Este
livro é dos melhores que li nos últimos tempos. Arrisco-me a dizer que, talvez,
um dos melhores da última década. Embora, não sabendo se algumas partes deste
livro são autobiográficas, parecem ser. E como diz Lobo Antunes “ no fundo,
tudo o que escrevemos é autobiográfico”. Quando as expectativas são muitas, a
desilusão é frequente. O que não acontece com este livro. Não está nele (simples) pesquisas. Ou muito trabalho. Ou
horas de labuta e inspiração. Nele está
tempo. Muito tempo. A passagem do tempo. Sem atalhos. Maturação. Vivências.
Vida. Viagens. Conhecimento. Realidade. Não o que se lê (apenas) nos livros.
Este livro não seria o mesmo se Clara Ferreira Alves (CFA) não conhecesse tão
bem as cidades sobre as quais escreveu. Ela viveu-as. Como a própria assumiu,
pagou do próprio bolso muitas das estadias. Muitas cidades. Muitos países. Israel, Iraque, Afeganistão, Turquia, Síria, Marrocos,
Nova Iorque, Londres, Paris, Lisboa. O Médio Oriente no seu
esplendor. E neste livro estão muito marcadas e perceptíveis (para quem
conhece) as influências de Graham Green e Eça. Pelo menos estes dois eu
consegui identificar. E o amor da
personagem principal pela América, por NY, coisa que CFA também parece
partilhar.O fascínio pelo Médio Oriente
Uma
narrativa feita na primeira pessoa. Cheia de analepses e prolepses. Rewind. Passado. Memória. Play. Presente.
A narrativa começa no presente. Sempre na primeira pessoa. Uma professora universitária, especialista em
Estudos do Médio Oriente. “...um rato de biblioteca”. Foi aprender a diferença
entre a teoria e a prática, como (quase) todos os académicos. Beatriz quer contar a história d’ “O Fantasma”. Resolve sair da comodidade da
academia em Hull aventurar-se a escrever sobre uma fotógrafa famosa. "ela
nunca abriu a boca...pode ser que fale antes de morrer...é uma lenda".
Presente. Marie. Maria. "Uma mulher de certa idade que fuma cigarros
até meio...A claridade dos olhos corta vidro. A Leica em cima da mesa ... Ela bebe um gin, sempre da mesma
garrafa... Gin alemão... É muito alta para portuguesa e deve ter sido muito
bonita... Veste-se de preto... Tem voz rouca, daquelas vozes de noites mal
dormidas, do sarro dos cigarros e dos copos...”. Fala pouco. Passa muito tempo
com palestinianos. Computador.
Tapete persa. Dólares. Baton. Óculos escuros. Keffieh. Um frasco de prata vindo
de Jerusalém. A sua água benta. "A vista diz tudo sobre o lugar onde
estamos". Oiro negro. Ficamos saber que o plástico dos chinelos fica quase
sempre intacto, ao contrário da carne. É uma nómada:"...levei a vida a
fugir do lugar onde nasci". Os quartos de hotel são a casa dela. Viaja
leve: “quando se envelhece aprecia-se a liberdade de nada possuir ou
carregar".
Passado. Ganhou dinheiro e fama com a fotografia de uma criança
morta. A Pietá. Um grito animal da mãe que reclama o filho morto. Cuspia
saliva e ranho e babava lágrimas. Grunhia como um animal degolado. Aquele dia ficou
nela como uma queimadura. “Da primeira morte não se recupera como do primeiro
amor”. A mãe dela matou-se depois de uma primeira tentativa de colocar-se na
frente de um comboio. Amou Matt como nunca amou ninguém e nunca mais voltou a
amar. Comportava-se como uma tonta quando se apaixonou por Matt. Conheceu
Matt no bar da cave. "Matt transformou a minha vida em matéria inflamável
e esqueceu-se de avisar para não aproximar da chama". Passava os dias a
ver Matt: "passo os dias a medir o tempo que escorre entre ver Matt e voltar
a ver Matt"..."Um homem que entra pela calada da noite e sai de
madrugada"."Amei uma pessoa no labirinto de Jerusalém... Jerusalém é
o lugar mais anormal do mundo...em Jerusalém os namorados passeiam sem se
tocarem. Cidade Velha pela Porta de Damasco... É uma cidade da guerra, é a
cidade de Deus. Os repórteres de guerra nunca dizem guerra, ali. Dizem
conflito... Eu gosto dos lugares de guerra quando estão em paz... Foi preciso
envelheçer para ver a Cidade Velha de Jerusalém tal como ela é, uma praça de
fancaria... É a cidade das pedras e não são pedras iguais às outras, são pedras
pisadas pelos pés gretados do filho de Deus... Amei em Jerusalém e amei
Jerusalém... Em Jerusalém fui a estrangeira e hoje sou um fantasma.. É o
problema dos palestinianos, dos árabes, das seitas do Islão. Fome de
sexo.lambem com os olhos as pernas, os decotes, as nádegas das estrangeiras...
