sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A minha avó


A minha avó apagou-se há um mês. Foi-se da forma que sempre pedi para ela. Rápido e quase sem sofrimento. Viveu os últimos tempos como queria. Cuidada pela filha que escolheu, pelo genro que foi o primeiro a sugerir a ida dela para a casa deles e por uma senhora que não era da família mas que cuidou dela e a mimou como se uma filha fosse.

A minha avó era pequenina mas uma grande mulher. Tinha um olhos muito pequeninos e muito azuis, aquele azul céu. Já a conheci com o cabelo muito branquinho, incrivelmente liso. Usava uns óculos muito graduados que faziam parecer que tinha uns olhos enormes. Quando os tirava, somente quando ia para a cama, percebia-se o quão pequeninos eram. Dormia silenciosamente, quase nunca se virava na cama. Era uma verdadeira matriarca. Enquanto teve saúde, cozinhou sempre e tratou da casa. Cozinhava muito bem. Fazia a melhor sopa de couves com feijão que algum dia comi. Detestava quando era pequena , mas aprendi a adorá-la. A minha avó cortava as couves para o caldo-verde com a perfeição de uma máquina. Era esquerdina. Fazia tudo com a mão esquerda mas escrevia com a direita, tal como o meu avô. Fazia o melhor arroz de toda a gente. E fazia um prato que eu sempre detestei quando feito pelos outros mas que eu adorava quando feito por ela. A esse prato chamávamos “batatas guizadas” uma espécie de jardineira sem ervilhas.

Era uma pessoa tímida e de poucas palavras com quem não conhecia mas era uma excelente conversadora com os que com ela privavam. Queria sempre saber notícias e novidades. Adorava jogar às cartas, à sueca. Sempre foi a minha companheira de equipa e jogava muito bem, sem truques nem batotices. Fazíamos uma dupla fabulosa. Passávamos as tardes de verão a jogar quando as férias duravam quase 4 meses. Há já muitos anos que deixei de jogar cartas com ela. Os anos foram passando e ela continuou a jogar cartas quando tinha companhia, quase sempre aos fins de semana, no Natal e na Páscoa.

Adorava que eu lhe cortasse as unhas e que lhe medisse a tensão. Fazia a melhor cevada com café do mundo. Comprava os componentes na “Negrita” e ela misturava-os conforme a sua receita.

Tinha um medo enorme de trovoada e tempestades. Recolhia-se sempre a rezar a Santa Bárbara e acendia sempre uma velinha. Era devota de muitos santos e rezou diariamente o terço em conjunto com o meu avô e com quem se lhes decidia juntar.Depois da morte do meu avô passou a fazê-lo em silêncio.

Com o passar dos anos, tal como aconteceu a todas as irmãs, começou a ouvir muito mal. Há muitos anos que usava um aparelho auditivo. E por esse motivo era difícil perceber-nos ao telefone. No último ano começou a perder capacidades. Andava muito devagarinho e quase não saia de casa. Passava os dias no seu sofá.

Nas férias passei um dia inteiro com ela. Já não me conhecia. Fui talvez a primeira pessoa de quem se esqueceu. Cortei-lhe as unhas, embora não precisasse, mas sabia que gostava. Passou a manhã na cama e não queria que eu saísse da beira dela. Almoçamos a salada russa da minha mãe que ela tanto gostava. À tarde ainda dormiu a sesta e depois quis ir para o sofá. Nesse dia um dos meus tios foi visitá-la e ela ainda o reconheceu. Mais ao fim do dia começou a perguntar pela minha tia que ficava com ela. Eu repeti-lhe muitas vezes que ela estava a chegar porque tinham ido almoçar fora. Estava confusa e agitada porque não me reconhecia. Por mais que eu lhe dissesse quem era. “Vó, sou a tua neta” ao que ela respondia repetidamente: “Netas há muitas”. Quando os meus pais e os meus tios chegaram a minha avó até chorou de alegria porque os reconheceu. Embora não me reconhecesse, achou que eu a tratei bem, e quando eu me despedi dela para me ir embora perguntou-me: “Amanhã vem para cá?”. Dois dias depois deixou de andar e fomos com ela para o hospital. Estive todo o dia com ela, de mão dada porque ela não queria ficar sozinha. Não me reconhecia como neta dela mas apertou-me sempre a mão com a força que tinha. No dia seguinte ainda voltou para casa mas teve que regressar ao hospital porque já não conseguia comer. A última vez que a vi com vida estava a aguardar internamento, estava a dormir serenamente e com um riso nos lábios. Ainda lhe segurei as mãos e sentia-as quentes. Ainda lhe dei um beijo. Embora soubesse que o fim estava próximo, nunca pensei que estivesse tão perto. Quando de manhã recebi a notícia foi um choque tão grande que nem reagi. Depois do meu avô foi-se a minha avó. Só ficaram boas memórias.

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