A minha avó apagou-se há um mês. Foi-se da forma que sempre
pedi para ela. Rápido e quase sem sofrimento. Viveu os últimos tempos como
queria. Cuidada pela filha que escolheu, pelo genro que foi o primeiro a
sugerir a ida dela para a casa deles e por uma senhora que não era da família
mas que cuidou dela e a mimou como se uma filha fosse.
A minha avó era pequenina mas uma grande mulher. Tinha um
olhos muito pequeninos e muito azuis, aquele azul céu. Já a conheci com o cabelo
muito branquinho, incrivelmente liso. Usava uns óculos muito graduados que
faziam parecer que tinha uns olhos enormes. Quando os tirava, somente quando ia
para a cama, percebia-se o quão pequeninos eram. Dormia silenciosamente, quase
nunca se virava na cama. Era uma verdadeira matriarca. Enquanto teve saúde,
cozinhou sempre e tratou da casa. Cozinhava muito bem. Fazia a melhor sopa de
couves com feijão que algum dia comi. Detestava quando era pequena , mas
aprendi a adorá-la. A minha avó cortava as couves para o caldo-verde com a
perfeição de uma máquina. Era esquerdina. Fazia tudo com a mão esquerda mas
escrevia com a direita, tal como o meu avô. Fazia o melhor arroz de toda a
gente. E fazia um prato que eu sempre detestei quando feito pelos outros mas
que eu adorava quando feito por ela. A esse prato chamávamos “batatas guizadas”
uma espécie de jardineira sem ervilhas.
Era uma pessoa tímida e de poucas palavras com quem não conhecia
mas era uma excelente conversadora com os que com ela privavam. Queria sempre
saber notícias e novidades. Adorava jogar às cartas, à sueca. Sempre foi a
minha companheira de equipa e jogava muito bem, sem truques nem batotices. Fazíamos uma dupla fabulosa. Passávamos as tardes de verão a jogar quando as
férias duravam quase 4 meses. Há já muitos anos que deixei de jogar cartas com
ela. Os anos foram passando e ela continuou a jogar cartas quando tinha
companhia, quase sempre aos fins de semana, no Natal e na Páscoa.
Adorava que eu lhe cortasse as unhas e que lhe medisse a
tensão. Fazia a melhor cevada com café do mundo. Comprava os componentes na
“Negrita” e ela misturava-os conforme a sua receita.
Tinha um medo enorme de trovoada e tempestades. Recolhia-se
sempre a rezar a Santa Bárbara e acendia sempre uma velinha. Era devota de
muitos santos e rezou diariamente o terço em conjunto com o meu avô e com quem
se lhes decidia juntar.Depois da morte do meu avô passou a fazê-lo em silêncio.
Com o passar dos anos, tal como aconteceu a todas as irmãs,
começou a ouvir muito mal. Há muitos anos que usava um aparelho auditivo. E por
esse motivo era difícil perceber-nos ao telefone. No último ano começou a
perder capacidades. Andava muito devagarinho e quase não saia de casa. Passava
os dias no seu sofá.
Nas férias passei um dia inteiro com ela. Já não me
conhecia. Fui talvez a primeira pessoa de quem se esqueceu. Cortei-lhe as
unhas, embora não precisasse, mas sabia que gostava. Passou a manhã na cama e
não queria que eu saísse da beira dela. Almoçamos a salada russa da minha mãe
que ela tanto gostava. À tarde ainda dormiu a sesta e depois quis ir para o
sofá. Nesse dia um dos meus tios foi visitá-la e ela ainda o reconheceu. Mais
ao fim do dia começou a perguntar pela minha tia que ficava com ela. Eu
repeti-lhe muitas vezes que ela estava a chegar porque tinham ido almoçar fora.
Estava confusa e agitada porque não me reconhecia. Por mais que eu lhe dissesse
quem era. “Vó, sou a tua neta” ao que ela respondia repetidamente: “Netas há
muitas”. Quando os meus pais e os meus tios chegaram a minha avó até chorou de
alegria porque os reconheceu. Embora não me reconhecesse, achou que eu a tratei
bem, e quando eu me despedi dela para me ir embora perguntou-me: “Amanhã vem
para cá?”. Dois dias depois deixou de andar e fomos com ela para o hospital.
Estive todo o dia com ela, de mão dada porque ela não queria ficar sozinha. Não
me reconhecia como neta dela mas apertou-me sempre a mão com a força que tinha.
No dia seguinte ainda voltou para casa mas teve que regressar ao hospital
porque já não conseguia comer. A última vez que a vi com vida estava a aguardar
internamento, estava a dormir serenamente e com um riso nos lábios. Ainda lhe
segurei as mãos e sentia-as quentes. Ainda lhe dei um beijo. Embora soubesse
que o fim estava próximo, nunca pensei que estivesse tão perto. Quando de manhã
recebi a notícia foi um choque tão grande que nem reagi. Depois do meu avô
foi-se a minha avó. Só ficaram boas memórias.
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