À luz dos olhos de hoje, Egas Moniz, o primeiro Nobel português, é controverso Existem várias correntes que apoiam a retirada do Prémio Nobel.
Quando lhe perguntaram se foi o que pretendia ser na vida, respondeu:
«Certamente». Quanto às qualidades que mais apreciava nos médicos: »Honestidade
acima de tudo. Saber. Delicadeza com os doente. Grande dose de bom humor».
Quem foi afinal Egas Moniz?
Nasceu em Avanca, Estarreja em
1874. Com pouco mais de 5 anos foi para Pardilhó para casa de um tio padre. Aos
10 anos, depois do exame da escola primária vai para o Colégio de S. Fiel, dos
Jesuítas, em Castelo Branco. Passou depois para Viseu, onde esteve numa casa
particular. Aos 16 anos fica sem pai. Os exames do liceu foram, mais uma vez,
excelentes. Matriculou-se nos estudos preparatórios em Coimbra, que serviam ao
mesmo tempo, para a carreira militar e Medicina. Em 1894 ingressou no curso de Medicina. Nos
primeiros anos do curso fica órfão de mãe. Em 1900 foi aprovado com Muito Bom,
16 valores. É aí convidado para seguir a carreira académica. Casou-se em 1901
com Elvira de Macedo Dias. O casal nunca teve filhos, o que terá sido um
grande desgosto para ambos. Também neste mesmo ano, para a obtenção do grau de
Doutor («a última e a maior honra a que nas Universidades pretendiam chegar os
que nela estudam») escolheu como tema «A Vida Sexual I – Fisiologia. Há apenas um século pode ver-se como a ciência médica ainda estava atrasada: «o óvulo
humano é uma célula completa, e pode sozinha gerar um feto». A Isilda
Pegado, presidente da Federação Portuguesa da Defesa da Vida,
que parece estar atrasada em relação ao seu tempo devia ficar impressionada com
esta frase! Para ser admitido a professor escolheu como tese «A vida sexual II
– Patologia» que incluem algumas questionáveis ideias de Egas Moniz: «O homem é
essencialmente sexual, a mulher é essencialmente mãe. Tudo o que se afasta
disto é anormal»; «Sou contra o casamento virgem da parte do homem, acho-o
mesmo inexequível»; «A inversão sexual é uma doença tão digna de ser tratada
como qualquer outra». O seu interesse a partir daqui foi essencialmente a
neurologia, uma vez que estudara em Bordéus com um neurologista e com um
psiquiatra. Refere mais tarde que: «O que sou em ciência devo-o à França e aos
seus mestres».
A relação com a Universidade de Coimbra nunca foi
pacífica. Egas nunca tomou posse dos cargos de lente substituto e catedrático
em Coimbra. Egas arranja então consultório em Lisboa na Rua Nova do Carmo e vem
a ocupar a cadeira de Clínica Neurológica da Faculdade de Medicina de Lisboa.
Da sua vida política não vou aqui falar, pois o que me interessa destacar, é a
sua carreira de cientista e médico. Egas considerava Coimbra demasiado pequena
para a sua ambição. Além do consultório da Rua Nova do Carmo passa a dar
consultas de «doenças nervosas» na Praça Luís de Camões. Alguns anos depois
muda-se para a Rua do Alecrim.
Entre os seus doentes conta-se Fernando Pessoa e Mário
de Sá-Carneiro. Pessoa desistira do Curso Superior de Letras e começara a ser
autodidacta na psicopatologia. Como a avó tinha enlouquecido, Pessoa temia que
lhe acontecesse o mesmo. Egas passa-o para «fins ginásticos», ao que Pessoa,
quando seguiu as suas recomendações afirmou: «para cadáver só me faltava
morrer». Egas pronunciou-se a respeito dos autores do Orpheu: «meninos sem talento que querem chamar para si as atenções
vomitando asneiras...levem-nos para os manicómios, e metam-nos em pavilhões
para dementes...». Mais tarde, Pessoa tece violentas afirmações contra Egas: «O
que me indigna não é que esse parvo da ciência tenha essas opiniões...mas
tenham prestígio suficiente para que a essas opiniões se dê importância». Egas
fazia-se pagar muito bem. Em 1921 é eleito director do Hospital Escolar de Santa
Marta.
