O EUA é esse país capaz do melhor e do pior. A mais antiga e
mais usada linha celular foi criada sem consentimento da sua dadora, Henrietta
Lacks, uma mulher negra, pobre, nos anos 50 que sofria de cancro. O país da
Rosa Parks que se recusou dar o lugar a um branco mas que ainda existe o Klu
Klux Klan. O país que viu nascer e morrer assassinados John F. Kennedy, Martin
Luther King e Malcolm X. O país que foi capaz de eleger o primeiro Presidente
negro mas foi também o país que preferiu um louco para Presidente em vez de
escolher uma mulher. O país onde na semana passada o The New York Times
reconstruiu, baseado em imagens de comeras de hotel, os dias do atirador que
matou dezenas de pessoas em Las Vegas. Carregou várias dezenas de malas,
durante vários dias, com tudo planeado, alugou dois quartos e foi o responsável
pelo maior número de mortes resultante de um tiroteio. Um país onde entre 2006
e 2009 me era pedida identificação para comprar cigarros mas onde comprar uma
arma ou várias era (mais) fácil. O país onde várias pessoas mataram outras
pessoas em tiroteios só porque sim, por razões políticas, por ódio, por racismo
ou sem se saber a razão e porque qualquer pessoa pode ter acesso a uma arma. Um
país cuja capital parou para dizer não às armas. Um país que tem adolescentes
capazes de se mobilizarem e de discursos como os que se fizeram na semana
passada em Washington é um país com futuro e onde a esperança não está (de
todo) perdida.
Depois, na América do Sul, temos o Brasil. Há anos que se
morre por nada. A vida (lá) vale muito pouco. Tenho um amigo que é um acérrimo
defensor de Lula. Por causa dele, diz ter conseguido estudar e chegar a um dos
mais altos graus académicos. Ele que é, como se apresenta, por desordem
alfabética: brasileiro, pobre e preto. Pior, no Brasil, só se fosse mulher, favelado
e homossexual. Há umas semanas foi executada uma vereadora Câmara do Rio de
Janeiro, do partido político PSOL. Ainda não se sabe quem foi nem a razão.
Sabe-se (apenas) que foi uma execução política. Nunca tinha ouvido falar dela.
Mas conhecia Marcelo Freixo o candidato a Perfeito do Rio de Janeiro e o
deputado federal Jean Wyllys. Marielle que reunia tudo o que uma pessoa no Brasil
de agora não pode ser: nasceu pobre, na favela da Maré, era preta, mulher e
lésbica mas estudou e chegou a vereadora. Era uma activista, uma voz incomoda, (quase)
sem medo. Ousou denunciar a extrema violência da polícia militar nas zonas
pobres e era a personificação de que estudar vale a pena. Mas quando pessoas que apesar de estereotipadas
têm voz são silenciadas, já não basta só ter medo nem vir para as ruas. Nunca
gostei de Lula mas tenho que aceitar que de tudo o que aconteceu nos últimos
anos foi o melhor. Quando no Brasil existem políticos com o baixíssimo nível
que vemos na televisão todos os dias, quando o Perfeito do Rio é um Bispo da
IURD cheio de cirurgias plásticas e cabelo pintado que quer tornar a cidade
mais bonita pintando as fachadas das casas das favelas, quando se ausenta da
cidade no Carnaval, a época mais crítica da cidade, e quando insiste num estado
sem ser laico; quando um dos possíveis candidatos à Presidência do Brasil é um
reaccionário, apoiante da ditadura militar, que numa discussão pública afirmou
que uma deputada merecia ser violada, que acha que a solução da violência no
Rio está em bombardear as favelas; Quando os maiores intelectuais brasileiros
dizem que os alunos saem das escolas analfabetos funcionais. Quando quem não
está a favor, está contra. Quando não existe meio termo. Quando as pessoas
destilam ódio e ameaças nas redes sociais. Quando se é julgado e seleccionado
pela cor de pele... resta perguntar: o Brasil (ainda) tem solução? É por isso que eu sendo branca, não sendo de
esquerda, muito menos caviar, de não ser burguesa, digo: devemos ser todos
Marielle!
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