Ligou-lhe à noite quando estava a regressar do trabalho. Era
primavera, passava das 9 da noite e ainda era dia. Ainda não tinha jantado.
Nesse dia, a última refeição que fizera tinha sido o almoço. Só queria chegar a
casa e deitar-se de tão exausta que estava. Guiava em piloto automático.
Recebeu um telefonema. Não estranhou porque lhe ligava frequentemente a essa
hora. Estranhou, apenas, ter sido para o telemóvel. Era sempre para casa. Nunca
o ouvira chorar ao telefone. Só o vira chorar nos surtos psicóticos. A conversa
não foi longa nem com rodeios. Foi directo ao assunto:
- Estou a ligar para me despedir. Já liguei a toda a gente.
Sou um problema para toda a gente.
Sem experiência em nenhuma situação parecida, a primeira
reacção foi o desespero. Mas numa fracção de segundo, disfarçou. Tentou raciocinar.
Dissera-lhe que esperasse porque estava a caminho. Ocorreu-lhe ganhar tempo e
mantê-lo em linha para que não o fizesse. Tentou saber mais. Percebeu, tarde
demais, que a asneira estava feita e que o caminho era irreversível.
Não chegou a tempo, por mais que tudo fizesse. E só a
esperança de encontrá-lo vivo a fez voar. Estava vivo, de facto. Mas a
fronteira entre a vida e a morte é muito ténue. Estava vivo, sim. O coração
ainda batia. Mas já não a ouvia. E nunca mais voltou à consciência para a
ouvir.
Percebemos, depois, que planeara tudo ao pormenor.
Organizara as contas. Telefonara aos amigos, aos familiares, aos que magoara,
aos que esperaram por ele e a quem nunca apareceu. Mas ninguém percebeu. Nunca
fez um ultimato. Nem um pedido de ajuda. Nem uma ameaça. Nem um acerto de
contas. Pagou todos os jantares, como antes, e combinara os próximos. Dissera: “Pagas o próximo”. Tudo fez para que não o percebessem. E o último telefonema
foi para ela. Como se vive depois disto? Como se vive sem conseguir evitar este
desfecho?
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