Os sinos das igrejas do centro dão as 6 horas. Chovem cães e gatos. Eu sem um guarda- chuva. Sou só água. Entro na Favorita e lancho rápidamente ao balcão. Subo a rua de S. Marcos. Tenho consulta marcada no oftalmologista. Há muito que adio. Como vejo pior a cada dia, hoje teve que ser. Subo as escadas. Pouso a mochila e tiro o casaco encharcado. À hora marcada entro. A última vez que lá tinha estado foi há 12 anos. As perguntas habituais: "estás cá, agora?", "então, o que tens?". Respondo que não vejo bem, cada vez pior, ao perto e ao longe". E o médico: "estás a ficar velhota". Começamos os exames. Pergunta-me há quanto tempo reparei que comecei a ver mal. Respondo que foi em NY que não conseguia ler os ecrãs de informação do metro. Letras. A aumentarem de tamanho. Não as reconheço. Aumentam. Continuam a aumentar. Tapo um olho. Tapo outro. O tamanho das letras a aumentar. Percebo isso. Mas não as distingo. Cada vez maiores. Percebo a cara de espanto do meu pai. Penso que deva estar intrigado por não conseguir dizer que letras são. Ufa. Distingo-as. Continuo sem distinguir o O, D, C. Também não distingo o F e o P. Passamos para outro aparelho. Tenho de focar uma casa. Pergunto se é normal só ver cores porque não mais consigo ver a casa. Não me responde. Vamos repetir os exames iniciais. "Agora com calma". Diz o médico. Muda-me as lentes, coloca-me uns binóculos. Continuo a fazer muito sacrifício para adivinhar. E continuo com muitas reticências sobre as letras que vejo. Ao fim de muito tempo, pede-me para me sentar em frente da secretária. A cara está séria e preocupada. Percebo a preocupação. E sai-lhe "Não te quero assustar mas o quadro está negro. Não vês nem ao perto nem ao longe. Estás com uma perda de visão brutal". Diz-me que nem deveria conduzir assim. Que devo (ainda) não ter tido um acidente porque sou muito cuidadosa. Que vejo muito muito pouco. Eu, que ainda estava a limpar os olhos das gotas, devo ter paralisado. O médico estava a dizer-me aquilo tudo e de repente comecei a achar que ele estava a falar de outra pessoa. Fala-me da urgência de fazer análises. Que se tem de perceber de onde vem isto. Garante-me que não é dos olhos mas a incerteza não me faz bem. Pergunta-me há quanto tempo fiz análises gerais. Há quanto tempo me doía a cabeça.. Porque não fui lá quando comecei a ver muito mal?...Continuo a não achar que a pessoa de quem ele está a falar não sou eu. Até que me diz: "Sabes Ana, há coisas mais importantes que o trabalho". E, nesse momento, que ainda não tinha começado a digerir a informação, a ficha começou a cair. Começo a ver a minha vida a andar para trás. Deixo de o ouvir. Em vez de me preocupar com a informação que ele debita, só me preocupo com as duas deadlines dos 2 projectos que estão aí. O médico a sugerir e a insinuar possibilidades bastante graves quanto à origem da falta de visão e eu preocupada com a falta de óculos. Afinal, foi para isso que eu lá fui. Diz-me que enquanto não percebermos a origem não há óculos para mim. Com o regresso à realidade de me lembrar (estupidamente) dos projectos, e não da primeira preocupação que deveria ter: comigo! Quando tento digerir o que me acaba de dizer, olho para o meu pai, ao meu lado. Estou mais preocupada com o meu pai por estar a saber da verdade, como eu, e tento perceber-lhe a expressão. Não consigo perceber se está muito preocupado ou se está em choque, como eu. Já não assimilo muito. Já só oiço pedaços de frases."Hoje é sexta mas segunda sem falta...", "se não conseguires liga-me", "falo com (não sei quem) na Clínica de Santa Tecla". Marca-me outra consulta para fazer outros exames. Estou muda. Não reajo. Não questiono. Concordo com tudo. Devo ter mudado de cor. Tenho o estômago embrulhado. Acompanha-nos à porta. A assistente marca a próxima consulta. Percebo (agora) que fica marcada para uma hora em que deveria trabalhar. Lembro-me de o meu pai me perguntar se não é muito cedo, se não pode ser mais tarde... Eu quero encontrar a minha agenda na mochila mas não sei o que procuro. Mudo, para a procura de uma esferográfica num dos bolsos do casaco. A assistente, que deve ter percebido que eu não sabia o que procurava, disse-me que escrevia num cartão. Não me lembro onde pus o cartão. Desci as escadas, com velocidade, sem olhar para trás e sem esperar pelo meu pai. Chego à rua e agradeço estar a chover torrencialmente. Desço a rua apressada com a chuva a cair-me como um chuveiro. O meu pai tenta acompanhar-me. Tenta abrigar-me. Tenta abraçar-me. E eu não quero nada. Sou uma lágrima só. Paro, finalmente, em frente à Igreja de Santa Cruz. Não sei porque choro. O meu pai diz-me para ter calma. Eu que (quase) nunca vacilo. Eu que sou uma muralha. Trocam-se os papéis. Sinto o frio da dúvida. Sinto a impotência perante o inesperado. Não sinto revolta. Mas sinto culpa. Eu que achava que (ainda) era muito nova. O meu cérebro é um turbilhão. Pergunto ao meu pai, repetidamente, se não percebeu a gravidade da situação. E ele só me pergunta porque choro. "Não tenhas medo"e "não vai ser nada" são as frases que me lembro. E hoje percebo porque chorei. Não tenho medo. Seja o que for. Seja qual for o resultado e o prognóstico. Mas chorei pela surpresa do inesperado. O instante que não controlamos (nunca).
Sem comentários:
Enviar um comentário