Os títulos dos livros de António Lobo Antunes (ALA) são, na
sua maioria, citações. O último “Da natureza dos deuses” é o título de um livro
de Cícero. A principal temática deste livro é o poder e a riqueza. Monopólio e
domínio. Submissão, servidão e subserviência. Infidelidade. Desumanidade. Velhice:
“que maldade incompreensível o tempo”. A grandeza: “uma casa maior do que todas
as casas do mundo, salas, corredores, varandas e o jardim e o pinhal e o campo
de ténis..".
Este, é um dos livros maiores de ALA, ultrapassa as 500
páginas, exactamente 574, talvez também a fazer a analogia à imensidão dos
deuses do título. Os nomes dos personagens, como é tão característico de ALA,
são poucos. Os personagens deste livro são: a Senhora, o senhor doutor, o senhor
presidente, o avô da Senhora, o sem abrigo, a dona da livraria, a funcionária
da livraria, o empregado de casaco branco (Marçal), o sujeito da editora, secretária
loira, o senhor engenheiro (adjunto do senhor doutor) casado com a secretária
loira do senhor doutor (amante do Sr. Doutor), o senhor presidente, a esposa do deputado, a dona da loja de roupa,
o homem mais novo que o senhor doutor. O livro divide-se em 4 partes. As
primeiras 3 partes com 10 capítulos cada e a quarta parte com 7 capítulos. Este
livro passa-se entre Cascais, Estoril, Guincho e Lisboa.
O livro começa pelo tempo presente. O primeiro capítulo
começa com a funcionária da livraria, que é uma retornada de África, vive com
um filho pequeno numa casa barata de Cascais
e já passou os quarenta: “sou fácil de enganar, perdoo a todo o mundo,
olho e não vejo, vejo e não ligo”. Não entende a razão de a Senhora conversar
tanto com ela: “qual o motivo de falar comigo sou pobre”. Vai muitas vezes a
casa da Senhora, que está sempre sentada com um cãozito nos braços, entregar livros:
“a mulher idosa percorria o cãozito no colo com o anel”... “numa poltrona
grande demais para ela... quase em contraluz, transparente, a voz apenas...”. Vive
o presente numa profunda solidão mas
refere-se a um passado totalmente diferente: “os jantares que havia aqui o rei
da Itália, o rei da Roménia, o duque inglês... A sala com os seus móveis, os
seus quadros, os seus tesouros tão caros”. A Senhora “não recebe visitas nem sequer dos
filhos... qualquer desconhecida que a escute sem comentários nem perguntas... a
garganta magríssima, as linhas claras dos ossos e os dentes tão nítidos sob a
pele... não uma mulher idosa ou gasta, uma mulher quase defunta, não o palhaço
que durante anos e anos aceitara ser... os olhos vazios".
O pai da Senhora (senhor doutor) “de olhos tão pobres apesar
de ser dono de bancos, companhias, ministros”. É uma figura detestável,
autoritário, um “dono disto tudo”, “um pulha”a quem toda a gente presta
vassalagem: “A quantidade de gente que ele foi degolando ao comprido da vida
(...) a afastar-se no sentido de subalternos que o esperavam, atenciosos, curvados
(...). É uma questão de princípio não dar confiança a subordinados”. Joga ténis com personagens que vão sempre mudando à medida que vai
deixando de precisar deles e à medida que os destrói: “Obrigado por consentir
ganhar-lhe.” São continuamente substituídos. Tem sempre raparigas loiras novas
a quem cobre com puldeiras e colares, tacões, perfumes que, são também substituídas
com o passar dos anos e da idade. “...é sempre desagradável apertar a mão a um
pobre, fica-nos o cheiro na pele”.
O avô materno da Senhora era judeu e com
“estabelecimentozito de câmbios. O pai da Senhora salvou o avô da Senhora da
falência: “Perdoo-lhe a dívida se me der a sua filha”. A mãe da Senhora tinha
quinze ou dezasseis anos: “Não lhe faço mal descanse... Livra-se de ser preso e
ainda ganha um genro que o protege”. O casamento da Senhora foi arranjado pelo pai:
“Casas-te em Outubro” e a “Senhora a informar o pai de que preferia o sapo de
uma cómoda transformado em príncipe”. O marido da Senhora, “herdeiro de outro
banco que o pai da Senhora administrava, mais fábricas, mais empresas,...um
monte no Alentejo, dois barcos na marina...”.
O avô paterno da senhora (pai do senhor doutor): “O meu pai
teve que afastar o meu avô dos negócios... o meu avô morreu sem lhe ter
perdoado... sem conhecimentos nem estudos... vendia jornais e lotarias no
início, emprestava dinheiro no bairro... não se conhecia o pai, a mãe apenas,
que trabalhava nas limpezas... ao regressar da tropa o pai da Senhora, há quem
se lembre dele do bairro, aumentou os juros e transformou o negócio contra a
vontade do meu avô... o pai da Senhora chamou advogados que proibiram o avô da
Senhora de entrar”. O pai da Senhora para o avô da Senhora: “ A partir de hoje
começa a sua santa vida que sorte... A partir de hoje tem tempo para o dominó
com os amigos ler o jornalzinho e gozar a reforma... você está gasto não
presta”. “O pai da Senhora comprou-lhe uma casita com uma horta na província e
pagou a uma camponesa para tomar conta dele”.
