Regressos quase perfeitos vem da adaptação de uma frase do
Whitman “uma mentira é um regresso perfeito”. Tal como o pai, cujos títulos de
livros são sempre uma citação, este primeiro livro da filha, Maria José Lobo
Antunes, que resulta da sua tese de doutoramento, também o é. Três coisas fizeram-me
comprar este livro: ter sido escrito por uma Lobo Antunes, ter a chancela de
tão grande editora Tinta da China (não há nada que não goste) e a temática da
guerra colonial. Quando vi quem era a Maria José Lobo Antunes vi a cara do pai.
Agora falando do livro. Gostei muito, como disse o Joaquim
Furtado. Apesar das Guerras do Ultramar serem “nossas” e de a distância
temporal não chegar ao meio século, os livros sobre esta temática não são
abundantes: “A guerra colonial portuguesa é, hoje, um país estrangeiro”. Habituei-me
a ela nas referências biográficas e ficção de António Lobo Antunes e pouco mais
li. O meu pai não foi mobilizado para a guerra porque teve a sorte de ter ido à
inspecção em 1974. Como a maioria, naquele ano, passou à reserva territorial.
As histórias e os relatos da guerra são, por isso, para mim distantes e
resumem-se aos livros e séries de televisão. Tendo eu nascido em 1979, o
Portugal descrito neste livro é um país muito distante e desconhecido. Este
livro procura relatar a memória de alguns militares que a viveram. Chegaremos
ao fim a perceber que a memória e o passado destes militares é tão diferente
quanto as pessoas que o relatam. Alguns conceitos que são para nós, comuns
mortais, desconhecidos, como camaradagem, são neste livro destacados. A
camaradagem só pode ser compreendida por quem passou pela guerra (neste caso 26
meses): “Uma pessoa tem irmãos de sangue, nós somos irmãos de alma”. Depois a
descrição dos almoços do CART 3313 são tocantes e a gratidão que sentem pelo
seu camada alferes médico meliciano, António Lobo Antunes, “somos quem fomos”.
Maria José Lobo Antunes tem uma ligação com estes homens de que não se lembra
devido à tenra idade em que esteve em Angola. Mas todos eles se lembram muito
bem dela. O pai, António Lobo Antunes, tornou-se escritor e a guerra é assunto
muito presente na sua obra. Cus de Judas
é o livro que mais retrata os mais de dois anos que passou em Angola, assim
como, o livro que contém as cartas diárias que escreveu à mulher durante a
guerra.
Portugal, naquele tempo era uma sombra do que fora, mas que
o salazarismo insistia em que o destino de Portugal se cumprisse “enquanto
império colonial , heranças de gerações gloriosas que tinham dado novos mundos
ao mundo”, “Portugal do Minho a Timor”. Este era o Portugal que Salazar
ambicionava, provavelmente (apenas) no seu imaginário, já que nunca saira de
Portugal continental.
A tropa, para a maioria destes homens, que seriam soldados
ou praças, homens que fizeram a 4ª classe ou nem isso. Homens cujo mundo era
apenas frio, fome, miséria, trabalho e porrada. Eram filhos de “um país pobre e
rural, onde a agricultura ocupava mais de um terço da população total”. Um país
autoritário, em que a informação era considerada desnecessária e que vivia
debaixo de vigilância e censura. O regime defendia o respeito pela autoridade,
a valorização da tradição , o nacionalismo e a fé católica”. Os três pilares:
Deus, pátria e família. Há muito a menção à palavra respeito. Respeito ou medo
pelo professor que era maioritariamente um desumano que batia muito e sem
coerência. Um ensino que era marcado unicamente pela coação e repetição e não
pela razão. Aprendia-se que “Portugal era muito grande e muito rico”. Durante a
ditadura, “a educação era um luxo”. Um país de acentuadas diferenças sociais
entre patrões e criados. Um mundo de pais incógnitos e de mães solteiras. Pés
descalços. Trabalho quase escravo a troco de (má) comida. Um trabalho duro
demais para a tenra idade. Ninguém parece guardar saudades desse tempo em que
se valorizava a humildade, a simplicidade, a pobreza, a ignorância e os perigos
da ambição. Este foi o segredo do regime: “um lugar para cada um e cada um no
seu lugar”.
O liceu estava reservado às elites. A aposta do regime era
nas escolas comerciais e industriais. O magistério era o 5º ano mais dois. Aos
18 anos já se era professor primário.
Terminado o 7º ano fazia-se a admissão à universidade: “Os filhos dos
ricos iam para a universidade para ser doutores e nós íamos para as escolas
comerciais”. Só com inscrição ou frequência na universidade se ia para oficial
miliciano.
