Há muitos anos, antes de Saramago receber o Nobel,
fui assistir a uma conversa dele. Já era um escritor consagrado mas eu não
conhecia muito bem a obra dele. Lembro-me que nesse dia a minha opinião sobre
ele mudou totalmente. Eu que achava Saramago austero, antipático, parco em
palavras e até um pouco bruto, naquele dia, surpreendeu-me. Um homem delicado,
atencioso, apesar das imensas filas. Nesse dia, se tinha muitas dúvidas sobre o
comunismo, terminaram todas ali. Saramago, comunista convicto, usava uma
gravata Pierre Cardin. Afinal, até os
comunistas são capitalistas!
Muitos anos depois fui ao cinema ver “José e Pilar”.
E se há retrato tão fiel de Saramago é esse. Eu que privei com Saramago meia
dúzia de minutos e que ele atendera a todos os pedidos que eu lhe fizera,
reconheci-o totalmente no documentário do Miguel Gonçalves Mendes. Um homem que
surpreende quem não o conhece: bem-humorado, meigo, de sorriso fácil. Quem não
viu o filme, é melhor não ler este texto, porque todos os “segredos” serão
desvendados. Mas eu, não me canso de o ver!
Este texto esperou 3 anos para acabar de ser escrito.
Nunca o achei suficientemente bom, e hoje, não é excepção. Mas acho que chegou
a hora, não pode esperar mais.
O documentário começa com José e
Pilar abraçados, tendo como cenário, as montanhas escuras de Lanzarote... “Se
tivesse morrido aos 63 anos, antes de te conhecer... morreria muito mais velho
do que quando chegar a minha hora...”. Esta declaração de amor não é linda? Este documentário
centra-se sobretudo na história de amor de José e Pilar. O dia-a-dia comum
entre dois egos e personalidades extremamente fortes. O cânone e a pessoa que
organiza toda a sua vida. As dedicatórias de todos os livros após ter
conhecido Pilar mostram que Saramago não seria o mesmo se ela não tivesse aparecido
na sua vida: “A Pilar, que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar”; “A
Pilar, que não deixou que eu morresse”; “A Pilar, até ao último instante”; “A
Pilar, minha casa”; “A Pilar, os dias todos”; “A Pilar, o meu Pilar” e somente “A
Pilar”. Vê-se, repetidamente, cenas de carinho entre os dois, mãos dadas,
abraços, ou simplesmente, a verem televisão juntos. Saramago diz também que se
não tivesse conhecido Pilar tinha morrido muito mais velho.
A narrativa
deste documentário segue a escrita do livro “A viagem do elefante”. Este livro,
que eu comprei pouco depois de ter visto o filme no cinema, e que li em NY.
Deixei-o algures numa mesa em NY. Isto sou eu: esquecer-me de tudo em todo o
lado! “A viagem do elefante” (que eu chamava “A viagem do Salomãozinho”) conta
a jornada verdadeira do elefante Salomão (oferecido pelo Rei D. João III ao arquiduque
Maximiliano da Áustria) desde Lisboa até Viena. Este livro é uma metáfora da
inutilidade da vida. Que triste fim, o de Salomão. Aquelas patas que tinham
andado tanto e acabam a servir de bengaleiro. A epígrafe deste livro é linda: “Sempre
chegamos ao sítio onde nos esperam”.
Vê-se a
casa de Saramago em Lanzarote que tem escrito “A casa” em azulejos. Como é que
Saramago escrevia? Num escritório com muita luz, com grandes janelas, mesa
grande, rodeado de livros, sentado à frente de um computador, a ouvir música
clássica.... Num dos momentos mais bem humorados, há uma cena em que Saramago
parece estar a escrever e o que se vê depois? Saramago a jogar “Paciência”,
segundo ele, para evitar o Alzheimer!!!
Mais à
frente vê-se 3 jovens italianos, nervosíssimos à espera de entrevistar o seu
ídolo na biblioteca em Lanzarote. Estas imagens fazem lembrar-me da descrição
de Susan Sontag quando, finalmente, conheceu o seu ídolo Thomas Mann. Os jovens
treinam para impressionar Saramago mas a simplicidade e simpatia deste,
desarma-os.
As
viagens de Saramago assemelham-se a de uma digressão de uma estrela pop.
Saramago, apesar da avançada idade, não o aparenta. Fusos horários, viagens,
aviões, táxis, carros, esperas de aeroportos, autocarros, ruas do mundo, hotéis,
filas intermináveis de pessoas para autógrafos, conferências, leituras,
apresentações, horas e horas. Tanta coisa que só de escrever cansa! Mas que
Pilar insiste que para cansaço já chega os jovens que estão cansados, que andam
o dia todo cansados e que já nascem cansados. Que “para descansar existe a
eternidade, que é um tempo que nem nos passa pela cabeça”. E pergunta: se
queriam que Saramago se sente com um cobertor a tapar as pernas e ela que fique
em casa a limpar as pratas? Adoro quando Pilar diz que recusa-se a estar
deprimida, ou triste, ou sem esperança: “tomamos comprimidos e vamos trabalhar,
ponto! Sou a favor dos fármacos!Uma vida inteira a sofre com dores, quando
agora temos fármacos?! O que faz mal é passarmos mal!”. Quando lhe perguntam
numa das sessões de autógrafos se quer parar para descansar, responde: “O que
ganho se parar?” Outra das cenas engraçadas é assistir ao “cochilo” de Saramago
e Garcia Marquez numa apresentação no México.
No
decorrer do documentário vê-se um Saramago muito doente, extremamente
debilitado e magro. E o apoio incansável de Pilar e da âncora da sua família. Na homenagem de Saramago na Azinhaga, terra onde nasceu, é uma das situações em
que se vê um Saramago comovido: “Se vocês não fossem tantos eu já estava a
chorar. Mas vocês são tantos que eu nem chorar posso!”. A outra situação em que
Saramago chora mesmo é na projecção privada de “Blindness”, onde agradece a
Fernando Meirelles: “Ganhamos o dia!”.
Mas o
momento em que me lembro de chorar de rir, da primeira vez no cinema, foi
quando um brasileiro que estava numa fila para falar com Saramago, de tanto
preparar-se, fala assim: “Saramago, me desenha um hipopótamo!” ahahahahahahah
Quando
se perguntava a Saramago o que queria mais: “Tempo. Vida!”. O que pretendia
Saramago com a fundação? Continuar-se!
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