Chego a Lisboa à tarde. Santa Apolónia. Há muito não
frequento esta zona, desde que me cansei de noites muito longas no Lux. A última vez que vim para estes
lados fui ao Bica no Sapato. Ficou a
memória do único vinho do Douro que bebo: Graínha.
De resto, nada de especial. Sol, como sempre. Fila enorme para os táxis. Os
passageiros acomodam-se exemplarmente em fila indiana. Os táxis, a desordem do
costume, filas de duas faixas. Avisto dois cruzeiros enormes. Sigo para
Alcântara. Reparo que de um lado e outro, mais atrás e mais à frente, a nova
moda dos tuk tuk. Assusto-me com a
velocidade que atingem. Arrepio-me com a velocidade que fazem as curvas.
Imagino a falta de segurança que aquilo deve ter. Comento com o taxista.
Questiono-me sobre o que faz os turistas trocarem um táxi por uma pena. O meu
cérebro não pára de processar um possível toque de um carro. Tento pensar
noutra coisa. Chego a tempo de ir à apresentação do livro do Saramago, que dele
tem apenas dezenas de páginas, mas os bilhetes estão esgotados. Sigo para o
hotel. Chego ao quarto e tenho uma vista fantástica para o rio, que para mim, é
o mais bonito do mundo. Não parece um rio, parece um mar. O Mississipi, visto
de Memphis, foi para mim uma desilusão. Este Tejo, continua até hoje, a
lembrar-me a descoberta de novos mundos. O hotel manda-me como boas vindas
maçãs e uma garrafa de água. Eu que não gosto de maçãs. Ando há dias com uma
crise de vesícula que teima em não passar. Mas o destino parece conspirar a meu
favor. As maçãs revelar-se-ão a minha salvação, já que pouco mais consigo
comer.
A noite chega. Escrevo. Tenho o ar condicionado (AC) ligado,
embora deteste. Por isso, espero o mínimo tempo possível para arrefecer. Desligo-o.
Não sei que truque de magia fiz mas consegui fazer desaparecer o comando do AC.
Como estou reduzida a poucos metros quadrados, não saí e o chão não é
furado...Tenho poderes? Revisto tudo. Não o encontro. Agora, para além do
esforço físico da procura, acrescento o calor tropical do quarto. Tento dormir.
Não consigo. Levanto-me, uma vez mais, para fazer outra busca. Nada. Passei a
noite nisto. Mal dormi. Obviamente quando deveria ter acordado, e já era bem
dia, adormeci. Isto é o espelho da minha vida.
Depois do almoço sigo de táxi para Belém. Chegada aos
Jerónimos comovo-me, como sempre. Não sei o que é. Os olhos ficam marejados.
Felizmente, tenho óculos de sol. O que haveria o taxista pensar de mim? Reparo
numa das invenções turísticas mais estúpidas que conheço, e que inundam as
grandes cidades do mundo: cavalos e carroças. Neste caso, é apenas um cavalo e
uma carroça. O cavalo tem a cara tapada. Viro costas porque não posso fazer
nada. E penso que não posso mudar o mundo.
Dia seguinte. Outro táxi. Digno de registo. Mal entrei no
táxi, percebi. O taxista, sem eu lhe pedir, conduzia para além dos limites de
velocidade. Tipo bala. Resmunga com todos à volta. Para mim é simpático. Diz
mal de todos. Queixa-se de tudo. Para mim é amável. Quando chegamos ao pé dos
Jerónimos para virar para o CCB, estou tão distraída com o comportamento do
taxista, que não reparo no cavalo. Nem tenho tempo de me emocionar com os
Jerónimos. Uma parte de mim é receio e a outra é riso (escondido). Azar dos
azares, aparece um tuk tuk à frente.
Não podia ser pior. O taxista espuma-se. Quando ultrapassa o tuk tuk, a coitada da senhora só diz um
tímido “Obrigadinha”. Palavra que disse. O taxista insultou-a de todos os nomes
que envolviam filhas e alhos. Eu só queria que não sobrasse para mim. Vasculho
os bolsos e rezo para ter trocos mas só encontro notas. Daquelas que não dão
para ficar com o troco. Mas eu já estava por tudo. O taxista só gritava que os
tuk tuk eram ilegais. Ladrões. Não passam facturas. Não pagam impostos. São um
perigo. Eu estendo-lhe a nota. E o homem continua distraído com os insultos a
mexer nas moedas. Eu bem lhe digo para arredondar. O táxi está mal estacionado
atrás de outros. De repente: “Pum”. E eu só penso: “o mundo vai acabar”. O
motorista de um conhecido político, ao sair do estacionamento, bate exactamente
na minha porta. Acabou tudo. Não tenho por onde sair. Digo ao taxista que pode
ficar com o troco. E ele diz-me para esperar. Sai do carro aos berros. O
motorista do conhecido político só pede desculpas. “Desculpa não, vai pagar e
bem!”. E insulta o homem de tudo. Eu só quero sair do táxi. Tento manter-me
calma. Mas ao mesmo tempo só me apetece rir. Tudo a olhar e ninguém faz nada. O
taxista entra novamente. Volta às moedas mas parece não prestar atenção. Felizmente,
chega o táxi à frente. Saio. “Espere minha senhora”. “Fique com o troco”,
respondo eu. E despeja toda a ira no coitado do motorista que teve o azar de
não reparar no táxi. Ninguém faz nada. Eu só digo: “Vá, calma”. O motorista:
“Eu pago”. O taxista: “vai pagar muito bem. Querem entrar com os carros em todo
o lado”. Queria ter tido a coragem de fazer muito e mais. Acho que consegui que
o taxista não chegasse a vias de facto. Virei as costas sem o troco e sem
factura.
No fim da tarde, quando regresso ao hotel, vejo o cavalo.
Sem a cara tapada mas com os olhos. Apetece-me fazer alguma coisa. Mas o que
posso eu? No dia seguinte: o cavalo outra vez de cara tapada. Penso que deve
ser legal porque com tanta polícia e tantas pessoas, alguém já se deve ter
apercebido. Que vida animal é esta? Para além de amarrado não pode sequer ver o
mundo? Século XXI. Escravo e cego.
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