quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

"Pai Nosso" de Clara Ferreira Alves

Este livro é dos melhores que li nos últimos tempos. Arrisco-me a dizer que, talvez, um dos melhores da última década. Embora, não sabendo se algumas partes deste livro são autobiográficas, parecem ser. E como diz Lobo Antunes “ no fundo, tudo o que escrevemos é autobiográfico”. Quando as expectativas são muitas, a desilusão é frequente. O que não acontece com este livro. Não está nele (simples) pesquisas. Ou muito trabalho. Ou horas de labuta e inspiração.  Nele está tempo. Muito tempo. A passagem do tempo. Sem atalhos. Maturação. Vivências. Vida. Viagens. Conhecimento. Realidade. Não o que se lê (apenas) nos livros. Este livro não seria o mesmo se Clara Ferreira Alves (CFA) não conhecesse tão bem as cidades sobre as quais escreveu. Ela viveu-as. Como a própria assumiu, pagou do próprio bolso muitas das estadias. Muitas cidades. Muitos países. Israel, Iraque, Afeganistão, Turquia, Síria, Marrocos, Nova Iorque, Londres, Paris, Lisboa.  O Médio Oriente no seu esplendor. E neste livro estão muito marcadas e perceptíveis (para quem conhece) as influências de Graham Green e Eça. Pelo menos estes dois eu consegui identificar.  E o amor da personagem principal pela América, por NY, coisa que CFA também parece partilhar.O fascínio pelo Médio Oriente
Uma narrativa feita na primeira pessoa. Cheia de analepses e prolepses. Rewind. Passado. Memória. Play. Presente.
A narrativa começa no presente. Sempre na primeira pessoa.  Uma professora universitária, especialista em Estudos do Médio Oriente. “...um rato de biblioteca”. Foi aprender a diferença entre a teoria e a prática, como (quase) todos os académicos. Beatriz  quer contar a história d’ “O  Fantasma”. Resolve sair da comodidade da academia em Hull aventurar-se a escrever sobre uma fotógrafa famosa. "ela nunca abriu a boca...pode ser que fale antes de morrer...é uma lenda".
Presente. Marie. Maria. "Uma mulher de certa idade que fuma cigarros até meio...A claridade dos olhos corta vidro. A Leica em cima da mesa ... Ela bebe um gin, sempre da mesma garrafa... Gin alemão... É muito alta para portuguesa e deve ter sido muito bonita... Veste-se de preto... Tem voz rouca, daquelas vozes de noites mal dormidas, do sarro dos cigarros e dos copos...”. Fala pouco. Passa muito tempo com palestinianos. Computador. Tapete persa. Dólares. Baton. Óculos escuros. Keffieh. Um frasco de prata vindo de Jerusalém. A sua água benta. "A vista diz tudo sobre o lugar onde estamos". Oiro negro. Ficamos saber que o plástico dos chinelos fica quase sempre intacto, ao contrário da carne. É uma nómada:"...levei a vida a fugir do lugar onde nasci". Os quartos de hotel são a casa dela. Viaja leve: “quando se envelhece aprecia-se a liberdade de nada possuir ou carregar".
Passado. Ganhou dinheiro e fama com a fotografia de uma criança morta.  A Pietá. Um grito animal da mãe que reclama o filho morto. Cuspia saliva e ranho e babava lágrimas. Grunhia como um animal degolado. Aquele dia ficou nela como uma queimadura. “Da primeira morte não se recupera como do primeiro amor”. A mãe dela matou-se depois de uma primeira tentativa de colocar-se na frente de um comboio. Amou Matt como nunca amou ninguém e nunca mais voltou a amar. Comportava-se como uma tonta quando se apaixonou por Matt. Conheceu Matt no bar da cave. "Matt transformou a minha vida em matéria inflamável e esqueceu-se de avisar para não aproximar da chama". Passava os dias a ver Matt: "passo os dias a medir o tempo que escorre entre ver Matt e voltar a ver Matt"..."Um homem que entra pela calada da noite e sai de madrugada"."Amei uma pessoa no labirinto de Jerusalém... Jerusalém é o lugar mais anormal do mundo...em Jerusalém os namorados passeiam sem se tocarem. Cidade Velha pela Porta de Damasco... É uma cidade da guerra, é a cidade de Deus. Os repórteres de guerra nunca dizem guerra, ali. Dizem conflito... Eu gosto dos lugares de guerra quando estão em paz... Foi preciso envelheçer para ver a Cidade Velha de Jerusalém tal como ela é, uma praça de fancaria... É a cidade das pedras e não são pedras iguais às outras, são pedras pisadas pelos pés gretados do filho de