Este livro é uma
exaltação sobre uma cidade. São Sebastião do Rio de Janeiro. A “melhor cidade da Via Láctea”. Sete dias nesta
cidade, na semana do carnaval. Este livro faz-nos ter muita vontade de a
conhecer. Essa cidade tão tudo: exagerada, diferente, insegura, tão cheia de
contrastes, cheiros e cores. Uma cidade que exalta a força da natureza e a
forma inatingível dessa beleza que não foi feita pelo Homem. Como os livros de
Jorge Amado que nos mostraram a Baía, este mostra-nos o Rio real. Nu e cru.
Como diz a personagem portuguesa, Inês: “Incrível, é como chegar a Nova Iorque
(...) Nunca aqui estive, mas estive. Porque a gente cresce com isto, estas
imagens”.
O livro tem exactamente
551 páginas e é viciante. Não sei como o classificar. Já que as pessoas gostam tanto
de dar um nome às coisas: é ficção, mas também é memória e ensaio e deve ter
muito de autobiográfico. O que sei (bem) é o trabalho de pesquisa contido nele.
É um cruzamento de histórias dos sete personagens principais no presente (não
necessariamente por ordem cronológica
nem no mesmo espaço temporal) com o passado da descoberta do Novo Mundo,
com a independência e respectiva abolição da escravatura, com o Brasil
presente, com a escravatura mascarada.
Gabriel
Rocha “pirata crioulo”, tem uma pala no olho esquerdo. “O olho se foi
num estilhaço, briga de facções carioca”s. É o mais cortejado sociólogo do
IFCS, bastião da Universidade pública. Tem um filho adolescente de 14 anos, viciado
em laptop, celular e playstation.
Judite
Souza Farah, 1,80 m, um arraso, irmã de Karim e Zaca, faz parte da elite
carioca Não conduz. Está prestes a ser sócia do maior escritório de advogados
do Rio de Janeiro. Ficou com Gabriel que a deixou em poucos dias. Casar-se-á
com o rico Rosso de quem ficará viúva. Largará a advocacia.
Zaca,
irmão de Judite. Fez a biografia do maior sambista brasileiro e ficou famoso
aos trinta. Descobre-se homossexual.
Lucas
90 kg, 1.97 m. Nasceu em 91,índio arraçado de negro e de branco. Entrou em
História na UERJ. Orfão e mudo. Ficou assim depois do trauma de encontrar a mãe
pendurada numa árvore e depois de quase ter sido sufocado pelo assassino dela.
Trabalha num elevador enjaulado por horas como o da estação 168 em NY (Columbia Medical Center). Volta a falar
graças ao amor de Noé e depois da experiência psicadélica com ayahuasca.
Noé “carapinha
black power”, universitária bolsista da favela, finalista de Ciência Política
na PUC. Engravida de Lucas.
Tristão
nascido em 83. Português, antropólogo e católico. O seu nome vem do navegador
Tristão da Cunha. Está nos antípodas do carioca: sem músculo e a perder cabelo
antes dos 30.
Inês,
portuguesa, sozinha na vida, franja curta, sobrancelhas separadas, boca bem
vermelha, pele bem branca. Fuma. Veio de Beirute onde foi deixada pela namorada
Yasmine. Tem a cabeça no Líbano. Yasmine saiu de Beirute e foi para a Tasmânia
onde abriu uma pousada.
Li o livro em
pouquíssimo tempo, apenas 5 dias (antes de dormir). Este texto demorou-me bem
mais. Só sei que sou mais rápida a ler do que a escrever. A palavra que me
ocorre é epopeia. Talvez um romance épico recheado pela “crueza” da verdade. A
verdade é uma coisa difícil de se falar e difícil de se ouvir. Há factos, que
talvez soubéssemos, mas que nos foram escondidos ou diminuídos, e quando sabemos
deles neste livro temos um grito de revolta. Talvez a interiorização da verdade
contida neste livro me choque tanto. Ocorre lembrar-me dos livros de António
Lobo Antunes e da guerra colonial tão pouco explorada na nossa literatura. Os
africanos que combatemos em África, das barbaridades que lá cometemos e que a
culpa, por mais que até a queiramos assumir, não consigo dizer quem tem. Não
sei a quem apontar o dedo. É de quem está ao longe a mandar? Quem dava a ordem?
Quem tão jovem e ingénuo, tirado do país sem querer, e lá longe num país
distante, sob o efeito daquela adrenalina do momento desata a matar, pela
catarse de sentir-se muito grande no meio da multidão? Aquilo que António Lobo
Antunes exalta sempre da coragem dos homens com quem esteve em África, que são
os que menos culpa têm e que tão marcados ficaram.
