Tinha muita curiosidade.
Queria ver como era. E queria ver como era de perto. Dizem que São Paulo não
tem horizonte só fila de trânsito. A eterna selva de pedra. E o muito do que vi
em São Paulo foi pela janela do táxi.
Há qualquer coisa que senti em
São Paulo que parece semelhante ao apartheid
ou ao fantasma mal resolvido da colonização. A subserviência do funcionário em
relação ao cliente que nunca vi em lugar nenhum do mundo, a arrogância da
elite, a forma displicente com que se dirigem aos funcionários a quem chamam de “moço”. Os clientes nos
restaurantes não agradecem nem pedem desculpa. A diferença de tratamento entre
classes é gritante. Mais do que racismo,
xenofobia, homofobia, o que eu vi em São Paulo foi classismo. Nem sei se essa palavra existe. Nos shoppings que
entrei (Morumbi e Market Place) só vi brancos com excepção dos funcionários, o mesmo no restaurante onde jantamos. Roupa branca, pelo que percebi, é sinónimo
de subalterno, farda para babá, diarista, faxineira...Não vi ninguém da dita
classe alta com óculos. E na minha inocência achei que todos em São Paulo
veriam bem. Contudo, explicaram-me que não. Nem todos vêem bem, como é óbvio. A
elite e a alta burguesia ou usa lentes ou são operados! E os que nem condições
têm para comprar óculos tem a triste sina de ver mal. Em que outra cidade do
mundo existe elevador social e elevador
de serviço nos prédios? Em que outra cidade do mundo é mais barato ter uma
faxineira e/ou uma diarista em vez de ter máquina de lavar roupa e máquina de
lavar louça? Outra coisa que estranhei: ninguém usa cabelo encaracolado. Numa
cidade de um país em que a mistura de raças é a característica e a regra, não
ver ninguém de cabelo encaracolado, surpreendeu-me. Toda a gente tem o cabelo
impecavelmente liso. Cadê o black power? Este subdesenvolvimento social que
observei em São Paulo disseram-me que, felizmente, não é generalizado a outras
cidades do Brasil.
Para o dinheiro dos
portugueses andar de táxi é barato. Uma ida do nosso hotel no Morumbi até à
Avenida Paulista não ultrapassa os 35 reais. Mas fomos veemente aconselhados a
não andar de onibus nem de metrô. Apesar destes transportes serem rejeitados
pela burguesia paulista, mas ser o transporte democrático e de todos em NY, em
que neste transporte não existem ricos nem pobres, brancos, pretos, hispânicos,
asiáticos, bonitos e feios, em São Paulo é um diferenciador social. Como em São
Paulo não se anda a pé, ciclovias quase não existem, a elite, alta burguesia e
a classe média têm helicópteros e carros, quem anda de transporte público? A
esta pergunta até os meus sobrinhos de 6 anos respondem. Triste realidade esta.
E se houve coisas que gostei
realmente em São Paulo, como a arquitectura, as muitas livrarias, os preços dos
livros e dos CD’s, a boa comida, as frutas, os sucos, o clima primaveril do
inverno paulista, o Parque Ibirapuera... Não me consigo acostumar com os
prédios cercados de grades, às vezes duplas, e com arame farpado electrificado... Um mundo onde ricos e pobres não se misturam,
um mundo em que a identidade é a miscigenação e as pessoas têm falta desse
orgulho, há com certeza muito a fazer. E a primeira delas é os brasileiros
aprenderem a ter orgulho na sua identidade.
Tenho o maior respeito pelo Brasil e sempre tive admiração e algumas das suas cidades foram algumas das que sempre quis conhecer em todo o mundo. Cresci e vivi com os livros de Machado de Assis, Clarice
Lispector, Jorge Amado, Vinícius, João Cabral, Manuel Bandeira, Drummond de
Andrade, Cecília Meireles, Ferreira Gullar, Caio Fernando de Abreu, Eucanaã
Ferraz. Só oiço música dos brasileiros João Gilberto, Tom, Vinícius, Caetano,
Maria Bethânia, Gal Costa, Marisa Monte, Adriana Calcanhotto. Os grandes
arquitectos que deixaram marcas na cidade como Lina Bo Bardi (SESC Pompeia,
MASP), Paulo Mendes da Rocha (Museu Brasileiro de Escultura,
reforma da Pinacoteca
do Estado de São Paulo, reforma da Estação da Luz e Museu da Língua Portuguesa), e Oscar Niemeyer (Parque Ibirapuera, Edifício
Copan, Memorial da América Latina). A pintora Tarsila do Amaral, Cândido
Portinari... e chegar a São Paulo e ver
esta realidade foi como uma bofetada na cara. Como se o Brasil que me foi dado
a conhecer nos livros não existisse (mais) e fosse (apenas) ficção.
Confesso que fiquei até
admirada que numa cidade em que as diferenças de classe são tão gritantes e tão
fenotipicamente visíveis, a violência não seja (ainda) maior. Como explicar que
alguém que vem do Nordeste está fadado à sua sina de excluído da sociedade,
pobre, nordestino e que nunca ascenderá
socialmente? São Paulo parece ainda feudal e socialmente parece não ter saído
do tempo do colonialismo.
Que cidade é esta?
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