quinta-feira, 26 de abril de 2012

Vida precária I


Acabo de ler no Público que o governo quer cobrar IRS aos bolseiros da FCT.  Para ser mais correcta, não é o governo, é o ministério das finanças, porque o ministro da educação e ciência é contra... Isto depois de termos assinado um contrato (no meu caso, renovável anualmente até 36 meses) com a FCT em que numa das alíneas diz exactamente que os bolseiros estão isentos desse pagamento. Eu não seria absolutamente contra se tivéssemos os mesmos direitos de todos os trabalhadores. Somos apenas pagos 12 meses/ano, não descontamos para a segurança social sobre o valor que ganhamos, não temos direito a 13º mês nem subsídio de férias e/ou subsídio de desemprego. Para piorar o cenário, somos talvez a única classe em Portugal que não vê os salários actualizados há 10 anos. De facto, nós não existimos. Duvido muito que hoje algum bolseiro consiga contrair um empréstimo. E vivemos nesta corda-bamba. 

Quem está a começar a carreira científica acha tudo maravilhoso e nem pensa. O futuro é algo muito longe, a euforia dos 20 acompanha-nos e isso de planos a longo prazo não existe. Quando comecei o meu doutoramento nem imaginava no buraco sem fundo que me metia... Aquele entusiasmo inicial de que vamos revolucionar o mundo e que alguém é o arauto das boas novas... Nunca, nessa altura houve pensamentos pessimistas.  Alguém, que pela primeira vez nos dava valor profissional e nos animava a sermos mais, maiores.  Citando o João Lobo Antunes: “tal como os apóstolos, quando ouviram o chamamento, deixamos  tudo e segui-lo”.  E eu comecei o meu doutoramento neste entusiasmo cego, fascinada por resultados, uma vida punk de se passar noites no lab, num tempo em que se podia fumar cigarros em todo o lado, jantar a horas que se deveria estar a dormir, viver de noite e, ainda por cima, de dia. Mas tudo muito divertido, muito companheiro, muita ajuda, tudo a remar para o mesmo lado.. Horas infindáveis, dias e noites que se confundiam, choros de desespero de não se conseguir solucionar um problema antes de uma conferência... Algumas músicas que me acompanharam nesses dias, e hoje quando as oiço, ainda me fazem arrepiar ao lembrar-me desse desespero. 

Depois essa coisa do mundo adulto, viajar e conhecer cidades novas, com pessoas que eram “cool” que nos mostravam o mundo. E nessa altura o objectivo era produzir mais e melhor para sermos seleccionados para apresentações orais nas conferências. E sim, não vou dizer que foi péssimo, que detestei. Não, adorei, na maioria das vezes. O problema era mesmo as apresentações. Eu costumo dizer até hoje que perdi anos de vida. Na minha primeira apresentação oral na Suiça,  era eu ainda um “bebé de fraldas” (na gíria científica) a acabar o meu estágio. Lembro-me até hoje de estar na plateia e dizer ao meu orientador que ia à casa de banho. Quando regressei ele disse-me que estava preocupado e que já estava a prepara-se para fazer a apresentação por mim. Sobrevivi a esse dia e muitos mais haviam de vir. 

Outra das memórias que tenho foi numa cidade no fim do mundo, Memphis. Isto em 2005. Aquilo era uma cidade fantasma, às 6 não havia nada... Lembro-me apenas da Beale Street cheia de clubes de jazz e do rio Mississipi, que fiquei tão desiludida quando vi. Eu a pensar que aquilo era tipo o rio Amazonas... Mas o que queria mesmo falar é que o centro de congressos era gigante, bem à medida das cidades da América profunda. Tudo é grande. Uma das primeiras coisas que o meu orientador fazia era mostrar-nos a sala onde íamos fazer a apresentação para que não caíssemos redondas de surpresa. Bem, quando chego à sala... aquilo não era uma sala, aquilo parecia a FIL. Tinha um palco e dois ecrãs gigantes que parecia que era a Madonna que ia actuar! Eu quase morri. Devia ter ficado com tão mau aspecto que o meu orientador disse-me: “Não te preocupes que vão dividir a sala. Isto é só para a sessão de abertura”. Fingi que acreditei. Chegada a hora lá subi ao palco com o microfone de lapela (tão sofisticada que era a coisa). Percebi rapidamente que os ecrãs eram tão longe do pódio que o laser era imperceptível. O sistema naquela altura já era muito à frente (tipo ipad) tocava-se no ecrã do computador e isso era reflectido nos ecrãs gigantes. Desisti, claro de apontar porque as minhas mãos pareciam dois abanadores. Também aqui sobrevivi. 

A conferência seguinte, nesse mesmo ano foi em Shanghai. A conferência que eu mais queria ir e fui! Só fomos 6 pessoas: 4 alunas e 2 chefes. Foi a conferência e a cidade mais surreal onde estive. Desde os taxistas não entenderem o alfabeto ocidental, sim, porque lá nem ousávamos falar, era mesmo tudo escrito em mandarim! As pessoas ficavam a olhar para nós na rua porque éramos as únicas pessoas não-asiáticas. A nossa companheira inseparável era a máquina calculadora. Tudo era negociado. Marcávamos o preço na máquina e a partir daí começava o negócio. Comemos as coisas mais absurdas: andorinha, tartaruga e afins. Até há uma história da AR que se entusiasmou ao ver o que ela achava ser abacate e mete uma colher cheia à boca... e o que era? Wasabi!!! A aventura de comprarmos meias de vidro para a C porque o tempo passou de tropical a glaciar... Eu nunca fiz tanta mímica na vida! A simpatia das senhoras na loja até hoje me comove. O quão mal fiquei num jantar no hotel porque a ementa estava em chinês e não conseguíamos pedir nada de jeito e depois acabamos a noite num bar a beber vinho tinto. Claro que nem vou descrever o resultado. A aventura ainda maior de nos terem levado para o hotel errado e de nos tentarem explicar em chinês que os nossos nomes não constavam na lista. Mas nós insistíamos que sim, que era aquele hotel... só me lembro de ter acordado a meio da tarde, a recuperar do jet lag, com a M. a dizer que estava noutro hotel e que o nosso era o errado... E foi também nessa semana que eu fiz uma amizade que me ficou para a vida, com uma pessoa, como quase todas as outras, eu não gostei à primeira vista. Estas amizades são o que ficam para a vida e o que me fazem olhar para trás e não arrepender-me das escolhas que fiz. 

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