O narrador, que é um
brasileiro, é a voz de Alexandra Lucas Coelho. É um narrador que olha de fora,
exterior a cada personagem. Não sei o que os brasileiros acharão mas eu acho
que o narrador é bem brasileiro. Alexandra, parece
conhecer o Rio como os cariocas que são “bonitos, bacanas, sacanas, dourados,
espertos e que não gostam de sinal fechado, nem de dias nublados”. E só
alguém com muito mundo, com muita experiência do Brasil, uma quase carioca (que
não nasceu no Rio) podia ter escrito um livro destes sem “apanhar dos dois
lados”. O lado do colonizador e o lado do colonizado, se é que existe um lado,
se é que as coisas se dividem (tão simplesmente) em preto e branco. O lado da
culpa ou a total ausência dela. E o melhor de tudo: o que aprendemos com este
livro. Uma verdadeira lição histórica. E as referências bibliográficas. Obriga-nos,
pelo menos, a pensar. E depois, uma lição literária e musical: Nelson Rodrigues
(esse grande cronista que eu já li há algum tempo porque comprei alguns dos
seus livros e biografia em São Paulo), Machado de Assis esse mulato órfão de mãe
desde criança, que era disléxico, epiléptico, doente dos olhos, casado com uma
portuguesa, fundador da ABL e não tinha filhos), Carlos Drummond de Andrade,
Caetano...
Este romance mistura
muito bem o presente com o passado. Para além de ficção inclui factos históricos.
Aprende-se muito com este livro. Os portugueses, que poderiam nem pensar nisso,
ou sentirem-se redimidos com o passado histórico, da descrição d’Os Lusíadas’ de
Camões que exalta a epopeia portuguesa pelos mares. Um nobre povo, quase à
semelhança do povo judeu, o escolhido, põe a descoberto o lado negro do
“achamento” do Brasil. Coloca o dedo na ferida e coloca sal em vez de bálsamo.
Esta visão fria e crua do nosso passado colonial, de um país colonizador à
força, é muito pouco comum quando é uma portuguesa a fazê-lo. Alexandra, é por
isso, uma das poucas. Faz-nos (re)lembrar os índios
que nós matámos e os milhões de africanos que tirámos de África e que
escravizámos e que estão apagados da maioria dos manuais escolares. Nós que exaltamos os nossos
descobridores e navegadores mundo desconhecido adentro, aprendemos (apenas) que
a História de Portugal é só triunfo, ousadia e audácia. E este livro traz,
relatos verdadeiros. Eu que sou cientista, que leio muitos ensaios, romances e
biografias mas que não leio muito sobre história, fiquei chocada com o que li
do Vasco da Gama que está ao lado de Camões nos Jerónimos. Nós que
aprendemos desde sempre que a nossa colonização tinha sido a melhor, que nos
misturamos, que criamos a miscigenação, que criamos uma nova raça, os mulatos,
não foi isso. Pouco nos questionamos que essa mistura foi com toda a certeza
feita à força assim como os militares da Guerra Colonial no Ultramar abusavam e
violavam nativas (obviamente) sem o seu consentimento. Isso são os factos que
ninguém quer falar. Aquilo que ficou morto e enterrado e que ninguém quer
trazer à luz do presente com a desculpa que ninguém tem culpa dos erros dos
nossos antepassados.
Este
romance mostra que há sempre novas possibilidades de se olhar o mundo. As
múltiplas possibilidades. O que me surpreende é a base teórica, bibliográfica e
factual deste livro. Não se trata de um romance que se limita à voz da imaginação mas aos factos históricos negros e crus. Faz-nos pensar (tanto).
Quem sabe redimir dos nossos pecados, tão judaico-cristãos?
Para
quem como eu, não conhece o Rio e apenas o imagina, fica ainda com mais
vontade. Parece uma cidade imprevisível, caótica, inesperada onde a alegria
está (sempre) à espera de acontecer.
E este
romance que insinua um apocalipse, e uma das personagens diz “que nunca
acontecerá aqui”, mesmo quando tudo parece perdido, quando se elege um Prefeito
evangélico que acredita no criacionismo, achamos que tudo está (mesmo) perdido
e que não terá solução. Mas é o contrário, esta cidade (Rio) e este país
(Brasil), são sobreviventes, reaprendem e renascem sempre reinventando-se. E
agora, que escrevo numa altura em que a eleição Trump parece ser o apocalipse
temos a esperança que ao contrário da música que diz “anunciaram e garantiram
que o mundo ia se acabar”, o mundo não acabe (de vez).
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