A Via Dolorosa são seiscentos metros de sofrimento entre a Fortaleza Antónia e
o Santo Sepulcro... Há muita mulher sozinha em Jerusalém, muita peregrina,
muita do-gooders, muita jornalista
com dólares frescos. Muita fome de sexo... Para tormento dos judeus, os árabes
multiplicam-se mais. Um suicida tem pelo menos dois filhos se explodir enquanto
jovem. Se explodir mais tarde, terá sem ou sete. Uma família tem muitas
crianças para sacrificar... Judeus e muçulmanos, israelitas e palestinianos”.
De que lado está?
Esta
personagem tem a mesma opinião que eu: "sem um bom ditador, todo o Médio
Oriente é um matadouro... Sem uma ditadura nada fica de pé. O selvagem do
Saddam mantinha o Iraque unido atando os iraquianos com arame farpado". o
que sobra do Iraque? No que se transformou o Egipto? Durante anos mantido
debaixo do pé de Mubarak. O déspota do Bashar al-Assad manteve ditatorialmente
a Síria próspera. O país que era laico, as mulheres não usavam véu e havia
liberdade religiosa. Como está a Síria depois da Primavera Árabe? E a Arábia
Saudita, o país mais radicalizado muçulmano, onde reina a sharia, onde as mulheres não podem conduzir, nem votar e têm de
andar totalmente tapadas, para dizer o melhor dos males. O ocidente e os países
desenvolvidos não condenam isto?
Maria falou
da sua infância suburbana. Gostavam de morar nas Avenidas Novas mas moravam em
Campolide. O pai era militar e a mãe queria ter estudado mas a
família não deixou. Gostava dos escritores russos e franceses. Quando a mãe
morreu ficou com uma tia solteira, amarga, azeda que não sabia dar amor. Lia
folhetins e chorava no cinema com filmes de terceira categoria. A família dela
resumia-se a Beatriz. A única amiga. A
família dela. Conheceu Beatriz (a amiga, não a professora universitária) no
liceu. "Venho de lugar nenhum e sou parte do provoque foi a todos os
lugares. O povo que aprendeu a perder". Sempre se achou demasiado alta num
país de meia estatura. Faz descrições perfeitas de quem já viu cadáveres
mutilados pela guerra. "O cheiro a carne humana assada é uma recordação".
Tem o cabelo bem cortado. Recebeu o primeiro treino de guerra na Jugoslávia. É
sempre a que parte nunca a que fica. "Confiava na delicadeza de
estranhos" como a Blanche Dubois que sempre dependeu da bondade de
estranhos. Nunca olha para trás.
"O
Afeganistão foi a minha melhor guerra...a paisagem tinha uma luz
libertadora...o Iraque, a Síria, a Líbia, os Balcãs foram más guerras". A
rotina é uma salvação.. O amor é ópio. É uma droga. Fica-se agarrado. O amor
distorce a realidade mais do que a guerra"...."Enerva-me a mania de
cobrir o cabelo de tornar a mulher numa criatura sem género"....