O senhor engenheiro (adjunto do senhor doutor) é casado com
uma das secretárias loiras do senhor doutor (e sua amante). Começou na
contabilidade e passou, depois, a adjunto. Tem gabinete próprio, automóvel,
secretária loira e facilidades no crédito desde que não abuse. O senhor doutor
cumprimenta-o: “ele que não cumprimenta ninguém e eu honrado... convida-me para
o ténis aos sábados, onde a minha esposa se senta ao lado dele, tão loira (...)
sem me apertar a mão, claro, mas uma honra da parte de quem não cumprimenta as
pessoas de modo que eu, agradecido”. Insinua que o filho mais novo é filho do
senhor doutor: “o único que não se parece comigo, a coincidência de uma
pálpebra pendente como o senhor doutor”. Sem um poder comparável ao senhor
doutor, o senhor engenheiro, apesar de subalterno, de acordo com determinada
hierarquia, tem poder. Como tal, também tem uma secretária loira, que é sua
amante. Com o desenrolar das páginas, perceber-se-á que essa afirmação sobre a
questão da paternidade do filho mais novo não faz sentido.
O Senhor presidente: “o que manda em Portugal... o senhor
doutor visitava-o aos domingos... de pés numa escalfeta e manta nos joelhos...
uma voz fraquinha (...) a voz fininha... de fatito cinzento e cabelo branco
(...) sempre sozinho, escrevendo bilhetes minúsculos, numa caligrafia
minúscula, para os ministros que não o viam, eram nomeados e despedidos através
de cartõezinhos daqueles (...) o senhor presidente, que o mundo inteiro temia.
Parece o personagem que vivia no sotão no livro “Caminho como uma casa em
chamas”.
A mulher do senhor doutor (mãe da senhora) está aprisionada
num quarto no alto da casa de onde, através da janela, está sempre à espreita e
a ver os jogos de ténis. “O meu marido mandou pôr uma cadeira no meu quarto,
mesmo no alto da casa, onde até os falcões da serra vejo e o mar por trás dela,
outro mar além do Guincho... para me visitar de vez em quando, sinto-lhe os
passos no corredor, mais lentos do que os dos criados, o empregado de casaco
branco destranca a fechadura, volta a trancá-la quando ele se senta, sem olhar
para mim, e fica ali calado...”. Há uma ténue alusão à infidelidade da mãe da
Senhora: “anos depois a mãe da Senhora no comboio para Madrid com um homem...de
óculos escuros e lenço na cabeça”.
O Marçal é o empregado do casaco branco, o“faz tudo” e o
“cachorro” do senhor doutor. É o único que não foi substituído (...) Quando
morreu foi o único momento em que vi o senhor doutor chorar... no escritório,
não limpava as lágrimas, desciam-lhe as bochechas encalhando nas rugas”.
O sem abrigo atravessa todas as partes e todos os capítulos.
O seu papel no livro, é para mim, um enigma.
A cronologia deste livro divide-se em várias gerações.
Talvez do começo do Estado Novo até aos dias de hoje.
Há sempre algumas frase autobiográficas claras de ALA:
“lembro-me que não chorava, não era que não me desse vontade, as lágrimas não saiam
(...) Não me recordo de ser muito de beijos... aconteceu-me chorar...fui
secando com a vida (...) sempre tive um problema com lágrimas, o meu pai não
chorava, a minha mãe às vezes... mas escondia-as logo (...) a quem as lágrimas
tornam um fraco”.
Há as habituais referências a África e à tropa, mesmo que de
forma muito ténue. E as histórias paralelas que abordam o aborto, maus tratos e
relações ocasionais. Depois de todas as evidências e aparências dos personagens
há o submundo, a parte frágil e humana de cada um deles. Os livros de ALA, ao
contrário do que o próprio não assume, são difíceis de perceber. Os leitores
habituais terão bastante menos dificuldades para perceber as frase polifónicas,
analepses e prolepses mas há uma analogia cinematográfica que se poderá fazer
com os filmes de David Lynch. Muitas vezes os mistérios não são desfeitos e
muitas vezes existem partes que poderão ter sido escritas para serem mesmo
incompreencíveis. Quem sabe?
Famílias destruturadas. Traições. Mentiras. Humilhação.
Desprezo. Insensibilidade. Mentiras. Ilusões. Indiferença. Destruição.
Mostra-nos que o poder pode, quase tudo, mas não tudo. O senhor doutor, a mãe
da senhora (mulher do senhor doutor), a senhora e o Marçal (empregado de casaco
branco) são as chaves deste livro. Os dados estão lançados. Parte das
personagens e do enredo está exposto. Mais não digo. Falta agora o leitor
envolver-se e interpretar à sua maneira. Espero que aproveitem e desfrutem este
livro que, apesar de denso, é cativante e nada monótono. Não sei se sou eu que
me torno a cada livro mais devota do estilo de ALA e dos seus livros, ou se com
o passar dos anos, comecei a percebe-lo melhor. Continua com a sua habitual
escrita tão real, quotidiana, cuidada e cinematográfica.
Este livro já estava escrito há dois anos. Por esse motivo, não
há qualquer relação entre os factos actuais do poder e queda dos banqueiros e
bancos e a sua queda com este livro. Parece tratar-se de um pronúncio mas
(provavelmente) não passa (de uma mera) coincidência. O livro não está
organizado de acordo com este texto. Este texto é (apenas ) a interpretação que
faço do livro que poderá não ser a verdadeira.
Óptimo! :)
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