segunda-feira, 10 de julho de 2017

A última lição

Entra de óculos escuros numa sala totalmente escura. Ninguém percebe a razão. Ao contrário da primeira lição não entra com a capa de Doutora nem parece formal. Vem de t-shirt preta da Faculdade de Letras e o que parecem, ao longe, umas All Star. Nunca em nenhuma das aulas se apresentou tão informal. Quem a acompanha no palco está, igualmente, de negro. Num primeiro momento, pensei haver um significado para a escolha da cor. A representação da tristeza da última lição. O começo da saudade. A aula veio a mostrar-se totalmente diferente das anteriores. Mais curta. Sem intervalo. Mais canções. Menos palavras ditas. Menos preparação. Desta vez, não houve ensaiados e longos agradecimentos, com a pompa dos anteriores. Agradeceu a uma pessoa em particular, responsável pelas sapatilhas personalizava que calçava. Uma pintora que não pintava e que voltou a pintar por causa das suas aulas. Por isso, nas suas palavras, a sua missão já estava cumprida.

Está de luto pela tragédia "das queimadas". "Isso não pode ser pior a cada ano que passa". [O ser humano acha que controla tudo. Que todas as suas acções são inconsequentes. Há (até) um Presidente que considera o aquecimento global uma piada, um mito, uma invenção. E esta tragédia mostra, como tantas outras, que o ser humano nunca ganha uma luta contra a revolta da natureza. Como no Moby Dick, o Homem é sempre o elo mais fraco perante a grandeza do mais forte].

Nesta última lição, Adriana assumiu (mais) o papel de cantora em vez de professora ou leitora. Desta vez o palco era um palco não um estrado. Não havia uma secretaria, um computador ou um candeeiro, três dos objectos que a acompanharam em todas as outras aulas. Mas aquilo que poderia não fazer sentido nenhum, dada a desorganização inata, nas suas palavras, que desta vez foi mesmo visível, correu muito bem. A capacidade de improviso perante a pouca preparação desta aula mostrou uma das suas capacidades maiores. Sem ensaio. Sem treino. Sem preparo. Empírica. "No osso". Simples. E curta, como a vida. E mesmo assim, não desiludiu. Conseguiu prender a atenção das (tão poucas) pessoas que não compunham o TAGV. Maioritariamente brasileiros, claro. Tinha na plateia, nas primeiras filas, a autora da do texto sobre as rosas que se sacrificam pelo vinho. [Na aula anterior lerá um texto sobre como as rosas eram usadas para serem atacadas pelas pragas para que estas não atacassem o vinho].

Esta lição que tinha como tema Trobar Nova era supostamente para abordar poetas e/ou compositores contemporâneos. Começou por António Cicero, que nunca foi esquecido na maioria das aulas. Leu um poema. Tocou na questão da poesia e filosofia de Cicero (que dá nome a um dos livros). E deu a resposta de Cicero à pergunta "o que é ser poeta e filósofo ao mesmo tempo?": "Depende o que você quer dizer ao mesmo tempo".

Seguiram-se os poetas e as suas musas. E do tempo produtivo que tem passado em Coimbra, onde tem composto e musicado algumas músicas. Leu de forma performática, acompanhada pela guitarra de Gabriel Musak, um poema de Adília Lopes e no final arrancou devagar e sofridamente páginas de um livro.


A minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
cantaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou cortar-te a língua
para aprender a cantar

a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra

Contou a história de como reencontrou o músico brasileiro Gabriel Musak em Lisboa. (Cujo nome verdadeiro é Gabriel Homem mas que deixou de usar o sobrenome porque o homem está em baixo). E que quando o questionou sobre o que estava cá a fazer, ele respondeu: "Vim pra ver". Para ela essa frase foi tão inesperada é tão impactante que voltou para o hotel e compôs uma música. De facto, a canção foi conseguida.

Vim pra ver
Quando vi, vim pra ver
Dei por mim
Tava aqui, vim te ver
Faço o que?
Você não sabe o que me cabe
No silêncio, dor
No escuro, dor
No espelho, dor
Doi a felicidade
Mas não repare
Mas não se iluda
É que não se usa
Refrão sem Musa(k)

Seguiu-se a canção medieval do trovador galego Martín Codax:
"Quantas sabedes amar amado

treides comig’a lo mar levado

e banhar-nos-emos nas ondas!"

Falou da recente visita à Bulgária, onde descobriu telenovelas dobradas em búlgaro e onde a palavra música significa o mesmo. Tocou a canção Mentiras com a referência: "as novelas acabam mas as músicas não".

Cantou o poema Mortal loucura de Gregório de Matos, dizem que o maior poeta barroco brasileiro. Um poeta também conhecido como “Boca do Inferno” e que “influenciou muito o mau comportamento de muita gente no Brasil.


Na oração, que desaterra … a terra,

Quer Deus que a quem está o cuidado … dado,
Pregue que a vida é emprestado … estado,
Mistérios mil que desenterra … enterra
.
Quem não cuida de si, que é terra, … erra,
Que o alto Rei, por afamado … amado,
É quem lhe assiste ao desvelado … lado,
Da morte ao ar não desaferra, … aferra.

Quem do mundo a mortal loucura … cura,

A vontade de Deus sagrada … agrada
Firmar-lhe a vida em atadura … dura.

O voz zelosa, que dobrada … brada,

Já sei que a flor da formosura, … usura,
Será no fim dessa jornada … nada.

Seguiu-se Fanatismo de Florbela Espanca musicada e cantada por Fagner e que se tornou um sucesso no Brasil.

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida

Meus olhos andam cegos de te ver !
Não és sequer a razão do meu viver, 
Pois que tu és já toda a minha vida !

Não vejo nada assim enlouquecida ...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida !

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa ..."
Quando me dizem isto, toda a graça 
Duma boca divina fala em mim !

E, olhos postos em ti, digo de rastros :
"Ah ! Podem voar mundos, morrer astros, 
Que tu és como Deus : Princípio e Fim ! ..."

Elogiou a paciência de quem estava naquela sala para a ver e ouvi-la com o dia lindo que estava lá fora. Para último deixou a tradução da canção de Bob Dylan, o Nobel de Literatura, Negro amor. E como a memória lhe falhara e alguém na plateia mostrava saber de cor a música desafiou-o dizendo: “O que você sabe para me ajudar?”.

Desta vez, não houve saudades (ainda) visíveis na despedida, nem choro, nem palavras mais ou menos comovidas. Foi uma despedida como as outras, talvez a mostrar que a Professora/cantora não gosta, de facto, de despedidas. Alguém na plateia falou a capella do significado destas aulas e do quão revolucionárias foram para quem as assistiu e para a Universidade de Coimbra, instituição centenária. Ofereceu-lhe, por fim, uma rosa e um cravo vermelhos.





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