"De todos os países onde trabalhei, o Iraque é o mais viciado, o mais
violado, um serial killer serially killed. Dizem que aqui nasceu a
nossa civilização. A Mesepotâmia. Bagdade foi a capital do Califado, uma
cidades de sábios e de bibliotecas.... O amigo Saddam tinha
sido nosso aliado contra o Khomeini e tornou-se
o nosso inimigo.... O meu primeiro amigo iraquiano foi um taxista
do nosso hotel... Tinha um retrato da equipa do Benfica na parede de
casa, uma foto a preto e branco com a águia benfiquista de asa aberta... Aqui
morre-se cedo e morre-se mal". O que são os países islâmicos? Cafés cheios
de homens sentados a beber café turco. "Bagdade era uma cidade de
leitores. No tempo dos otomanos esta rua já era o que é. Um supermercado de
livros, uma livraria ao ar livro, uma universidade... Quando na Europa
andávamos a quatro patas aqui liam livros... A Biblioteca Nacional é um dos
raros edifícios decentes de Bagdade. Os iraquianos têm orgulho em ter uma
biblioteca. Não são o bando de primitivos que o nosso mundo branco
supõe... Eu tenho horror à vida normal...o chefe do frango assado torna-se um
amigo". (Quase) tudo neste livro é cru, como a realidade. "Poucos
sabiam fazer bombas em 91. Sabiam na Palestina... foi por lá que comecei a
carreira, pela busca do Engenheiro”.
Pierre. É
uma amizade de circunstância, feita em Israel e na espera da entrada no Iraque.
Um parisiense efeminado que é o correspondente em Jerusalém do maior diário de
França. É mais um para quem os dias de glória são prefeito mais que perfeito.
Fala muito de Cuba e de Fidel Castro, aquela foi a sua guerra e toda a gente
tem uma. Não é má companhia e tem sentido de humor. “A minha ocupação
predilecta é observar as pessoas, desporto inofensivo”.
Mattew
Barak. Matt. "Dentes americanos de porcelana”. Tem passaporte britânico. É
palestiniano.Filho de um dos patriarcas da terra. Um homem muito rico. Um
milionário, financiador de guerras e negócios de guerras.os filhos estudaram em
Inglaterra. Vive no quartinho mais modesto do Colony. Foi educado em
Inglaterra. Não é muçulmano. É palestiniano. Tem passaporte britânico. Estudou
em Inglaterra. É um ethonian. Um
palestiniano nascido Jerusalém... “Antes de Arafat ninguém sabia que existiam
palestinianos. Eram árabes iguais a outros árabes. Ele inventou uma categoria,
um povo sem Terra. Os heróis têm a obrigação de morrer cedo , antes de se
tornarem bandidos. Não se pode ficar muito tempo em Jerusalém porque faz mal à
saúde”. Tudo nele defende uma origem... Habituado a ordenar a vida dos outros
ordenando o mundo à sua volta...Descende de gente sem país, sem casa, sem
Pátria. Matt não gosta de Tariq. Diz que é uma vergonha para os palestinianos.
Um inútil, um parasita, um delinquente, talvez um informador. Matt é cheio de
segredos e mistérios. "Entrar no coração palestiniano é entrar no
desgosto...é como beber fel.. A raiva, a estupefacção, a vingança...".
"Tariq,
o palestiniano que teima em não querer parecer palestiniano”... Tariq aparece e
desaparece como os gatos. Tariq está sentado nas portas de Damasco... É ele o
autor da frase “Welcome in Falestine”. Muçulmano: “Não sou muito de orações. A
Mesquita é para homens casados, os velhos e as mulheres... As mulheres são
anjos... Não parece árabe... Um rapaz bonito.... E uma melga....com os sapatos
dois números acima...” O maior sonho dele é ir para a América, para NY. Conhecia
todos os cantos bíblicos de Jerusalém. Tariq era o mais novo dos irmãos e
queria escapar dali. Nova Iorque! Era para onde queria emigrar. A América era a
terra prometida... Notava-se que tinha sido educado por mulheres...se Israel
não tivesse vindo para A nossa terra eu não andava para aqui às
voltas, tinha uma casa e uma profissão....foi Tariq que me falou no Engenheiro
pela primeira vez... Tariq é uma aparição a saltitar como um gafanhoto. Parece
tudo menos palestiniano. Tariq aprendeu a viver na clandestinidade o sexo mal
pago, um prostituto barato que oferece os serviços às do-gooders por uns
dólares. " gostava de matar todos os judeus mas não posso. Eles são mais
fortes do que nós.e se não posso não vale a pena morrer"..."quero
estudar na América e vou conseguir". Quer provar os cachorros-quentes da
América. É um muçulmano que come carne de porco. Tariq sumiu-se. Não há sinal
dele.
Amjad.
