quarta-feira, 20 de maio de 2015

A força na sua verdadeira dimensão

Naquela semana tirei uns dias para me afastar de tudo. Para estar longe. Para sentir falta. Para organizar ideias. Desço do quarto para comer qualquer coisa. Já é noite. Mas não passa das 7. A poucos metros de mim vejo-a entrar pela porta do hotel. Cabelo solto. Óculos graduados. Anda devagar. Lentamente. Está de luto há um mês. Foi-se o amor da vida dela. Morreu de mãos dadas com ela. E mesmo assim, segue com a vida. Eu que sei, percebo-lhe a tristeza. Talvez para os outros seja imperceptível. Penso na perda e comparo-a com o balanço que faço à minha vida. Afinal, não tenho do que me queixar, comparativamente. No dia seguinte vejo-a outra vez. De manhã. Poderia deixar-se ficar. Resignar-se à tristeza. Não lutar. Não reagir. Optar por não viver. Não levantar-se da cama. Não viajar. Mas é o contrário. Faz o que esperam dela. Não desilude.  Cumpre. Luta. Reage. Alimenta-se. Vive. Ri. Até lhe ouço uma gargalhada. Conversa. E vendo este exemplo, envergonho-me da minha inércia. Relativizo. Dou-lhe valor. E desvalorizo-me. Obrigo-me a olhar em frente. Umas horas mais tarde vejo-a sair. Já não parece tão pequenina como há uns anos achei. Parece poderosa. Cheia de força.

Nessa noite mágica tudo é mudança. Como se houvesse um obstáculo a ultrapassar. Se isso acontecesse estava feito. No exercício da sua arte ouço-a vacilar. Mas ultrapassa com elegância, arte, profissionalismo e delicadeza. A prova de fogo foi ultrapassada. E o sacrifício mostrou valer a pena. Uma noite catártica, portanto. Heráclito, como todas, dito por ela. Mais tarde, sem contar, encontro-a. Quero solidarizar-me com a dor dela mas sem tocar nisso. Não tenho palavras. Nem eufemismos. Quero felicitá-la e dar-lhe uma palavra de reconhecimento de quão boa foi a noite. Limito-me a agradecer e a elogiar. O sorriso abre-se e estende-me as duas mãos.

No dia seguinte fui almoçar com uma grande amiga no restaurante ao lado do hotel, o mais antigo vegetariano de Lisboa. Chego primeiro, coisa pouco habitual. Ela chega depois. Eu estou sentada. Apesar de já não a ver há um ano, está igual, para mim. Apesar de estarmos num vegetariano pergunto-lhe se vai beber vinho. Diz-me que não. E eu, como devo ser a lentidão das lentidões, não percebo a deixa que deveria ser claríssima. Para quem bebe diariamente, não beber, não restam muitas hipóteses. Já que não consegui perceber, ela foi clara. Estava grávida. E eu entre a surpresa da notícia e a falta de percepção de sinais subliminares e físicos não me restou muito tempo até que me dissesse que o bebé tinha Trissomia 22. Eu que nos últimos tempos, profissionalmente, só tenho escrito e lido sobre doenças raras. Isso poderia ter feito de mim a ouvinte ideal. Mas não. O meu cérebro parou. Queria dizer qualquer coisa. Uma palavra de conforto, de esperança, de ânimo. Nada disso. E só piorou com a descrição das anomalias possíveis.  Esse era o último dia que poderia optar pelo aborto terapêutico. Percebi que não o faria. Não me disse explicitamente mas percebi que a decisão por terminar uma vida não dependia dela. Ia deixar a natureza desempenhar o seu papel. Quando o nosso almoço terminou já era hora do lanche. Dei por mim sem forças para dizer nada de bom. E quando não temos nada de bom a dizer o melhor  é o silêncio. E eu que lido com números, estatísticas, casos, tendências, casos raros. Fiquei prostrada. Não sabia dizer nada que confortasse. E arrastei-me por Lisboa. Nesses dias percebi, finalmente, a relatividade das nossas tristezas.

Há um mês voltei a Lisboa e vi-a já numa gravidez avançada. Feliz como todas as mães. Como a canção “Só as mães são felizes”. Almoçamos, tardiamente, um peixe escalado que me ficou na memória.  Transbordava felicidade. Nada de azedumes, nem queixas, nem mágoas, nem culpas por carregar um bebé diferente. O M. já tinha nome. E aí percebi a grandeza que só algumas pessoas são capazes de ter. O medo que assola todas as mulheres numa gravidez. Não importa o sexo. Importa que seja perfeitinho. Essa ânsia e esse desejo. E depois o muro desmorona como um castelo de cartas de baralho. Como se reage? Como se enfrenta? Como se continua? E acima de tudo como se renasce?  Como se convive com um cenário tão limitado? Sabe-se o hoje. Amanhã logo se verá. Passámos um dia fantástico. Tudo de muito bom.

Desde esse dia não falei mais com ela. Por culpa minha. Aquelas coisas pequeninas da vida. De nunca ter tempo para o mais importante. E sobretudo, aquilo que mais me queixo, não estar quando deveria estar. Todos os dias me lembrava dela. Mas não o manifestei. E falhei, mais uma vez, como todos os humanos. Essa culpa que me acompanha desde que nasci. E eu, que nasci especialmente, para ser culpada.

Ontem acordei com a mensagem que mais temo na vida: “...O M. ficou duas horas connosco e partiu serenamente dos nossos braços...”. Chorei o dia inteiro, por dentro. Pensei o dia todo no que poderia dizer. Só no fim da tarde consegui.

E hoje, recebo a maior mensagem de força da mãe que perdeu o filho há dias, que entre coisas tão bonitas que escreveu, destaco: “Passou duas horas ao nosso colo e morreu serenamente nos nossos braços. No meio de toda a dor, revelou-se uma doçura, uma beleza que nos deixou de coração cheio (...). A sua vida, as nossas vidas, jamais se podem medir pelo tempo, mas pelo Amor”. E partiu, não cedo demais, mas porque a vida é uma passagem”. Pronto e é isto. Quando não estamos à altura dos nossos amigos, eles encarregam-se de nos mostrar o quão bem rodeados estamos. A força na sua verdadeira dimensão.

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