Deus... Amei em Jerusalém e amei Jerusalém... Em Jerusalém fui a estrangeira e hoje sou um fantasma.. É o problema dos palestinianos, dos árabes, das seitas do Islão. Fome de sexo.lambem com os olhos as pernas, os decotes, as nádegas das estrangeiras... A Via Dolorosa são seiscentos metros de sofrimento entre a Fortaleza Antónia e o Santo Sepulcro... Há muita mulher sozinha em Jerusalém, muita peregrina, muita do-gooders, muita jornalista com dólares frescos. Muita fome de sexo... Para tormento dos judeus, os árabes multiplicam-se mais. Um suicida tem pelo menos dois filhos se explodir enquanto jovem. Se explodir mais tarde, terá sem ou sete. Uma família tem muitas crianças para sacrificar... Judeus e muçulmanos, israelitas e palestinianos”.  De que lado está?
Esta personagem tem a mesma opinião que eu: "sem um bom ditador, todo o Médio Oriente é um matadouro... Sem uma ditadura nada fica de pé. O selvagem do Saddam mantinha o Iraque unido atando os iraquianos com arame farpado". o que sobra do Iraque? No que se transformou o Egipto? Durante anos mantido debaixo do pé de Mubarak. O déspota do Bashar al-Assad manteve ditatorialmente a Síria próspera. O país que era laico, as mulheres não usavam véu e havia liberdade religiosa. Como está a Síria depois da Primavera Árabe? E a Arábia Saudita, o país mais radicalizado muçulmano, onde reina a sharia, onde as mulheres não podem conduzir, nem votar e têm de andar totalmente tapadas, para dizer o melhor dos males. O ocidente e os países desenvolvidos não condenam isto?
Maria falou da sua infância suburbana. Gostavam de morar nas Avenidas Novas mas moravam em Campolide. O pai era militar e a mãe queria ter estudado mas a família não deixou. Gostava dos escritores russos e franceses. Quando a mãe morreu ficou com uma tia solteira, amarga, azeda que não sabia dar amor. Lia folhetins e chorava no cinema com filmes de terceira categoria. A família dela resumia-se a Beatriz. A única amiga. A família dela. Conheceu Beatriz (a amiga, não a professora universitária) no liceu. "Venho de lugar nenhum e sou parte do provoque foi a todos os lugares. O povo que aprendeu a perder". Sempre se achou demasiado alta num país de meia estatura. Faz descrições perfeitas de quem já viu cadáveres mutilados pela guerra. "O cheiro a carne humana assada é uma recordação". Tem o cabelo bem cortado. Recebeu o primeiro treino de guerra na Jugoslávia. É sempre a que parte nunca a que fica. "Confiava na delicadeza de estranhos" como a Blanche Dubois que sempre dependeu da bondade de estranhos. Nunca olha para trás.
"O Afeganistão foi a minha melhor guerra...a paisagem tinha uma luz libertadora...o Iraque, a Síria, a Líbia, os Balcãs foram más guerras". A rotina é uma salvação.. O amor é ópio. É uma droga. Fica-se agarrado. O amor distorce a realidade mais do que a guerra"...."Enerva-me a mania de cobrir o cabelo  de tornar a mulher numa criatura sem género".... "De todos os países onde trabalhei, o Iraque é o mais viciado, o mais violado, um serial killer serially killed. Dizem que aqui nasceu a nossa civilização. A Mesepotâmia. Bagdade foi a capital do Califado, uma cidades de sábios e de bibliotecas.... O amigo Saddam tinha sido nosso aliado contra o Khomeini e tornou-se o nosso inimigo.... O meu primeiro amigo iraquiano foi um taxista do nosso hotel... Tinha um retrato da equipa do Benfica na parede de casa, uma foto a preto e branco com a águia benfiquista de asa aberta... Aqui morre-se cedo e morre-se mal". O que são os países islâmicos? Cafés cheios de homens sentados a beber café turco. "Bagdade era uma cidade de leitores. No tempo dos otomanos esta rua já era o que é. Um supermercado de livros, uma livraria ao ar livro, uma universidade... Quando na Europa andávamos a quatro patas aqui liam livros... A Biblioteca Nacional é um dos raros edifícios decentes de Bagdade. Os iraquianos têm orgulho em ter uma biblioteca. Não são o bando de primitivos que o nosso mundo branco supõe... Eu tenho horror à vida normal...o chefe do frango assado torna-se um amigo". (Quase) tudo neste livro é cru, como a realidade. "Poucos sabiam fazer bombas em 91. Sabiam na Palestina... foi por lá que comecei a carreira, pela busca do Engenheiro”.

