Naquela
semana tirei uns dias para me afastar de tudo. Para estar longe. Para sentir
falta. Para organizar ideias. Desço do quarto para comer qualquer coisa. Já é
noite. Mas não passa das 7. A poucos metros de mim vejo-a entrar pela porta do
hotel. Cabelo solto. Óculos graduados. Anda devagar. Lentamente. Está de luto
há um mês. Foi-se o amor da vida dela. Morreu de mãos dadas com ela. E mesmo
assim, segue com a vida. Eu que sei, percebo-lhe a tristeza. Talvez para os
outros seja imperceptível. Penso na perda e comparo-a com o balanço que faço à
minha vida. Afinal, não tenho do que me queixar, comparativamente. No dia
seguinte vejo-a outra vez. De manhã. Poderia deixar-se ficar. Resignar-se à
tristeza. Não lutar. Não reagir. Optar por não viver. Não levantar-se da cama.
Não viajar. Mas é o contrário. Faz o que esperam dela. Não desilude. Cumpre. Luta. Reage. Alimenta-se. Vive. Ri.
Até lhe ouço uma gargalhada. Conversa. E vendo este exemplo, envergonho-me da
minha inércia. Relativizo. Dou-lhe valor. E desvalorizo-me. Obrigo-me a olhar
em frente. Umas horas mais tarde vejo-a sair. Já não parece tão pequenina como
há uns anos achei. Parece poderosa. Cheia de força.
Nessa noite
mágica tudo é mudança. Como se houvesse um obstáculo a ultrapassar. Se isso
acontecesse estava feito. No exercício da sua arte ouço-a vacilar. Mas
ultrapassa com elegância, arte, profissionalismo e delicadeza. A prova de fogo
foi ultrapassada. E o sacrifício mostrou valer a pena. Uma noite catártica,
portanto. Heráclito, como todas, dito por ela. Mais tarde, sem contar, encontro-a. Quero
solidarizar-me com a dor dela mas sem tocar nisso. Não tenho palavras. Nem
eufemismos. Quero felicitá-la e dar-lhe uma palavra de reconhecimento de quão
boa foi a noite. Limito-me a agradecer e a elogiar. O sorriso abre-se e
estende-me as duas mãos.
No dia
seguinte fui almoçar com uma grande amiga no restaurante ao lado do hotel, o
mais antigo vegetariano de Lisboa. Chego primeiro, coisa pouco habitual. Ela
chega depois. Eu estou sentada. Apesar de já não a ver há um ano, está igual,
para mim. Apesar de estarmos num vegetariano pergunto-lhe se vai beber vinho.
Diz-me que não. E eu, como devo ser a lentidão das lentidões, não percebo a
deixa que deveria ser claríssima. Para quem bebe diariamente, não beber, não
restam muitas hipóteses. Já que não consegui perceber, ela foi clara. Estava
grávida. E eu entre a surpresa da notícia e a falta de percepção de sinais
subliminares e físicos não me restou muito tempo até que me dissesse que o bebé
tinha Trissomia 22. Eu que nos últimos tempos, profissionalmente, só tenho
escrito e lido sobre doenças raras. Isso poderia ter feito de mim a ouvinte
ideal. Mas não. O meu cérebro parou. Queria dizer qualquer coisa. Uma palavra
de conforto, de esperança, de ânimo. Nada disso. E só piorou com a descrição
das anomalias possíveis. Esse era o
último dia que poderia optar pelo aborto terapêutico. Percebi que não o faria.
Não me disse explicitamente mas percebi que a decisão por terminar uma vida não
dependia dela. Ia deixar a natureza desempenhar o seu papel. Quando o nosso almoço
terminou já era hora do lanche. Dei por mim sem forças para dizer nada de bom.
E quando não temos nada de bom a dizer o melhor
é o silêncio. E eu que lido com números, estatísticas, casos,
tendências, casos raros. Fiquei prostrada. Não sabia dizer nada que
confortasse. E arrastei-me por Lisboa. Nesses dias percebi, finalmente, a
relatividade das nossas tristezas.
Há um mês
voltei a Lisboa e vi-a já numa gravidez avançada. Feliz como todas as mães.
Como a canção “Só as mães são felizes”. Almoçamos, tardiamente, um peixe escalado
que me ficou na memória. Transbordava
felicidade. Nada de azedumes, nem queixas, nem mágoas, nem culpas por carregar
um bebé diferente. O M. já tinha nome. E aí percebi a grandeza que só algumas
pessoas são capazes de ter. O medo que assola todas as mulheres numa gravidez.
Não importa o sexo. Importa que seja perfeitinho. Essa ânsia e esse desejo. E
depois o muro desmorona como um castelo de cartas de baralho. Como se reage?
Como se enfrenta? Como se continua? E acima de tudo como se renasce? Como se convive com um cenário tão limitado?
Sabe-se o hoje. Amanhã logo se verá. Passámos um dia fantástico. Tudo de muito
bom.
Desde esse
dia não falei mais com ela. Por culpa minha. Aquelas coisas pequeninas da vida.
De nunca ter tempo para o mais importante. E sobretudo, aquilo que mais me
queixo, não estar quando deveria estar. Todos os dias me lembrava dela. Mas não
o manifestei. E falhei, mais uma vez, como todos os humanos. Essa culpa que me
acompanha desde que nasci. E eu, que nasci especialmente, para ser culpada.
Ontem acordei
com a mensagem que mais temo na vida: “...O M. ficou duas horas connosco e
partiu serenamente dos nossos braços...”. Chorei o dia inteiro, por dentro.
Pensei o dia todo no que poderia dizer. Só no fim da tarde consegui.