"Esta é a minha casa. A minha terra... Um dia Israel deixará de ser
Israel. Esse dia há-de chegar. Nunca vamos desistir. Ninguém gosta dos
palestinianos. Nem os árabes...o Hamas dará a liberdade a Gaza... A luta vai
entrar numa nova fase"
"Só um
judeu pode saber o que significa não ter um país". A Palestina é um lugar
ocupado nas palavras de Matt.
Marci é uma
missionária. Como Adam. Passou a vida a cuidar dos refugiados. Os que dependem
dos outros para tudo. Ninguém os quer. "São párias, vivem no limbo".
Apaixonou-se por um palestiniano mas deixou-o porque ele lhe pediu.
Converteu-se ao islão. Visitou Lisboa. Quis saber onde ficava a mesquita.
Orienta o tapete para Meca. Não gostava de Jerusalém. Dizia ser a terra do
pecado e do ódio. É uma beta americana.
Uriel.
Escritor. Poeta. Vive em Telavive numa casa que tem mais livros do que casa.
Tem mar quente. Judeu. Tem a arrogância dos israelitas.
Adam. Maria
teve um romance com ele que começou no Dubai. Não se consegue chegar perto
dele. Era um soldado. Foi o único amor feliz de Maria. Recebeu dele o treino
militar.
Beatriz. A
grande amiga de infância de Maria que sobreviveu ao passar dos anos. Vivia na
Lapa. Filha de um grande banqueiro. Casada com um político, Eduardo. Pessoa
muito bondosa. O bem em forma de pessoa. Muito católica e bem feitora. Uma do-gooder natural. Preocupava-se com os
outros. Adorava fazer os outros felizes.
Márcia.
Márci. Conheceu Maria num hotel em Amã. Nasceu em NY. Filha de um senador do
Estado de NY e de uma arquitecta. Uma do-gooder
com dinheiro. Foi educada na igreja unitária. Estudou Sociologia em Columbia University. Gosta de trabalho
social, ajudar os outros: "é embaraçoso ser-se feliz quando os outros
sofrem". Simpatiza com os palestinianos. Começa a sentir-se atraída pelo Islão. Tem um amor proibido. “Os palestinianos são iguais aos israelitas só que
mais mal vestidos. Uns convertem-se ao Islão outros não”.
David
Peretz. Perito em diplomacia e comunicação. Nasceu em Israel. Viveu nos EUA.
Tem a tenacidade e a força do figo-da-índia (o cacto que dá fruto na aridez).
Um livro
cheio de cidades, lugares, monumentos, museus. Hull. Jerusalém. Mar Morto. Galileia. Londres. Dubai. Beirute. Meca. Gaza. Istambul. Egipto. Cidadela. Cairo. Gizé "a
esfinge bocejava na solidão". Bagdade. Hotel Al-Rashid.Jordânia.
Amã. Ein karem (a aldeia onde nasceu São João Baptista, um lugar bíblico).
Islamabad.
Cabul. NY. Ramallah. Georgetown. Jafa
“um bilhete-postal... é uma praia que nunca sai da maré baixa”. Jericó “Terra
do leite e do mel. É a cidade das palmeiras. Um oásis no Mar Morto. É a cidade
dos perfumes. Tem as melhores tâmaras do mundo”.
As
descrições das cidades, principalmente de Jerusalém são de quem as viveu."Jerusalém
é tudo o que queremos que seja ao crepúsculo... À noite pertence aos homens sem
Deus... Allahu Akbar. Pela Cidade
Velha o eco repete-se porque é a hora da chamada dos fiéis por Deus...Os olhos
dos árabes são bagas de zimbro amargo. Cheira-se o aroma pestilento da
vingança. Quando as represálias israelitas acabaram com os esfaqueamentos
diários, os palestinianos descobriram uma nova arma mais barata e destrutiva. O
próprio corpo. A granada humana”.
A escrita de
CFA, para quem a conhece há muito, é facilmente perceptível. Usa, ainda, palavras
como criado, oiro, doirado. Quem é que em Portugal ainda usa estas palavras?
Um livro
obrigatório que não poderia ter sido lançado em melhor tempo. Nunca um livro
fez tanto sentido. Fala-nos do medo inevitável da guerra dentro de casa. Não a
podemos evitar nem nos podemos proteger. Não há fórmula nem protocolo. Estão em
todo o lado. Ubiquidade. "O inimigo não tem cara, nem nome, nem
posto".
Sem comentários:
Enviar um comentário