Pierre. É uma amizade de circunstância, feita em Israel e na espera da entrada no Iraque. Um parisiense efeminado que é o correspondente em Jerusalém do maior diário de França. É mais um para quem os dias de glória são prefeito mais que perfeito. Fala muito de Cuba e de Fidel Castro, aquela foi a sua guerra e toda a gente tem uma. Não é má companhia e tem sentido de humor. “A minha ocupação predilecta é observar as pessoas, desporto inofensivo”.

Mattew Barak. Matt. "Dentes americanos de porcelana”. Tem passaporte britânico. É palestiniano.Filho de um dos patriarcas da terra. Um homem muito rico. Um milionário, financiador de guerras e negócios de guerras.os filhos estudaram em Inglaterra. Vive no quartinho mais modesto do Colony. Foi educado em Inglaterra. Não é muçulmano. É palestiniano. Tem passaporte britânico. Estudou em Inglaterra. É um ethonian. Um palestiniano nascido Jerusalém... “Antes de Arafat ninguém sabia que existiam palestinianos. Eram árabes iguais a outros árabes. Ele inventou uma categoria, um povo sem Terra. Os heróis têm a obrigação de morrer cedo , antes de se tornarem bandidos. Não se pode ficar muito tempo em Jerusalém porque faz mal à saúde”. Tudo nele defende uma origem... Habituado a ordenar a vida dos outros ordenando o mundo à sua volta...Descende de gente sem país, sem casa, sem Pátria. Matt não gosta de Tariq. Diz que é uma vergonha para os palestinianos. Um inútil, um parasita, um delinquente, talvez um informador. Matt é cheio de segredos e mistérios. "Entrar no coração palestiniano é entrar no desgosto...é como beber fel.. A raiva, a estupefacção, a vingança...".

"Tariq, o palestiniano que teima em não querer parecer palestiniano”... Tariq aparece e desaparece como os gatos. Tariq está sentado nas portas de Damasco... É ele o autor da frase “Welcome in Falestine”. Muçulmano: “Não sou muito de orações. A Mesquita é para homens casados, os velhos e as mulheres... As mulheres são anjos... Não parece árabe... Um rapaz bonito.... E uma melga....com os sapatos dois números acima...” O maior sonho dele é ir para a América, para NY. Conhecia todos os cantos bíblicos de Jerusalém. Tariq era o mais novo dos irmãos e queria escapar dali. Nova Iorque! Era para onde queria emigrar. A América era a terra prometida... Notava-se que tinha sido educado por mulheres...se Israel não tivesse vindo para A nossa terra eu não andava para aqui às voltas, tinha uma casa e uma profissão....foi Tariq que me falou no Engenheiro pela primeira vez... Tariq é uma aparição a saltitar como um gafanhoto. Parece tudo menos palestiniano. Tariq aprendeu a viver na clandestinidade o sexo mal pago, um prostituto barato que oferece os serviços às do-gooders por uns dólares. " gostava de matar todos os judeus mas não posso. Eles são mais fortes do que nós.e se não posso não vale a pena morrer"..."quero estudar na América e vou conseguir". Quer provar os cachorros-quentes da América. É um muçulmano que come carne de porco. Tariq sumiu-se. Não há sinal dele.

Amjad. "Esta é a minha casa. A minha terra... Um dia Israel deixará de ser Israel. Esse dia há-de chegar. Nunca vamos desistir. Ninguém gosta dos palestinianos. Nem os árabes...o Hamas dará a liberdade a Gaza... A luta vai entrar numa nova fase"
"Só um judeu pode saber o que significa não ter um país". A Palestina é um lugar ocupado nas palavras de Matt.

