Milly
Lacombe começa por falar de NY. Uma descrição cinematográfica de quem viveu
perto de Union Square, entre a 1st Avenue e a 14th Street, entre o East Village
e o Soho. Do pequeno almoço no Jack’s
Wife Freda, uma instituição. Das idas a St
Mark’s Bookstore. Da sua vida de procrastinação e de proper wife “cuidava dela, da casa e escrevia, e ela completava a
nossa renda”. De como era movida pela
“felicidade dos ignorantes”. Da rotina de uma new yorker que era freelancer.
A vida perfeita que teve um fim. Este é o mote.
O
livro divide-se em duas partes: morte e renascimento. A morte chegou “em NY
numa manhã ensolarada de sábado”. A pergunta das perguntas, “a mãe de todos os
questionamentos: “por que existe alguma coisa em vez de nada?”, que Caetano adaptou a: “Existirmos: a que será
que se destina?”. E o livro é o desenrolar do novelo do nada em que a autora se
encontra até à sua reconstrução.
Ficamos a saber que o
grande problema da autora era a arrogância e que era a pessoa que deixava e que
nunca a que era deixada. Nasceu para ser
conquistada e amada: “eu era a mais amada, a mais desejada, a mais
cortejada, a mais segura, a que não sentia ciúmes”. Que emendava
relacionamentos. E percebe-se (tão bem) como é que as relações dela duravam
tanto. A pessoa que traía e que nunca a que foi traída e provou a dor que isso
provoca.
“Evite ter certeza
daquilo que você desconfia”. A ficção e os delírios surgem com a ida da mulher
para Berlim. Sozinha em casa. Começou a questionar tudo. Perturbada. Maníaca.
Chorava muito durante o dia. Angustiada. Começou a ser questionada pela
inércia, pela falta de socialização. Estranha. Distante. Sentia alguma
coisa diferente.Estava a ficar maluca. Não conseguia (mais) trabalhar. A desconfiança de estar sempre a olhar para o
telefone, o grande inimigo dos tempos modernos, o aparelho que mais lares
estraga “deixava o aparelho com a tela sempre para baixo”. A suspeita. Sempre a
dúvida. Até ao fim. Passou de uma mulher segura ao oposto. “Você me olha como
se eu tivesse morrido”. De pessoa segura, madura e confiante passou a
obsessiva. Carente. Sombria. Em simultâneo a ex e melhor amiga foi
diagnosticada com cancro.
“Não há amor que
sobreviva ao sufocamento... assim como o fogo, o amor precisa de oxigénio para
arder”. Transformou-se numa pessoa “sem graça, chata e pobre”. A companheira
não a reconhece, não sabe o que quer, não está feliz, está sufocada: “você
mudou demais, se trancou nesse apartamento e em sua dor, em seus medos. Sinto
saudade de você, da versão de antes, que era alegre, não tinha medos..”. O que parecia ser uma suspeita, parece transformar-se num facto consumado. Aliado ao problema
prático de ter 44 anos, ser incapaz de se sustentar sozinha, sem nenhum
dinheiro guardado e “um salário de merda” que se podia resumir em “uma pessoa
financeiramente fracassada, moralmente falida e irremediavelmente sozinha”. É
assim a primeira parte do livro:“Meus dias se resumiam em esperá-la voltar para
casa e imaginar a traição”. Angustiante. Doloroso. Deprimente. Fim.
“Morrer dói, mas
renascer é lindo”
A segunda parte do
livro é o renascimento. A aventura do descobrimento. Um retiro, longe da civilização, no meio da
Amazónia, na margem do Tapajós, um rio que parece um mar, com um grupo de
pessoas (desconhecidas) da esquerda
caviar, a comerem grãos, acaí e
tapioca. Agora uma pessoa que não era mais amada, desejada nem cortejada.”Uma
pessoa vazia de sentimento”. Havia-se transformado numa pedra. A pessoa que não
conseguia ficar longe do telemóvel 10 minutos. A pessoa que nasceu “para brilhar, ser
protagonista, feliz e amada” a dormir numa rede. Todas as pessoas do grupo a
incomodavam, principalmente, as que se riam muito sem motivo. Inicia-se no ritual do
rapé (planta medicinal dos índios), ela que nunca tinha usado nenhum tipo de
droga ilegal. “somente quando experimentamos o nada é que estamos prontos para
tudo". Não há nada como bater no fundo para subir às alturas. Ou a frase: “Não há
mal que dure sempre nem bem que nunca acabe”. Munida dos dois volumes de Os irmãos Karamazov de Dostoiévski e de
uma atitude fechada, arrogante, preconceituosa e julgadora foi baixando a
guarda ao longo dos dias. E nesta semana descobre-se e renasce. A pessoa que
estava num relacionamento que repetia a dinâmica dos pais. No retiro falam muito
de sexo, de relações que não resultaram, de medos, de novos amores, de
(in)felicidade, de fraquezas, de inseguranças. Com o passar dos dias foram
despindo-se de máscaras e muros, começaram a expor-se em público e a assumir
fraquezas. Começaram a permitir-se admitir que sentirem-se amedrontrados,
indefesos e desprotegidos não é um defeito. Todos precisamos de afecto, carinho
e um colo. Não somos autosuficientes o tempo todo. Afinal, somos algum dia, “apenas
crianças que tentam sobreviver e ser felizes neste mundo tão cruel e cheio de
expectativas”. E sai do retiro não com mágoa nem raiva da ex (que não abandonou
e não foi culpada sozinha) mas com a visão positiva de uma história linda que
construíram. Aquilo que se chama reciprocidade e simbiose: amar alguém que a
amou de volta.
Só a autora poderá
dizer o que é de facto verdade ou não. Aqui tudo parece verdade com um pouco de
ficção que não irá além da troca de nomes, número e nome de irmãos e sobrinhos
e a morte da mãe. O resto, só ela e as (os) intervenientes directas (os)
poderão atestar. Sozinha,
pegou em algumas garrafas de vinho, alguns livros e o computador e isolou-se na
montanha para escrever. O livro é o resultado da fórmula que a autora
encontrou para superar a dor. O melhor do livro é talvez o sentido de humor no
meio de tanta dor. Partes do livro são crónicas já publicadas. Textos
conhecidos. Não faz diferença para não os conhece.
Como
leitora inclui alguns dos grandes que vão de David Foster Wallace, Virginia
Woolf, Dostoiévski,
Eça de Queirós, Machado de Assis, Proust, Camus,
Chomsky, Guimarães Rosa e cita até alguns deles. Para além dos autores
que cita e lê, fala de Hopper e do Nighthawks
(que é a capa do livro Cenas da vida
americana da Clara Ferreira Alves). Hopper que pinta a solidão como ninguém.
Tempos antes de publicar
o livro, Milly disse tratar-se de “um romance auto-biográfico, género chamado
auto-ficção”. O começo é difícil, amargo,
angustiante, sentimos pena da protagonista (eu incluo ainda a solidariedade com
a pessoa que supostamente trai) mas depois tudo acaba em bem, como se de um exorcismo
se tratasse. Sem dizer nada de novo, a história não ser original e o argumento
ser (apenas) o quotidiano que é a vida, leva-se (sempre) alguma coisa e não
causa dano algum.
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