segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Os pobres no Brasil

Grande texto. As desigualdades gritantes do Brasil aos olhos do mundo: «No Brasil, pobre não tem direito a artigo nem plural. Só "pobre (...) Os privilegiados e os "fudidos", como por vezes se escreve no Brasil, uma vez que há aqueles que nem merecem a vogal certa. (..) mesmo a vida dos que deixaram de ser oficialmente pobres continua impedida pelo descaso das autoridades e pela estrutura de castas. Horas de martírio para ir de casa para o emprego, medíocre prestação do Estado na saúde e educação, corrupção, favoritismo, discriminação, desamparo e muito pouca mobilidade social». Felizmente, Portugal apesar da crise e apesar do crescimento da pobreza infantil não tem este tipo de diferença social e de estigma. Espero que este tipo de (in)diferença nunca chegue cá. O texto completo escrito pelo Hugo Gonçalves no DN: 

"No Brasil ser pobre é ter o destino traçado na palma da mão, um estigma quase sempre vitalício. No Brasil, pobre não tem direito a artigo nem plural. Só "pobre". Um dia disseram-me: "Não vou na praia, está cheia de pobre." Pobre é desdentado. Mesmo o astro literário Nelson Rodrigues - que vestia o mesmo casaco puído dias a fio e que tinha mil trabalhos para pagar as contas - não conservava um dente na boca antes dos 40. Mas os pobres - mesmo pobres - que não mudaram a dramaturgia do Brasil como Rodrigues, sempre foram desdentados perpétuos sem esperanças de glória ou justiça, párias cujo desmerecimento e a exclusão vão muito além da falta de dentes.
"Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma", diz uma personagem em Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca.
Pobre é preto - mesmo quando é branco. Pobre vale menos. Às vezes vale nada. A escritora americana Julia Michaels, com 30 anos de Brasil, escreveu que uma mulher fofocava com as amigas sobre o namoro da sua empregada e, quando perguntaram se a empregada era bonita, a patroa respondeu: "Para eles é." Nós e eles. Quem manda e quem obedece. Os privilegiados e os "fudidos", como por vezes se escreve no Brasil, uma vez que há aqueles que nem merecem a vogal certa.

Questionei uma amiga sobre o motivo de alguns anúncios de TV terem o som bastante mais alto do que os restantes. "Porque é anúncio para pobre." Pobre viaja esmagado em ônibus sem ar condicionado. Pobre morre porque o médico não apareceu no hospital. Pobre não vale um tostão furado para a polícia. Pobre causa mais repulsa do que compaixão. Pobre diz, sobre o vereador, o prefeito, o pastor: "Ele rouba, mas faz", uma subversão a condescender porque, por norma, nunca ninguém faz nada pelo pobre.
Os norte-americanos têm nigger, kike, spick, chink, guinea, tudo epítetos raciais. Em Espanha chamam sudacas aos sul-americanos (certo dia vi uma porrada no metro de Madrid e alguém gritava "Soy argentino, no soy sudaca"). Já ouvi chamar "o preto", "o gordo", "o cigano", "o anão", "o mongoloide", mas nunca, como no Brasil, ouvira "pobre" como uma designação tão depreciativa e amplamente usada - um chega para lá social, a arrogância de quem se acha escolhido em oposição à subserviência de quem, desde sempre, baixa a cabeça e se cala.
Caco Antibes, personagem da sitcom brasileira Sai de Baixo, ficou famoso por ter "horror a pobre" e pelos aforismos: "Pobre precisa entender que só passeia no shopping de Havaiana quem é rico." Presumível caricatura de ficção, Caco Antibes tem muitos sucedâneos na vida real.

Pobre faz parte do imaginário do Brasil como o boteco, o arroz com feijão ou Carinhoso, de Pixinguinha. A designação "pobre", para definir um grupo de milhões - mesmo os que não são pobres -, diz muito sobre o teimoso legado da escravidão e as conservadoras e pouco lubrificadas estruturas sociais neste país.
O Brasil já não é, de facto, desdentado. Antes pelo contrário, a democratização dos aparelhos odontológicos faz que hoje a maioria - até "pobre" - tenha a brancura dental das estrelas de Hollywood. Há mais gente na universidade, menos a passar fome, muitas famílias podem agora ter algum conforto, manter os filhos na escola, aspirar a mais do que subsistir da mão para a boca.

Mas mesmo a vida dos que deixaram de ser oficialmente pobres continua impedida pelo descaso das autoridades e pela estrutura de castas. Horas de martírio para ir de casa para o emprego, medíocre prestação do Estado na saúde e educação, corrupção, favoritismo, discriminação, desamparo e muito pouca mobilidade social. Ser pobre não é apenas uma designação do governo federal - aqueles com menos de 25 euros de rendimento mensal. É também uma sina e uma opressão.

Encontrei o porteiro do meu prédio, que deveria estar de férias, a lavar um carro no parque de estacionamento às sete da manhã. Perguntei--lhe o que fazia ali. "O coroa vai viajar e pediu para eu lavar o carro dele." O porteiro tinha vindo de propósito de São Gonçalo (longe para burro), de madrugada, interrompendo as férias, para obedecer ao pedido (à ordem) de um inquilino. Quando me indignei, ele não pareceu especialmente vingado. "Faz parte", disse-me - a ordem natural das coisas como ele sempre as conheceu e que se perpetua ainda, apesar do aumento dos rendimentos dos pobres.

Milhões podem ter saído oficialmente da pobreza. Mas no Brasil, que por vezes parece o país dos coronéis, ser pobre ainda continua a ser uma má sina para a vida inteira - mesmo que se tenham os dentes todos".

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