Marci é uma missionária. Como Adam. Passou a vida a cuidar dos refugiados. Os que dependem dos outros para tudo. Ninguém os quer. "São párias, vivem no limbo". Apaixonou-se por um palestiniano mas deixou-o porque ele lhe pediu. Converteu-se ao islão. Visitou Lisboa. Quis saber onde ficava a mesquita. Orienta o tapete para Meca. Não gostava de Jerusalém. Dizia ser a terra do pecado e do ódio. É uma beta americana.

 Uriel. Escritor. Poeta. Vive em Telavive numa casa que tem mais livros do que casa. Tem mar quente. Judeu. Tem a arrogância dos israelitas.
Adam. Maria teve um romance com ele que começou no Dubai. Não se consegue chegar perto dele. Era um soldado. Foi o único amor feliz de Maria. Recebeu dele o treino militar. 

Beatriz. A grande amiga de infância de Maria que sobreviveu ao passar dos anos. Vivia na Lapa. Filha de um grande banqueiro. Casada com um político, Eduardo. Pessoa muito bondosa. O bem em forma de pessoa. Muito católica e bem feitora. Uma do-gooder natural. Preocupava-se com os outros. Adorava fazer os outros felizes.

Márcia. Márci. Conheceu Maria num hotel em Amã. Nasceu em NY. Filha de um senador do Estado de NY e de uma arquitecta. Uma do-gooder com dinheiro. Foi educada na igreja unitária. Estudou Sociologia em Columbia University. Gosta de trabalho social, ajudar os outros: "é embaraçoso ser-se feliz quando os outros sofrem". Simpatiza com os palestinianos. Começa a sentir-se atraída pelo Islão. Tem um amor proibido. “Os palestinianos são iguais aos israelitas só que mais mal vestidos. Uns convertem-se ao Islão outros não”.

David Peretz. Perito em diplomacia e comunicação. Nasceu em Israel. Viveu nos EUA. Tem a tenacidade e a força do figo-da-índia (o cacto que dá fruto na aridez).

Um livro cheio de cidades, lugares, monumentos, museus. Hull. Jerusalém. Mar Morto. Galileia. Londres. Dubai. Beirute. Meca. Gaza. Istambul. Egipto. Cidadela. Cairo. Gizé "a esfinge bocejava na solidão". Bagdade. Hotel Al-Rashid.Jordânia. Amã. Ein karem (a aldeia onde nasceu São João Baptista, um lugar bíblico). Islamabad. Cabul. NY. Ramallah. Georgetown. Jafa “um bilhete-postal... é uma praia que nunca sai da maré baixa”. Jericó “Terra do leite e do mel. É a cidade das palmeiras. Um oásis no Mar Morto. É a cidade dos perfumes. Tem as melhores tâmaras do mundo”.

As descrições das cidades, principalmente de Jerusalém são de quem as viveu."Jerusalém é tudo o que queremos que seja ao crepúsculo... À noite pertence aos homens sem Deus... Allahu Akbar. Pela Cidade Velha o eco repete-se porque é a hora da chamada dos fiéis por Deus...Os olhos dos árabes são bagas de zimbro amargo. Cheira-se o aroma pestilento da vingança. Quando as represálias israelitas acabaram com os esfaqueamentos diários, os palestinianos descobriram uma nova arma mais barata e destrutiva. O próprio corpo. A granada humana”.

A escrita de CFA, para quem a conhece há muito, é facilmente perceptível. Usa, ainda, palavras como criado, oiro, doirado. Quem é que em Portugal ainda usa estas palavras?

Um livro obrigatório que não poderia ter sido lançado em melhor tempo. Nunca um livro fez tanto sentido. Fala-nos do medo inevitável da guerra dentro de casa. Não a podemos evitar nem nos podemos proteger. Não há fórmula nem protocolo. Estão em todo o lado. Ubiquidade. "O inimigo não tem cara, nem nome, nem posto".

Um livro cheio de sinais e de pronúncios. Com um final catártico de tragédia grega. Um final que não redime, só revolta. A dor da humanidade. “Os filhos, como a guerra, não têm fim".



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