. O cenário muda completamente. O comboio é regional. A temperatura é infernal que só piora com o cheiro a gente. Não existe lugar para todos. Há mais bilhetes vendidos do que lugares. É "tudo ao molho e fé em Deus". Mais de uma hora de viagem pela frente nestas condições. Eu, pelo menos, estou sentada. Ouço um murmúrio de duas jovens americanas que se questionam como é possível venderem mais bilhetes se não existem condições. Um olhar rápido em volta percebo a presença das pessoas non grata do actual governo italiano. Mulheres grávidas a pedir. Uma jovem com um bebé ao colo e outra pela mão que não devem ver água do banho há muito tempo. A criança pela mão parece uma pena, caminha à velocidade da mãe e mal pousa os pés no chão. Parece voar. Os meus olhos prendem-se nos dela. Apetece-me dar-lhe tudo o que tenho mas sinto-me tão incapaz e impotente. O que ajudá-la hoje mudará na vida dela? E depois lembro-me do actual governo italiano composto por gente da extrema direita, racista e nacionalista. A última do Ministro do Interior, depois de proibir um barco cheio de refugiados de atracar num porto italiano, foi querer expulsar albaneses, romenos e tunisinos. Este já é o Trump europeu. Mas o mais escandaloso é que é aplaudido pelos italianos a qualquer lado que vá. Lembro-me que do outro lado do oceano Atlântico está um presidente eleito democraticamente que separa pais e crianças que tentam a sua sorte ao atravessar ilegalmente a fronteira dos Estados Unidos. Eu que não tinha televisão até há uma semana atrás e não via notícias que não fosse em jornais ou o que ouvia falar. Comecei a ver as imagens e a ouvir os lamentos das crianças em gaiolas. E não consegui. Não consigo ver aquilo. Isto passa-se no séc XXI. No país que foi um dia a terra das oportunidades, que acolheu refugiados e alguns dos quais se tornaram grandes nomes americanos. O que representava ser americano está a morrer. Não percebo como é possível acontecer esta monstruosidade em pleno ano de 2018. A maldade do ser humano não tem limites.
domingo, 24 de junho de 2018
Génova - Milão - Verona - Trento
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quinta-feira, 21 de junho de 2018
Cinque Terre
Domingo de Páscoa. Sol. Temperatura primaveril. Visitas. Nada planeado. Destino: Cinque Terre. Directo a La Spezia. Escolhemos apenas o meio de transporte: comboio. Dormi o caminho todo. Antes ainda de adormecer tive que ver um homem a cortar as unhas e outro a coser um botão do casaco. Chegados a La Spezia percebemos o que nos esperaria: gente, muita gente. Um mar de turistas. Em La Spezia apanhamos o comboio regional que pára em cada uma das aldeias de Cinque Terre. Saímos na primeira no sentido sul para norte: Riomaggiore. Tinha lido que era a maior e onde havia o "cammino dell'amore" que ligava à próxima aldeia. Foi aqui que passamos mais tempo. Saídos dos comboio avista-se o mar e as escarpas. Começamos a descer por caminhos de terra e escadas estreitas. Nas falésias veem-se pessoas nas podes mais improváveis. Muita gente parece arriscar a vida a troco da melhor foto. Esplanadas com vista privilegiada. Uma turista com uma mala a descer escadas sem fim com tacões. Carrinhos de bebés. Crianças com menos de quatro anos. Começam a perceber-se as primeiras queimaduras solares. Gente muito branca que não se protegeu devidamente. Chegados ao centro da aldeia há uma estrutura preparada para a avalanche de turistas. Cafés, lojas, restaurantes, casas de banho que cobram um euro, esplanadas, comidas take away, mercearias, supermercados, gelatarias...chegados ao pé do mar olhamos para trás e percebemos q este é o cenário que conhecemos há muito das Cinque Terre. Casas construídas nas falésias de cores diferentes. Impressionante, sim. Maravilhoso, com menos gente. Almoçamos sentados num as escadas fritura misti. Vários peixes que escolhemos num cartucho de papel com um palito grande. Fish sem chips. Depois de almoçarmos ficamos a saber que o caminho dela ore está fechado. Decidimos n sair na próxima aldeia mas em Vernazza. Talvez a mais pequena e menos preparada aldeia. As pessoas eram tantas que a única forma de locomoção era andar ao ritmo e no sentido da multidão. Quando finalmente chegamos ao pé do mar há um pequeno areal e alguns barcos. As esplanadas não tem um lugar vago. Não existe chão visível. Caminhamos na direcção inversa em direcção à estação de comboios. Esperamos impacientemente na fila para chegar estação. Caótico, sem organização, turistas rudes, gente que dispensávamos encontrar pelo caminho. Depois do infernal teste à paciência, tomo a decisão difícil, de não sair em mais nenhuma aldeia a não ser na última: al mare. Estava tão cansada que a primeira esplanada que avistei nem pensei, sentei-me. A vista não podia ser melhor. O Mediterrâneo imenso com a cor do mar que começa a aquecer. Numa das mesas ao meu lado vejo uma desarrumação de papéis, cadernos e livros espalhados sobre a mesa. Ao contrário de mim, escreve num computador que é uma maçã trincada. Tem como vista um mar azul imenso. Tem olhos claros, cabelo claro, pele nórdica e muitas sardas. Vive de escrever. Escreve coisas das quais gosta menos para patrocinar o grande projecto de vida, um romance. Invejo a coragem e a sinceridade.
segunda-feira, 4 de junho de 2018
O chefe
Pastelaria mais antiga da cidade. Agora, um misto de bar, restaurante. Fim da tarde. A disputa de mesas é grande. Vejo várias pessoas que desistem de esperar por uma mesa e pessoas que depois de terem uma mesa desist porque a espera é muita. Os funcionários são muitos e têm o medo estampado na cara. Parecem não poder estar parados. Falta-lhes cor. Mas a maioria dos clientes tem uma cor que eu não consigo nem depois de um mês na praia. As bebidas mais pedidas são negroni e aperol spritz. Percebo o temor dos funcionários com uma pessoa que foi muito simpática comigo e me sentou. O homem só é simpático com os clientes porque para os funcionários só grita e gesticula. Mas para os clientes transforma-se. É o chefe. Sempre ele. Austero. Cara fechada. Fato impecável. Alto. Hirto. Os funcionários temem-no. Passei uma hora aqui a apreciar. Até me distraí de ler. Apesar de toda a gente ter sido mais do que amável comigo, dificilmente voltarei. Trabalhar não é isto. O medo não deve fazer parte da nossa vida em tempos de paz. Nada o justifica. E os chefes não podem ser ser isto.
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