Entre os ex-militares as opiniões dividem-se entre aqueles que
achavam justa a guerra “acreditavam que era necessário defender aquilo que era
nosso”, aqueles que se voltassem atrás
nunca iriam à tropa e aqueles que mesmo antes de irem já eram contra: “Nunca
quis ir para a guerra. Abominava aquilo tudo”.
A maioria dos que foram para o Ultramar não tinham qualquer noção da
rigidez do regime nem da opressão. Viviam num mundo demasiado fechado e
escondido, longe das grandes cidades sem qualquer noção da realidade. A maioria
considerou que a ida para a tropa foi um “abrir de olhos”, que lhes deu mundo e
“alargamento de horizontes (...) tudo
era surpresa e novidade”.Oportunidades. Descoberta da dimensão e variedade da paisagem. Os mais
abastados perceberam que o mundo em que viviam era um privilégio. O grau de
instrução era o elemento diferenciador: menos que o 5º ano eram praças, com o
5º ano eram furriéis milicianos e 7º ano completo eram oficiais.
A maioria desconhecia a realidade da guerra no Ultramar. Só
começou a saber-se através de vizinhos, familiares e amigos recrutados para o
serviço militar. O regime não esmoreceu e manteve a determinação de “manter a
unidade de um país disperso pelo mundo”. Entre 1961 e 1973 foram mobilizados
para a guerra cerca de 105 mil homens. Do que se passou na guerra ficou no
segredo dos deuses e o pacto de silêncio entre os camaradas. A excepção era
feita a acontecimentos cómicos e banais.
Os negros ou pretos eram vistos como uma raça menor, com
“mentalidade de primitivos”. O trabalho
forçado dos negros só foi abolido quando se iniciou o conflito em Angola. Não
existia uma harmonia igualitária entre brancos e negros: “a injustiça de um
regime onde a cor de pele definia o lugar de uma pessoa”. Ocupavam lugares
distintos. Os negros eram subalternos, obedientes e silenciosos. Os brancos referiam
como desculpa a irresponsabilidade, preguiça e superstição dos negros.
Enfatizavam a aversão dos negros ao trabalho. Não existia, também, igualdade
entre homem branco e mulher negra. Usavam-nas, apenas. Referem, entre risos, a
possibilidade dos filhos que deixaram para trás.
Todos falam, sem excepção do medo e do inimigo sem cara. O isolamento.
A demora do passar do tempo. As saudades da família. Sensação de eternidade. O
rebentamento de minas. Os ataques. A utilização de napalm (negada pelas Forças
Armadas). O secretismo. Falam dos valores militares como a camaradagem, a
coragem e o heroísmo. E das fraquezas que incluem a cobardia. Fizeram muita
coisa, socialmente boa: vacinação conta a cólera e ensinar as crianças a ler e
a escrever. Alfabetizaram muita gente. Os jogos de cartas. Os jogos de futebol.
A caça. A torturante agonia da espera. O absurdo da morte. Os suicídios. Muito
bem resumido por Lobo Antunes nas cartas enviadas à sua mulher, publicadas em
livro: “Eu vou-me afundando numa apatia total. Nada faço, nada me apetece
(...) chego a pensar que sairei daqui para um hospital psiquiátrico – como
doente (...) o resto são mosquitos, chuvas, trovões, os mesmos horizontes que
não mudam, que não mudam... Como acabará isto?”.
Estes ex-militares não relatam na primeira pessoa episódios
grotescos. Mas percebe-se o pacto de silêncio, como a frase: “o que aconteceu
lá, fica lá”. Sobram suspeitas de
violência e do horror da guerra. O pronunciável são as histórias aceitáveis,
tudo o resto reduz-se a silêncio. São abordados os traumas da guerra, o stress
pós-traumático, os mutilados.
Passados 26 meses, regressaram. Para trás ficaram os
camaradas que não voltaram a ver durante muitos anos, retomando apenas os
encontros anuais muito depois. Voltaram diferentes. Tinham vontade de
normalidade. A guerra ficou-lhes para sempre.
Um excelente livro para quem, como eu, não nasceu nem viveu
no salazarismo nem na ditadura. Aprende-se muito. Principalmente a não ter
saudades e a não se querer voltar atrás. E depois, dá um certo orgulho, que
passado meio século, as transformações são gritantes. E agora, puxando a brasa
à minha sardinha, para dizer que as teses de doutoramento servem para alguma
coisa, afinal. Como disse Clara Ferreira Alves na apresentação do seu Pai
Nosso: “não podemos esquecer os anos de guerra colonial como se não tivesse
existido”.
Sem comentários:
Enviar um comentário