Egas Moniz foi um cientista improvável e tardio,
corroborando a afirmação: «You are
never too old to be a scientist». Já tinha 51 anos quando começou a interessar-se por
visualizar os vasos cerebrais. Havia a necessidade de uma técnica que
permitisse a localização correcta dos tumores cerebrais. A primeira ideia foi
administrar por via oral brometo de lítio (40 g deste composto que tinha 92% de
bromo!!!) a doentes epilépticos e depois radiografava-se o crânio. Depois
começou a testar a opacidade de diferentes sais de bromo(lítio, estrôncio,
sódio e potássio) dissolvidos em água e presos numa placa de cartão que
encostava ao crânio. Nesta altura começa a colaboração com Pedro de Almeida Lima, tio dos irmãos Lobo
Antunes, foi o fundador da neurocirurgia em Portugal. Esta dupla
professor/aluno, com quase 30 anos a separá-los, começa a estudar a toxicidade
de várias substâncias opacas aos raios X no coelho e cão, quando injectados por
via subcutânea e endovenosa. Chegaram à conclusão que o brometo de estrôncio
até 30% era o menos tóxico. Em 1927, com este meio de contraste, conseguiram
vizualizar a circulação intracraniana de um rapaz com um tumor da glândula
hipofisária. Ao que Egas reage assim: «Ontem ao alcançar o fim desejado, chorei
como uma criança. Este trabalho era a minha vida». Em 1933, Egas publica na Lancet um artigo que demonstra a
utilidade da angiografia com tototraste, obtida em mais de 300 doentes, os
quais, podiam regressar a casa após o exame sem qualquer problema. Egas
preferia os colaboradores cultos e dedicados ao estudo. A invenção da
angiografia teria sido mais do que suficiente para garantir a Egas Moniz um
lugar eterno na história da medicina.
Há um caso clínico, descrito com muito pormenor no
livro Erro de Decartes n de António Damásio: Phineas Gage trabalhava nos
caminhos-de-ferro em Vermont be sofreu um acidente com uma explosão acidental no
qual uma barra de ferro de 109 cm de comprimento e 3 cm de diâmetro atravessou
a sua face e saiu pelo osso frontal. Depois de ter desmaiado, Gage recuperou e
foi levado para o hospital. Gage, apesar de ter sobrevivido, sofreu severas
mudanças comportamentais e emocionais, embora a memória permanecesse
perfeita. Gage pareceu recuperado, com a mesma inteligência, capacidade de
aprendizagem mas tornou-se numa pessoa socialmente inconveniente após o
acidente. Com a leucotomia pré-frontal (corte da substância branca do cérebro)
com um leucótomo (cânula metálica de 11 cm de comprimento e 2 mm de diâmetro)
os doentes pareciam melhorar. Ao contrário da angiografia cerebral,
psicocirurgia rapidamente se expandiu, devido à ausência de terapêuticas
eficazes nas doenças mentais. Calcula-se que entre 1942 e 1954 foram operados
no Reino Unido cerca de 11 mil doentes e nos EUA 18600.
Em 1949, depois de 4 candidaturas, Egas Moniz é
galardoado com o Prémio Nobel de Fisiologia e Medicina pela descoberta e valor
terapêutico da leucotomia pré-frontal. Morreu em 1955.
A psicocirurgia continuou a ser praticada pelos nomes
mais ilustres da neurocirurgia mundial até à introdução dos psicofármacos como
a clorpromazina, em 1954. Claro está, que a psicocirurgia foi mal aplicada,
dizia-se para controlar o comportamento de presos e delinquentes ou para mudar
orientações sexuais. As críticas continuam até hoje como a história trágica de
Rosemary Kennedy ou da irmã de Tennessee Williams à peça “Voando sobre um ninho de cucos” filmado por
Milos Forman. Depois de votada à clandestinidade durante anos, a psicocirurgia
está praticamente confinada à doença obsessiva-compulsiva e a estados de
ansiedade refractários a qualquer outra terapêutica.
Fonte: Egas Moniz - Uma biografia de João Lobo Antunes
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