Entra de óculos escuros numa sala totalmente escura.
Ninguém percebe a razão. Ao contrário da primeira lição não entra com a capa de
Doutora nem parece formal. Vem de t-shirt preta da Faculdade de Letras e o que
parecem, ao longe, umas All Star. Nunca em nenhuma das aulas se apresentou tão
informal. Quem a acompanha no palco está, igualmente, de negro. Num primeiro momento,
pensei haver um significado para a escolha da cor. A representação da tristeza
da última lição. O começo da saudade. A aula veio a mostrar-se totalmente
diferente das anteriores. Mais curta. Sem intervalo. Mais canções. Menos
palavras ditas. Menos preparação. Desta vez, não houve ensaiados e longos
agradecimentos, com a pompa dos anteriores. Agradeceu a uma pessoa em
particular, responsável pelas sapatilhas personalizava que calçava. Uma pintora
que não pintava e que voltou a pintar por causa das suas aulas. Por isso, nas
suas palavras, a sua missão já estava cumprida.
Está de luto pela tragédia "das queimadas".
"Isso não pode ser pior a cada ano que passa". [O ser humano acha que
controla tudo. Que todas as suas acções são inconsequentes. Há (até) um
Presidente que considera o aquecimento global uma piada, um mito, uma invenção.
E esta tragédia mostra, como tantas outras, que o ser humano nunca ganha uma
luta contra a revolta da natureza. Como no Moby Dick, o Homem é sempre o elo
mais fraco perante a grandeza do mais forte].
Nesta última lição, Adriana assumiu (mais) o papel de
cantora em vez de professora ou leitora. Desta vez o palco era um palco não um
estrado. Não havia uma secretaria, um computador ou um candeeiro, três dos
objectos que a acompanharam em todas as outras aulas. Mas aquilo que poderia
não fazer sentido nenhum, dada a desorganização inata, nas suas palavras, que
desta vez foi mesmo visível, correu muito bem. A capacidade de improviso
perante a pouca preparação desta aula mostrou uma das suas capacidades maiores.
Sem ensaio. Sem treino. Sem preparo. Empírica. "No osso". Simples. E
curta, como a vida. E mesmo assim, não desiludiu. Conseguiu prender a atenção
das (tão poucas) pessoas que não compunham o TAGV. Maioritariamente
brasileiros, claro. Tinha na plateia, nas primeiras filas, a autora da do texto
sobre as rosas que se sacrificam pelo vinho. [Na aula anterior lerá um texto sobre
como as rosas eram usadas para serem atacadas pelas pragas para que estas não
atacassem o vinho].
Esta lição que tinha como tema Trobar Nova era
supostamente para abordar poetas e/ou compositores contemporâneos. Começou por
António Cicero, que nunca foi esquecido na maioria das aulas. Leu um poema.
Tocou na questão da poesia e filosofia de Cicero (que dá nome a um dos livros).
E deu a resposta de Cicero à pergunta "o que é ser poeta e filósofo ao
mesmo tempo?": "Depende o que você quer dizer ao mesmo tempo".
Seguiram-se os poetas e as suas musas. E do tempo
produtivo que tem passado em Coimbra, onde tem composto e musicado algumas
músicas. Leu de forma performática, acompanhada pela guitarra de Gabriel Musak, um poema de Adília Lopes e no final arrancou devagar e sofridamente páginas de um livro.
A minha
Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
cantaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou cortar-te a língua
para aprender a cantar
a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra
Contou a história de como reencontrou o
músico brasileiro Gabriel Musak em Lisboa. (Cujo nome verdadeiro é
Gabriel Homem mas que deixou de usar o sobrenome porque o homem está em baixo).
E que quando o questionou sobre o que estava cá a fazer, ele respondeu:
"Vim pra ver". Para ela essa frase foi tão inesperada é tão
impactante que voltou para o hotel e compôs uma música. De facto, a canção foi
conseguida.
Vim pra ver
Quando vi, vim pra ver
Dei por mim
Tava aqui, vim te ver
Faço o que?
Você não sabe o que me cabe
No silêncio, dor
No escuro, dor
No espelho, dor
Doi a felicidade
Mas não repare
Mas não se iluda
É que não se usa
Refrão sem Musa(k)
Seguiu-se a canção medieval do trovador galego Martín
Codax:
"Quantas sabedes amar amado
treides comig’a lo mar levado
e banhar-nos-emos nas ondas!"
Falou da recente visita à Bulgária, onde
descobriu telenovelas dobradas em búlgaro e onde a palavra música significa o
mesmo. Tocou a canção Mentiras com a referência: "as novelas acabam mas as
músicas não".
Cantou o poema Mortal loucura de Gregório de Matos, dizem que o maior poeta barroco
brasileiro. Um poeta também conhecido como “Boca do Inferno” e que “influenciou
muito o mau comportamento de muita gente no Brasil.
Na oração, que desaterra … a terra,
Quer Deus que a quem está o cuidado … dado,
Pregue que a vida é emprestado … estado,
Mistérios mil que desenterra … enterra
.
Quem não cuida de si, que é terra, … erra,
Que o alto Rei, por afamado … amado,
É quem lhe assiste ao desvelado … lado,
Da morte ao ar não desaferra, … aferra.
Quem do mundo a mortal loucura … cura,
A vontade de Deus sagrada … agrada
Firmar-lhe a vida em atadura … dura.
O voz zelosa, que dobrada … brada,
Já sei que a flor da formosura, … usura,
Será no fim dessa jornada … nada.
Seguiu-se Fanatismo
de Florbela Espanca musicada e cantada por Fagner e que se tornou um sucesso no
Brasil.
Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver !
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida !
Não vejo nada assim enlouquecida ...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida !
"Tudo no mundo é frágil, tudo passa ..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim !
E, olhos postos em ti, digo de rastros :
"Ah ! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus : Princípio e Fim ! ..."
Elogiou a paciência de quem estava naquela
sala para a ver e ouvi-la com o dia lindo que estava lá fora. Para último deixou
a tradução da canção de Bob Dylan, o Nobel de Literatura, Negro amor. E como a memória lhe falhara e alguém na plateia
mostrava saber de cor a música desafiou-o dizendo: “O que você sabe para me
ajudar?”.
Desta vez, não houve saudades (ainda) visíveis
na despedida, nem choro, nem palavras mais ou menos comovidas. Foi uma
despedida como as outras, talvez a mostrar que a Professora/cantora não gosta,
de facto, de despedidas. Alguém na plateia falou a capella do significado destas aulas e do quão revolucionárias
foram para quem as assistiu e para a Universidade de Coimbra, instituição centenária.
Ofereceu-lhe, por fim, uma rosa e um cravo vermelhos.
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